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Reportagem
A trajetória da solidez de uma ideia em transformação
Por Rodrigo Cunha
10/04/2009

No "século das luzes", o químico francês Antoine Lavoisier postulou uma lei que se tornaria das mais conhecidas dentro e fora dos meios científicos: “na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A ideia da transformação extrapola as ciências naturais, com o estudo das mudanças das línguas e das estruturas sociais, e está no cerne das investigações sobre a evolução das espécies iniciadas no século XIX. O próprio conhecimento científico se transforma, quando os avanços das pesquisas demonstram, por exemplo, que a sólida e secular física de Isaac Newton consegue dar conta dos movimentos de corpos celestes, mas não das minúsculas partículas que compõem o átomo. Com a teoria evolucionista de Darwin, não é diferente: ela passou por períodos de maturação, prestígio, declínio, revitalização, e continua sólida e em transformação.

No ano em que o filho de aristocratas ingleses Charles Darwin nasceu, 1809, o naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck publicou o livro Filosofia zoológica, em que apresenta sua teoria sobre a tendência dos seres vivos a um melhoramento constante. Lamarck postulou que características adquiridas pela adaptação ao ambiente, como o alongamento do pescoço das girafas para alcançar alimento nas árvores, seriam herdadas pelas gerações seguintes. Embora tenha tido pouca aceitação na França, essa teoria teve boa repercussão na comunidade científica inglesa. Décadas depois, o próprio Darwin afirmaria acreditar na herança de caracteres adquiridos, mas considerava que o desenvolvimento progressivo das espécies, suposto por Lamarck, não explicava o fato de ainda existirem organismos simples.

Mas muita coisa aconteceu antes de Darwin entrar nesse tipo de debate. Filho e neto de médicos, ele havia ingressado aos 17 anos no curso de medicina da Universidade de Edimburgo, porém não quis seguir a tradição da família. Seu pai o mandou então a Cambridge, para que estudasse teologia. Ali, teve contato com figuras influentes em sua formação: o reverendo Adam Sedgwick, um dos geólogos mais respeitados da Inglaterra, e o reverendo John Henslow, professor de botânica, que se tornaria seu mentor e amigo. Após concluir o bacharelado em artes, curso básico para o ingresso em teologia, Darwin foi indicado por Henslow para acompanhar o capitão Robert FitzRoy em uma longa viagem a bordo do navio Beagle, para cartografar o litoral da América do Sul. Começava, então, a saga da qual sairiam as bases da obra que o consagraria.

Darwin tinha apenas 22 anos, pouca experiência acadêmica e muito interesse por história natural, quando a viagem se iniciou. Na bagagem embarcada no Beagle constavam cerca de duzentos livros que serviram de fontes de consulta paralelas às observações do material coletado ao longo dos cinco anos da expedição. Darwin se encantou com a exuberante Mata Atlântica brasileira, ainda relativamente intacta; ficou intrigado ao ver na Argentina uma ema que lhe pareceu semelhante ao avestruz do distante continente africano; coletou fósseis de animais extintos, como a preguiça-gigante, onde havia espécies vivas parecidas com elas; e já no fim da viagem, em 1835, fez observações sobre a diferença nos hábitos alimentares e no bico de aves conhecidas como tentilhões, nas Ilhas Galápagos, a mil quilômetros da costa do Equador.

A observação de que provavelmente cada ilha era habitada por uma espécie diferente dessas aves – e não por “variedades” de uma mesma espécie –, feita por Darwin nove meses após deixar Galápagos, é tida como o estopim inicial para se chegar à teoria da evolução. Mas havia imprecisão no registro do naturalista inglês sobre a localidade de cada ave, e as meticulosas anotações do capitão FiztRoy ajudaram a corrigir essa falha. Na volta à Inglaterra, coube a um naturalista mais experiente, John Gould, analisar o material colhido em Galápagos. Em uma reunião na Sociedade Geológica de Londres, em 1837, ele descreveu doze diferentes espécies muito particulares de tentilhões, distintas uma da outra apenas pelo bico: alguns mais grossos, capazes de quebrar nozes; outros pequenos, para pegar sementes; e assim por diante.

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Quatro espécies de tentilhões de Galápagos.

Naquele mesmo ano, Darwin esboçou sua idéia da árvore da vida, com um ancestral comum a todos os animais como tronco e com ramificações para cada espécie descendente. E, em 1838, ele encontrou na leitura do Ensaio sobre o princípio da população, de Thomas Malthus, aquilo que percebeu ser a chave para entender como surgiam os novos ramos. Malthus dizia que as populações humanas cresciam em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos crescia em progressão aritmética, o que, em longo prazo, provocaria a morte daqueles que não tivessem acesso à comida. Essa ideia levou Darwin a pensar na seleção natural como explicação para o surgimento de novas espécies: parte delas, por alguma característica, estaria mais apta a sobreviver, e transmitiria aquela característica para seus descendentes.

Até essa observação se formalizar na teoria da evolução, em A origem das espécies, ainda haveria um longo período de maturação. Darwin publicou alguns artigos e participou de conferências científicas nos anos seguintes, ainda repercutindo análises sobre o vasto material coletado nos cinco anos de expedição. Apenas em 1844, ele revela em carta a um amigo, o botânico Joseph Hooker, estar envolvido em um trabalho ousado, no qual apresentaria o que acreditava ser o mecanismo para as espécies se tornarem especialmente adaptadas para determinados fins. E, por mais de uma década, o ex-estudante de teologia em Cambridge – casado com uma mulher extremamente religiosa – comentou apenas com amigos sobre sua teoria, temendo a repercussão em uma sociedade na qual a explicação bíblica das origens era inabalável.

Darwin já havia iniciado a redação de A origem das espécies quando recebeu, em 1857, uma carta do naturalista Alfred Russel Wallace, solicitando sua opinião sobre um estudo das diferenças entre espécies separadas por grandes rios, na Amazônia brasileira e no Arquipélago Malaio, atual Indonésia. Wallace havia chegado às mesmas conclusões que Darwin, que percebeu não poder adiar mais a discussão pública de suas ideias. Em 1858, foi apresentado na Sociedade Lineana de Londres um trabalho conjunto, de Darwin e Wallace, sobre a variação das espécies e a seleção natural, posteriormente publicado como artigo no periódico da instituição. “O artigo dos dois não causa impacto. Já o livro A origem das espécies, publicado no ano seguinte, teve um impacto muito grande”, afirma Louis Bernard Klaczko, do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Enquanto o trabalho de Wallace ficou praticamente esquecido, os 1250 exemplares da primeira edição do livro de Darwin rapidamente se esgotaram. Fora as esperadas críticas do meio religioso, a obra ganhou enorme prestígio na comunidade científica. Apenas em 1867, surgiu uma primeira objeção, formulada pelo médico inglês Fleemin Jenkins, à ideia de herança por consanguinidade: um pai negro e uma mãe branca geram um filho mulato, com característica de ambos; mas as gerações seguintes descendentes de pais e mães mulatos supostamente não teriam mais variação. “Darwin não conseguia responder ao argumento de Jenkins e passou o resto da vida tentando entender o problema da herança consanguínea. A resposta estava na teoria de Gregor Mendel, que não era conhecida por Darwin e nem por seus contemporâneos”, diz Klaczko.

Após anos de experiência cruzando ervilhas, o monge austríaco Gregor Mendel descobre, em 1865, um padrão de transmissão de traços hereditários. Essa seria a base da futura área da genética mas, na época, o trabalho de Mendel passou despercebido. Paradoxalmente, a redescoberta de sua obra décadas depois colocaria em xeque a teoria de Darwin. “Desde o final do século XIX, ainda quando Darwin vivia, o conceito e a importância da seleção natural estavam sendo criticados. Aceitava-se que as espécies haviam se modificado e que havia relações entre elas, do tipo ancestral-descendente. A seleção natural, até então não fora mostrada, quer experimentalmente, quer na própria natureza”, conta Aldo Mellender de Araújo, coordenador do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ainda assim, Charles Darwin gozou de prestígio na comunidade científica até sua morte, em 1882, quando foi enterrado ao lado de Isaac Newton na Abadia de Westminster, e não chegou a ver o pior momento da trajetória de sua teoria. Do final do século XIX até a década de 1920, o darwinismo perdeu espaço para uma corrente teórica baseada na genética: o mutacionismo. “O grupo darwiniano defendia as modificações pequenas e graduais como principal evento evolutivo, o outro defendia que as mudanças evolutivas eram de maior monta, qualitativas”, afirma Araújo. “A polêmica foi praticamente solucionada com a publicação, em 1918, de um artigo de Ronald Fisher, um evolucionista teórico, o qual mostrou que mudanças qualitativas eram semelhantes às quantitativas”, completa. Estava aberto o caminho para a junção das teorias.

Fisher, John Haldane e Sewall Wright são apontados como os teóricos fundadores das bases matemáticas da genética de populações. “Era uma teoria das variações em termos matemáticos, e os biólogos não tinham formação matemática”, aponta Klaczko. Por isso, essas ideias ainda demorariam a ser disseminadas. Na década de 1910, Thomas Morgan já havia descoberto, a partir do cruzamento de moscas-das-frutas, que os genes estão no cromossomo. Theodosius Dobzhansky, que trabalhou com Morgan, deu sequência ao trabalho experimental com a mosca Drosophila e, em 1937, publica o livro Genética e a origem das espécies. “Ele é o grande divulgador daquela teoria e mostra que é possível a abordagem experimental para estudos evolucionistas. É onde está a base da genética”, acrescenta o pesquisador da Unicamp.

A união das teorias de Darwin e Mendel, disseminada por Dobzhansky, resultou no que na década seguinte ficou conhecido como neodarwinismo ou “Síntese moderna da evolução”, termo introduzido por Julian Huxley em 1942. Pesquisadores de diversas áreas aderiram a essa nova vertente teórica, entre eles o zoólogo Ernst Mayr e o palentólogo George Simpson. Na Inglaterra, Edmund Ford, que trabalhou com Fisher, chegou a descobertas que reviam a suposição de Darwin sobre as mudanças nas espécies ocorrerem em milhares de anos. “Trabalhando com borboletas, ele foi capaz de mostrar que de uma geração para a outra, ou entre poucas gerações, modificações de grande magnitude poderiam ocorrer”, conta Araújo. Aluno de Ford, Bernard Kettlewell demonstrou que mariposas claras ficavam escuras em cidades de ar poluído.

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Mariposa clara (Biston betularia) e sua variante escura

Em 1953, Francis Crick e James Watson desvendaram a estrutura do DNA, revelando o processo pelo qual as informações genéticas são transmitidas através das gerações. De lá para cá, com o avanço de áreas especializadas, como a genômica, o conhecimento acumulado é imensamente maior ao que Charles Darwin tinha à época da publicação de A origem das espécies. Por isso, é normal que algumas de suas ideias sejam revistas. A da árvore da vida, por exemplo, pode virar uma teia. Em 2008, pesquisadores canadenses identificaram um mesmo trecho de material genético em espécies sem parentesco próximo, supondo que ele tenha sido transmitido de uma espécie para outra por um vírus. “A ideia de que vírus transmitem material genético é antiga”, pondera Klaczko, da Unicamp. E a da teia da vida, ainda que nova, mantém as bases do evolucionismo.

Além de interligar espécies antes pertencentes a diferentes ramos – na árvore proposta por Darwin – por fios de uma complexa teia, os avanços nas pesquisas também permitem comparações cada vez mais refinadas entre espécies aparentadas. A genômica já demonstrou, por exemplo, que 98,5% dos genes do homem são idênticos aos do chimpanzé, seu parente mais próximo entre os primatas. Esse tipo de descoberta, além de deixar questões em aberto na própria biologia, gera uma série de indagações em outras áreas do conhecimento, como as ciências humanas. Um questionamento ainda longe de ter uma resposta consensual é se os humanos continuam a evoluir.

Em 2007, pesquisadores norte-americanos publicaram o artigo “Recent acceleration of human adaptive evolution”, no qual apontam os resultados de um estudo do material genético de 90 indivíduos de ancestralidade europeia, 90 de ancestralidade africana, 45 de ancestralidade chinesa e 45 de ancestralidade japonesa. Eles afirmam que nos últimos dez mil anos, houve uma rápida evolução de esqueletos e dentes nas populações humanas e o aparecimento de várias respostas genéticas a dietas e doenças, aceleradas quando o homem começou a praticar a agricultura e a domesticar animais. Com base nesse tipo de pesquisa, acredita-se que, ainda hoje, os humanos continuam passando por transformações ligadas à adaptação a novas doenças. A exemplo do que aconteceu com a teoria evolucionista, o avanço das pesquisas poderá tanto reforçar essa crença quanto transformá-la. Afinal, esse é o caminho das ideias no mundo da ciência.