O futebol, pela sua ampla divulgação midiática e por ser investimento financeiro e produto comercial, constitui hoje uma importante representação da cultura, onde quer que seja praticado. O crescimento do esporte em âmbito mundial e a sua profissionalização acabaram por agrupar pessoas de diferentes raças, classes sociais e nacionalidades em uma mesma esfera. Essa profissionalização do futebol fez com que os clubes buscassem seus esportistas e outros profissionais em diversas partes do mundo, o que ocasionou um confronto entre pessoas culturalmente diferentes e contribuiu para o crescimento e manutenção da intolerância no esporte. Eric Hobsbawm, falando sobre futebol, conflito e globalização afirmou:
O futebol sintetiza muito bem a dialética entre identidade nacional, globalização e xenofobia dos dias de hoje. Os clubes viraram entidades transnacionais, empreendimentos globais. Mas, paradoxalmente, o que faz o futebol popular continua sendo, antes de tudo, a fidelidade local de um grupo de torcedores para com uma equipe. E, ainda, o que faz dos campeonatos mundiais algo interessante é o fato de que podemos ver países em competição. Por isso acho que o futebol carrega o conflito essencial da globalização.
Não é de hoje que nos estádios de futebol pelo mundo, jogadores negros ou latinos são vítimas de ofensas racistas nas quais bananas são atiradas ao campo. Em meio aos eventos esportivos mundiais que começam a ganhar espaço na América Latina e na África, a aproximação entre as culturas se torna campo fértil para a propagação de correntes preconceituosas no esporte, inclusive no futebol.
A importância desta questão se justifica não só pela maneira como a intolerância se espalha na sociedade atual, como também pela constante degradação do espaço público ocasionada pelas torcidas e mobilização dos recursos do Estado em medidas que solucionem esse problema, reflexos diretos do ódio cultivado entre grupos com identificações construídas entre si.
O conceito freudiano de “narcisismo das pequenas diferenças” pode ser pensado aqui, uma vez que consiste na descrição do movimento do sujeito quando ele encontra no outro uma pequena diferença que os separa. Essa segregação aparece em forma de agressão, já que essa mesma pequena e íntima diferença provoca angústia no indivíduo que a sente (Freud, 1996 1939). Neste sentido, a formação de torcidas se dá em um processo de diferenciação/estigmatização, no qual a constituição do laço grupal ocorre através de movimentos de exclusão. Nas redes sociais é possível encontrar diversas formas de diferenciações feitas pelos torcedores em relação a seus rivais e a si próprios.
Um exemplo disso pode ser encontrado na página de uma rede social inteiramente dedicada a discursos intolerantes à torcida do Sport Club Corinthians Paulista, onde se encontram frases como: “Corintiano só serve para garantir o emprego do policial”1. Aqui é feita não apenas uma representação de correspondência entre um criminoso e um corinthiano, mas sobre ser pobre e negro, maneira pela qual a torcida do clube referido é tradicionalmente caracterizada.
Os discursos correntes nas mídias revelam como a intolerância presente no indivíduo e reprimida por meio das normas, tanto no que diz respeito ao Estado quanto à sociedade e à cultura, “escapa” e encontra espaço na esfera do futebol, nos estádios e nos discursos que permeiam o esporte por meio do chiste, da piada. Dahia (2010) afirma que esses conteúdos chistosos carregados de preconceito surgem quando as normas proíbem os mesmos, gerando maneiras mais sofisticadas de expressão. Em sua análise sobre a relação entre riso e racismo, este autor comenta que:
Por meio do riso, o brasileiro encontra uma via intermediária para extravasar seu racismo latente, contornando a censura e a reflexão crítica sobre seu conteúdo e sobre o alcance de satisfação simbólica que o riso propicia, ao mesmo tempo em que ele não compromete sua autorrepresentação como não racista (p. 698).
A racionalização existente na sociedade inibe práticas preconceituosas e gera punições para aqueles que as exercerem. No entanto, os conteúdos intolerantes aparecem no futebol através do riso, o que não só representa um conteúdo de fato existente na subjetividade, como também essa maneira de expressar tais conteúdos traz consigo uma suposta incredibilidade do discurso, já que se trata de uma piada, de algo que não deve ser levado em consideração, ou seja, algo permitido. Sobre o tema, Dahia (2010) afirma ainda:
Essas práticas sociais, frequentes no processo de socialização, são toleradas e consideradas como uma atividade infantil inconsequente, que não deve ser levada a sério. Quando relacionada ao drama inter-racial em particular, demonstram constituir-se num mecanismo sutil, mas eficiente, de transmissão e perpetuação do preconceito racial. Ao longo da vida do individuo, tais práticas sociais acabam por se tornar um agradável hábito coletivo, atendendo aos propósitos de produzir e socializar prazer, através de um tácito pacto social de invisibilização do preconceito racial. (...) Assim, o discurso jocoso da piada racista acaba por tornar-se um lugar da transgressão institucionalizada, onde o comportamento racial regido por um zeloso controle do politicamente correto é subliminarmente contradito (p. 376-377).
Sendo assim, esses discursos têm seus conteúdos frequentemente ignorados enquanto intolerantes ou, ainda, propagados como algo não dotado de opinião sobre uma determinada raça, sexualidade, entre outros, uma vez que eles são ditos como simples piadas, ironias.
Em torno da piada racista, o riso instaura certa sociabilidade que tem como fundamento a desqualificação do objeto risível e o prazer catártico resultando da sua inscrição nesse lugar. A importância conferida ao riso se reflete, em grande medida, no seu caráter estruturante e instrumental dentro do processo de socialização que lhe permite transitar entre realidades de naturezas distintas – o psíquico e o social; o inconsciente e o consciente, o jocoso e o sério – de forma que as enrede (Dahia, 2008, p. 703-704).
A piada racista, que traz consigo diversas vias de preconceito, também está presente nos discursos que circulam nas mídias. De volta a páginas nas redes sociais dedicadas à intolerância aos torcedores do Sport Club Corinthians Paulista, é possível encontrar uma amplitude nas formas de racialização2. Em uma publicação em uma dessas páginas, há uma solicitação para que os outros membros da página publiquem as primeiras palavras que vêm à cabeça quando se pensa em torcedores corintianos. Nessa publicação, muitas referências preconceituosas são feitas, tais como: “fedô” (sic); “cambada de ladrão bicha”; “nojo”; “travecada” (sic) e “bandidagem”3. Essas palavras ilustram a intolerância, a rejeição ao outro e até revelam aspectos diferentes dessa relação. Quando se fala em “fedô” (sic), “nojo”, percebe-se uma aversão ao corpo dos negros, tratados historicamente (não apenas no Brasil) como pobre, nojento e fedorento.
Sobre esse corpo caracterizado nos discursos citados, Hook (2006) ressalta a importância de se analisar a questão corporal na relação do sujeito com o outro, antes de se pensar o discurso em si. Segundo ele, há limites em se avaliar apenas as questões discursivas nas análises sobre o racismo. O autor afirma que a perspectiva estritamente discursiva restringe o racismo a uma esfera política e social, deixando de levar a discussão para o âmbito dos processos psicológicos internos. Sendo assim, ele defende uma forma de pensar o racismo como algo menos consciente e como uma resposta imediata a um afeto, ou seja, que existiria um racismo impulsivo que não depende da mediação da forma verbal, mas é expresso na forma de reações do corpo, tal como a aversão, o nojo, entre outros (Hook, 2006).
Na visão de Hook (2006), essa aversão se dá na ansiedade experienciada pelo sujeito por não saber distinguir a diferença entre o outro e ele mesmo. O nojo se justifica pela resposta do indivíduo que visa diferenciar de si um aspecto que ameaça as suas categorizações. Diante disso, o corpo torna-se uma representação da angústia de saber (ou não) quem é e quem é o outro, resultando em uma aversão ao diferente.
Hook (2006) afirma ainda que há uma ambiguidade nesse processo, uma vez que o ódio presente na intolerância configura-se como outra faceta do desejo. O sujeito carrega consigo uma forma ambivalente de atração por uma qualidade que seria indesejável, na medida em que “esconde” a ameaça (no caso dos negros) baseada em estereótipos das qualidades físicas excepcionais atribuídas aos negros, notadamente as sexuais. O processo de diferenciação e intolerância, segundo o autor, nunca é completo, na medida em que a busca pela diferenciação/individuação constitui um embate do sujeito com os desejos que ameaçam essa categorização.
Olhando torto o outro
Essa perspectiva se aproxima da hipótese de que uma forma de “roubo de gozo” seria um forte motivador de práticas intolerantes na sociedade. Essas práticas realizadas por um indivíduo contra um outro “estranho”, poderiam ser vistas diferentemente do que usualmente é retratado como uma intolerância contra alguém “inferior”, mas, pelo contrário, percebidas como práticas contra um outro que representa uma ameaça, algo que escancara um desejo e uma pulsão que não é suportável para a consciência. Assim, o sujeito inveja a maneira como o outro goza do objeto (no caso dos negros a fantasia da superpotência sexual), uma forma que poderia destruir a capacidade do outro de gozar (Zizek, 2005).
No sentido da lei social, as normas são maneiras de limitar o prazer do outro, para que todos tenham as mesmas quantidades de prazer. Como não é possível garantir tal condição, é imposta então uma igualdade de proibições a todos os sujeitos: a justiça. Zizek (2005), no entanto, afirma que especialmente as sociedades ocidentais atuais se configuram como extremamente permissivas e, de tal maneira, invocam o oposto da proibição para uma busca incessante pelo prazer.
Apesar dos esforços das ditas minorias e das repressões legais aos atos de discriminação, percebe-se que a hostilidade continua e, assim, o futebol se torna um segmento onde as rejeições se reproduzem livremente. As torcidas, então, se definem pelas organizações grupais que produzem essas formas de hostilidade.
Nesse cenário de intolerância, a forma como os sujeitos reagem frente ao outro, através de sentimentos de angústia, ameaça e ódio, resulta não apenas no racismo, mas em outras formas típicas de estigmas, como xenofobia, homofobia, entre outros.
Diante disso, Zizek (2004) propõe uma condição ética de subjetividade que se apresenta como uma possibilidade de resolução interna para a intolerância. Segundo o autor, as pessoas não são apenas impenetráveis (não podem ser totalmente assimiladas) umas às outras, mas também são impenetráveis a si mesmas. Para ele, essa condição é uma limitação que possibilita a tolerância, na medida em que seria possível tolerar o outro, já que os aspectos internos (subjetivos) que motivam o intolerante a agir, isto é, a transparência da sua subjetividade, é desconhecida pelo próprio sujeito.
Thales de Almeida Nogueira Cervi é estudante de psicologia da Universidade Federal de São Carlos e membro do grupo de pesquisa Estudos sobre Intolerâncias.
* Este artigo é resultado de Bolsa de Iniciação Científica (proc. 2012/22972-1) da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Notas:
1 A frase foi escrita no dia 15 de maio de 2013 e encontra-se em http://www.facebook.com/AntiCorinthians , acessado na mesma data.
2 Aqui compreendemos “racialização” como a forma pela qual se criam estigmas relacionados a determinadas pessoas ou grupos. Segundo Ianni (2004), a “racialização” consiste na “transformação da marca em estigma, o que se manifesta na xenofobia, etnicismo, preconceito, segregação racismo” (p. 23). Falar sobre “raças” sempre envolve a “racialização”, incluindo ideias hierarquizantes e segregadoras. Esses estigmas não se limitam apenas a etnias, mas também a outras formas de “classificações”. “Estigma esse que se insere e se impregna nos comportamentos e subjetividades, formas de sociabilidade e jogos de forças sociais, como se fosse ‘natural’, dado, inquestionável, reiterando-se recorrentemente em diferentes níveis das relações sociais” (Ianni, 2004, p. 23).
3 A publicação foi feita no dia 3 de junho de 2013 e encontra-se em http://www.facebook.com/AntiCorinthians , acessado na mesma data.
Referências bibliográficas:
Dahia, S. L. M. “A mediação do riso na expressão e consolidação do racismo no Brasil”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 697-720, set./dez. 2008. Dahia, S. L. M. “Riso: uma solução intermediária para os racistas no Brasil”. Estudos e Pesquisa em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, 2º quadrimestre. 2010. < http://www.revipsi.uerj.br/v10n2/artigos/pdf/v10n2a06.pdf > Data de acesso: 25 de setembro de 2013. Fantini, J. A. Raízes da intolerância. Edufscar, 2014 Fantini, J. A. “The ‘racialized’ other: intolerance and political equality in Brazil and the United Kingdom”. Anais do Congresso: Psychoanalysis, Culture and Society na Middlesex University, London, Reino Unido, 2012. Fantini, J. A. Imagens do pai no cinema: clínica da cultura contemporânea. Edufscar, 2009. Freud, S. “Moisés e o monoteísmo, esboço da psicanálise”. In: Freud, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 23. Hobsbawm, E. “Futebol de hoje sintetiza a globalização: depoimento”. 30 de setembro, 2007. São Paulo: Ilustrada. Entrevista concedida a Sylvia Colombo. Hook, D. “‘Pre-discursive’ racism”. Journal of Community and Applied Social Psychology, Londres, p. 207-232, 2006. Ianni, O. “Dialética das relações raciais”. Estudos Avançados , v. 50, n. 18, 21-30, 2004. Zizek, S. “Neighbors and other monsters: a plea for ethical violence”. The Bible and Critical Theory, 2004. Zizek, S. “Some politically incorrect reflections on violence in France & related matters”, 2005. Disponível em: < http://www.lacan.com/zizfrance.htm .>. Acesso em 17 abril 2012.
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