REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Perspectivas para CT&I no Brasil - Carlos Vogt
Reportagens
Os (des)caminhos da publicação científica
Tássia Biazon e Thais Marin
Sistema de CTI cresce em quantidade e qualidade, mas faltam recursos
Cecilia Café-Mendes
Interdisciplinaridade em ensino e pesquisa acelera o desenvolvimento, avaliam especialistas
Erik Nardini Medina e Sarah Schmidt
Ciência com fronteiras: pesquisa, desenvolvimento e inovação nos âmbitos públicos e privados
Fabiana Alves de Lima Ribeiro e Nádia Salmeron
Ciência aberta – uma nova forma de fazer ciência
Tássia Biazon e Thais Marin
Desafios velhos e novos na popularização da ciência
Patrícia Santos
Artigos
Rumos do ensino superior no Brasil: expansão e democratização?
Maria Ligia de Oliveira Barbosa
Editoração científica e o império absolutista dos números
Cleber Dias
Refletindo sobre dinâmicas e interlocuções entre ciência e sociedade
Gabriela Marques Di Giulio
A ciência brasileira aos trancos e barrancos
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
A mercantilização da ciência e o lema “publicar ou perecer”: os interesses que encobrem e suas consequências1
Silvana Tuleski
Resenha
Print the legend
Bibiana Guaraldi
Entrevista
Stevens Rehen
Entrevistado por Tamires Salazar
Poema
Neymar
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Entrevistas
Stevens Rehen
O neurocientista atualmente é coordenador de pesquisa do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor), coordenador geral do projeto de criação do biobanco de células-tronco de pluripotência induzida (iPS) do Ministério da Saúde, e professor titular da UFRJ. Tem desenvolvido pesquisas sobre o zika vírus utilizando organoides cerebrais e é autor do livro Células-tronco: o que são? Para que servem?, direcionado ao público em geral. (Imagem Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino)
Tamires Salazar
10/05/2016
Há muita discussão a respeito do tradicional sistema de publicação científica, que, entre outros aspectos, gera uma pressão por produtividade e submete as pesquisas a sistemas tradicionais de avaliação e publicação. O que você acha desse sistema?

Um sistema de avaliação por pares é essencial para validar trabalhos científicos, que acabam sendo a credencial acadêmica de qualquer cientista. Contudo, ao longo do tempo, o processo sofreu distorções. É comum, quase automático hoje em dia, ao lembrar de um colega, nos perguntarmos “Quantos artigos tem?”, “Qual seu índice h?”, “Já publicou na Nature ou na Science?”. Essa forma de qualificar, ou melhor, quantificar, tem descaracterizado a essência da ciência. O sistema precisa evoluir.

A identificação de muitas fraudes científicas, inclusive nas revistas tradicionais centenárias, tem relação com o aprimoramento das formas de detecção de plágios e falsificações, mas também se relaciona com a valoração, baseada em números, do currículo de um cientista, o que, por sua vez, incentiva os chamados “periódicos predatórios. Ao final de tudo, a qualidade da ciência e o que é entregue para a sociedade tornam-se questionáveis.

Como esse sistema poderia ser melhorado?

A publicação na forma de preprints é uma forma de compartilhamento de dados que está começando a aparecer na área biológica. O preprint é um artigo científico compartilhado publicamente na internet antes de ser revisado por colegas da área. É uma estratégia que permite o compartilhamento rápido, fazendo com que quem de fato é interessado na área e conhece o assunto dê feedbacks, antes da publicação. Essa forma de compartilhar dados, já consolidada entre os físicos, ajuda também a registrar publicamente a contribuição científica de cada cientista. É claro que um preprint que venha a ser depois aprovado por revisores de revistas “tradicionais” terá um tipo de reconhecimento distinto, principalmente na área biológica e biomédica. O compartilhamento de preprints é uma forma de deixar a ciência mais transparente, acelerar e melhorar a qualidade do processo de avaliação dos artigos.

Você teve um artigo sobre zika publicado na Science depois de ele ter sido compartilhado na forma de preprint, lido por mais de 10 mil pessoas. Baseado na sua experiência, poderia comentar sobre as vantagens e desvantagens dessa forma de comunicar ciência?

A primeira vantagem é que, dessa forma, você registra internacionalmente a sua contribuição para aquele campo de atuação. Apesar de o artigo não ter sido aceito ainda para publicação em uma revista, esse processo ajuda a te posicionar, o que é importante se for um campo muito competitivo. Além disso, o processo de revisão por pares fica represado, em alguns casos por muitos meses, em muitas revistas científicas. Outra vantagem que percebi, com a minha experiência prévia, foi receber feedbacks que me ajudaram a melhorar a versão depois aceita para publicação. Em vez de dois ou três revisores, você submete seu trabalho a centenas, milhares de revisores em potencial. No caso específico desse artigo sobre o zika vírus, entrei em contato com a Science antes de submeter o manuscrito e eles autorizaram o compartilhamento como preprint.

Como desvantagem, citaria o fato de que se o artigo não estiver realmente bem feito, com erros, distrações, você poderá ser execrado, pois estará expondo seu trabalho a um número imenso de pessoas, sem o aval de outros pares do meio científico. Para publicar como preprint você tem que ter certeza da qualidade de seus achados. Numa revista tradicional, esse trabalho, antes de publicado, será, no mínimo, revisado por dois ou três cientistas, independentemente da qualidade desses revisores, mas isso, de certa forma, blinda o autor de eventuais erros ou distrações que não tenha percebido antes. Você precisa se preparar muito bem antes de compartilhar um preprint, e isso poderá tornar a ciência mais acurada, com menos erros, o que acaba sendo uma vantagem também.

Na sua opinião, quais são os rumos da publicação científica? Existe uma perspectiva de mudança?

Está evoluindo, há no momento um bom debate entre colegas que preferem o modelo tradicional e outros já percebendo a importância de outras formas de comunicação de dados científicos. Ficamos muito tempo presos a, por exemplo, revistas científicas impressas, mesmo com o advento da internet. Muitas nem mudaram ainda a plataforma para que sejam, de fato, revistas online, que tem toda uma maneira diferente de diagramação, de apresentação dos dados e métricas para mensurar o impacto do artigo. Hoje, já há revistas que medem quantas vezes o artigo foi twittado, comentado no facebook e em outras redes.

Eu imagino uma forma de publicação científica que vai mesclar esse compartilhamento público com uma avaliação crítica dos pares, até que, de fato, chegue a ser considerada uma publicação. É um processo. Acho que ninguém sabe exatamente os rumos, mas é certo que será diferente do atual.    

Em relação à pesquisa no Brasil, há mudanças na estrutura de fomento?

A consolidação da pesquisa científica no Brasil é consequência da criação das agências de fomento e do Ministério da Ciência e Tecnologia, que permitiram à comunidade científica responder a grandes questões de maneira ágil. Um bom exemplo tem sido a resposta dos cientistas brasileiros no caso do vírus zika. O que está deixando todo mundo assustado e preocupado é o que virá pela frente, porque retirar de maneira abrupta o fomento para as pesquisas científicas terá um impacto muito grande. No Rio de Janeiro, temos a Faperj numa situação muito complicada, e as perspectivas para fomento federal também são as piores possíveis.

Na lista dos atingidos pelo contingenciamento de verba do orçamento federal, está o MCTI. Além disso, há a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 19/2016, que, se aprovada, reduzirá à metade os recursos repassados para a Faperj. O que é preciso para que os tomadores de decisão entendam que “frear” a pesquisa em tempos de crise não é uma decisão sábia? 

Essas medidas refletem um desconhecimento da importância da ciência para o desenvolvimento econômico e social do país. A educação científica do público em geral, mas, em particular, dos legisladores, poderia tornar a ciência mais integrada ao cotidiano dos políticos – e é algo que fazemos muito pouco.

Temos vários exemplos de como a nossa comunidade política é analfabeta do ponto de vista científico. Participei, há alguns anos, de uma espécie de ciclo de atualização para deputados, organizado pela Mara Gabrilli. Eu e colegas da UFRJ fizemos apresentações a alguns deputados, sobre o impacto da neurociência sobre a saúde e qualidade de vida da população. É preciso fazer mais dessas atividades de divulgação científica.

Como isso não acontece, acabamos sem grupo que nos apoie de fato. Existe a bancada evangélica, a bancada da bala, a bancada do boi, mas não temos a bancada da ciência. Não que eu defenda e concorde com essa forma fragmentada com que estão dispostos os partidos políticos, muito pelo contrário, mas, de toda forma, precisamos de mais políticos entendendo a importância da ciência. Quando você tem, por exemplo, o próprio governador de São Paulo, criticando a Fapesp, que é um exemplo para todos, a gente percebe que o buraco é muito mais embaixo.

Um maior engajamento da comunidade científica na popularização da ciência ajudaria a incentivar o crescimento da pesquisa no Brasil?

A divulgação científica é essencial. Minha escolha profissional é consequência direta da divulgação científica. Na minha época, sem internet, havia a Super Interessante e a Ciência Hoje, e foi a partir dessas revistas que comecei a gostar de ciência e pensar como seria “legal” virar um cientista. Hoje eu tento fazer divulgação, mas é difícil você querer que todo cientista seja um divulgador. Precisamos, sim, de divulgadores de ciência, mas não necessariamente eles precisam ser cientistas. Obviamente uma boa formação em ciência, uma passagem por um laboratório, ou uma vivência em jornalismo científico, ajuda.

A enorme repercussão de suas pesquisas, tanto atualmente sobre o zika vírus, quanto há alguns anos sobre os estudos com células-tronco embrionárias, evidencia que no Brasil é produzida pesquisa de qualidade e alto nível. Contudo, não somos ainda país referência em P&D. O que, em sua opinião, falta?

Primeiramente gostaria de agradecer, mas ressaltar que tem muita gente trabalhando no Brasil com pesquisas de qualidade superior à minha. Para o país ser uma referência eu acho que falta tempo, falta história. Uma universidade tradicional americana ou europeia tem centenas de anos, enquanto as nossas são muito mais jovens. A Academia Brasileira de Ciência faz cem anos essa semana. O fato de não termos tanta história, uma tradição, dificulta alcançarmos um patamar de referência. Até temos áreas de grande relevância, mas ser referência de modo geral vai depender de quantidade, qualidade e, principalmente, condições de trabalho dos pesquisadores. A proporção do número de pesquisadores para o número de habitantes no país é muito baixa se comparada a outros países desenvolvidos. Precisamos de mais tempo, mais história, mais tradição como um país gerador de conhecimento e mais massa crítica. E isso tudo também vai depender de incentivo e fomento à pesquisa.

De que forma poderíamos dar maior visibilidade internacional ao conhecimento que é produzido no país?

Com a publicação em revistas de grande impacto, e isso depende de uma série de fatores, inclusive networking, você ter conhecimento e ser conhecido. A falta de domínio do inglês deve atrapalhar um pouco, mas é mais do que isso, passa por uma necessidade de internacionalização maior do que simplesmente o idioma, e vai desde ter pesquisadores brasileiros trabalhando no exterior e colaborando com pesquisas lá fora, até uma necessidade muito grande de internalizar a pesquisa internacional, isso é, receber pesquisadores estrangeiros, trazer gente de fora para colaborar na produção de conhecimento aqui dentro do país.

Infelizmente, ainda não estamos preparados. Tenho pós-docs estrangeiros que vieram super motivados para trabalhar no Brasil, mas temos problemas, por exemplo, para que a pessoa consiga abrir uma conta no banco, renovar o visto, é tudo muito difícil.

Outro ponto que pode também ajudar é a forma de avaliação de financiamento de projetos. Temos muitos projetos submetidos, mas pouca gente para avaliar, e, talvez por isso, algumas avaliações ruins. Uma forma interessante de solucionar talvez fosse ampliar internacionalmente o número de avaliadores. Se fosse regra submeter os projetos em inglês, principalmente nas áreas mais competitivas internacionalmente, e se eles fossem avaliados por um número maior de pesquisadores, inclusive internacionais, ligados às áreas das submissões, talvez isso ajudasse a melhorar a visibilidade e a pesquisa no Brasil.

Para você, quais as principais falhas do atual sistema de ciência e tecnologia no Brasil e como elas poderiam ser corrigidas?

A resposta curta é mais recursos públicos e um sistema que facilite as parcerias com a iniciativa privada. Que as universidades tivessem maior flexibilidade para receber doações e recursos privados, isso é um ponto crucial.

Outro ponto é que o sistema de avaliação deveria se internacionalizar. Poderíamos criar um banco de cientistas colaboradores estrangeiros para analisar. Essa prática acontece em alguns casos, mas não é de praxe, até porque submetemos projetos em português na maior parte das vezes. Tão importante quanto, os pesquisadores no Brasil, com projetos aprovados e, principalmente, reprovados, deveriam ter acesso aos pareceres, de modo a melhorar suas pesquisas. Desde que os pareceres sejam, de fato, úteis.