A primeira dificuldade com a qual nos deparamos é na tentativa de
ordenamento dessas palavras. O ecologista começaria com a palavra
ecologia; o economista com a palavra economia e o moralista com a
ética. Dá a impressão que tudo se equivale. Perde-se o senso da
totalidade e da complexidade em que determinada ordem dada às coisas
estabelece certas conexões dialéticas e não outras. Como construir um
projeto para o futuro se tudo se equivale?
Começarei lembrando esse estado de crise no qual nos instalamos numa
angústia, numa depressão ou numa tensão que não parece ter fim. Depois,
na tentativa de esboçar respostas, ou melhor, traçar trilhas incertas
ainda, mas que esperamos acabem desenhando caminhos, proponho que
enfrentemos a perspectiva de uma ética da responsabilidade, a partir de
um prisma no qual tempo e espaço encolhem e tornam próximo os que estão
"longe". Isso me leva a afirmar e ensaiar demonstrar que a perspectiva
ecológica, abordada com radicalidade, é renovadora da ética. Visão
idílica de uma improvável sociedade harmônica? Gostaria de mostrar, por
fim, que a sociedade sustentável e democrática que almejamos não é
tirada de um futuro imaginado na virtualidade absoluta dos nossos
sonhos, mas já está sendo preparado, vivido. A população da Amazônia
brasileira, na sua grande diversidade, nos guia, ao meu ver, nesse
caminho.
Crises e rupturas
Gilbert Rist, professor do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento, de Genebra, no seu livro Le développement. Histoire d´une croyance ocidental,
ressalta como, historicamente, a oposição colonizador/colonizado foi
substituída pelo binômio desenvolvido/subdesenvolvido; à diferença
radical, à ruptura, sucede uma unidade, um contínuo, pois pode-se
passar de um estado a outro.
O economista Walt W. Rostow, em As etapas do crescimento econômico,
publicado em Cambridge em 1963, consagrará essa ideologia do progresso,
escrevendo: “A considerar o grau de desenvolvimento da economia,
pode-se dizer que todas as sociedades passam por uma das cinco fases
seguintes: a sociedade tradicional, as condições preliminares à
partida, a partida, o progresso em direção à maturidade, a era de
consumo de massa”.
É
preciso reconhecer que as análises teóricas desenvolvidas desde os anos
40, a começar pela Cepal, complexificaram essa visão linear. Mesmo
assim, na sua quase totalidade, os governos dos países do Sul, sejam os
diretamente subordinados a alguma potência ocidental, sejam, no
passado, os não-alinhados, reunidos pela primeira vez em Bandung, na
Indonésia, em 1955, ou os alinhados com o bloco soviético, seja hoje a
coorte de países conduzida pelo FMI e o Banco Mundial, todos aceitaram
e continuam a aceitar essa ideologia do progresso, reclamando, desde
Bandung até a Rio 92, cooperação econômica, tecnologia e recursos
financeiros para chegar lá.
Os esforços para se opor a essa ideologia e ao avassalador domínio
econômico do Norte não foram bem sucedidos, como todos sabemos. A busca
concreta de um outro desenvolvimento, seja, no passado, de um país como
a Tanzânia de Julius Nyereré, ou, hoje, de um país como a Índia, sempre
encontra resistências ferrenhas que o inviabilizam, enquanto
iniciativas menores, tais como as hoje experimentadas por estados como
o Amapá e o Acre, ou, ainda, por milhares de entidades locais, ainda
suscita apenas ternura e comiseração, no melhor dos casos.
No plano teórico e político, vale lembrar o Relatório Dag Hammarskjöld,
publicado em 1975 para uma sessão da ONU, que queria propor “um outro
desenvolvimento fundado sobre a satisfação das necessidades, a self reliance,
a harmonia com a natureza e as mudanças estruturais” (Rist, 1995, 255).
Esse documento conheceu o destino reservado às propostas generosas: o
esquecimento. Suas idéias, porém, sobrevivem palidamente no relatório
anual sobre o desenvolvimento humano, do PNUD, que inspira tão somente
as rituais manchetes anuais da mídia.
Com a queda do muro de Berlim, a economia dominante, até então
parcialmente represada, pôde se expandir de modo devastador. Economia
devoradora, fagócita de conceitos, ideais, realidades, aspirações e
cuspindo os caroços: do desenvolvimento, sobra a selvagem lei do
mercado; da sustentabilidade, retêm-se a tentativa dos Estados Unidos,
de alguns países sócios menores e das classes dominantes e países do
Sul de usar de todas as formas de pressão e de regulação forçada para
perenizar a riqueza de poucos; do meio ambiente, sobra um setor a mais
para colocar sob a lei far-west
do capital; da ciência, a tecnociência em tresloucada carreira ao
serviço da realização do maior lucro do capital; da ética pública, um
espantalho para enganar os incautos que somos; do que chamávamos de
valores, algo de reduzido à esfera da vida privada e à relatividade
cultural.
Não preciso insistir sobre as conseqüências perversas dessa situação,
sobretudo as sociais e ambientais. Se fôssemos descrevê-las, dariam
inequivocamente bases para o que muitos estimam ser uma grave crise
civilizacional de múltiplas facetas: político-ideológica, cultural,
epistemológica e ética.
É possível superar essa crise tentando influenciar por dentro os rumos
da economia, moderando os seus apetites, introduzindo as noções de
eficiência (máximo de produção com o mínimo de recursos) e de limites
(levar em conta na produção que os recursos são finitos)? O apelo à
solidariedade para com as gerações futuras é suficiente para sustentar
essas noções? Giordano Bruno, frente a instituições esclerosadas, já
perguntava como seria possível aos donos do poder reformar o poder, e
Lampeduza colocava na boca do seu personagem Tancredi, em seu romance O Leopardo,
a máxima segundo a qual “se queremos que tudo fique como está, é
preciso que tudo mude”. A reforma não é possível porque as instituições
anônimas atrás das quais se abrigam os donos do poder econômico e
acionistas são insensíveis a quaisquer considerações outras que não
seus interesses imediatos. Porque estão em vias de domesticar a
democracia e o poder político. Mas também porque é o conjunto da
humanidade que parece ter perdido o rumo do seu futuro.
Tornou-se banal dizer que momentos de crise são momentos propícios para
rupturas, rupturas que possam provocar o surgimento do novo. Destacaria
três rupturas que parecem se impor para sairmos da paradoxal pasmaceira
que nos invade na hora em que estamos frente a esse desafio: a ruptura
política com um modelo de democracia representativa cristalizada no
Estado-nação; a ruptura epistemológica com um modelo de conhecimento
que separa o objeto do sujeito e só percebe a realidade fragmentada e
com o seu corolário atual, a tecnociência; e a ruptura ética. A minha
pretensão aqui é tão somente iniciar – eu e talvez alguns leitores –
uma reflexão sobre a relação entre ética e meio ambiente.
Por uma ética da responsabilidade
Preliminarmente é bom dizer, mesmo que sumariamente, de que ética estou
falando e o que, a meu ver, caracteriza a crise da ética hoje.
Somos seres éticos: temos a capacidade de nos comportar e agir em
conformidade com juízos de valores sobre o que é bom e sobre o que é
mal no nosso agir individual e social, na relação com os outros e o
mundo. Mas quem decide sobre o que é o bem e sobre o que é o mal?
Sabemos mais ou menos o que é bom para nós: ser alimentados, ser
respeitados e amados, etc. e estamos dispostos a retribuir esse bem
para os que nos são próximos. Mas e os mais distantes? Aqueles e
aquelas para os quais não há aparentemente laços de reciprocidade e de
retribuição possível?
A postura ética surge no reconhecimento com que pai e mãe, olhando e
acariciando o recém-nascido, se sentem, espontaneamente, sem precisar
de análises filosóficas, de preceitos religiosos ou morais,
responsáveis por essa criança e por seu futuro. Os pais não têm a
obrigação de fazer seus filhos felizes, mas têm a obrigação de cuidar
para que o máximo possível, dentro de suas possibilidades, das
condições para tanto sejam reunidas. O filósofo e moralista Hans Jonas
enuncia que “a obrigação para com a posteridade... é o arquétipo de
todo agir responsável...que a natureza implantou poderosamente em nós
(pelo menos na parte da humanidade procriadora)” (Jonas, 1995, 88). Ao
abraçar essa criança, os pais, de um certo modo, abraçam o mundo,
firmando compromisso de responsabilidade para com esse mundo que será
dela.
Apesar de todas as tentativas racistas de classificar radicalmente a
humanidade em raças e culturas superiores e inferiores, a antropologia
e a biologia, em particular a genética, afirmam, cada vez mais, com
maior fundamentação, a unidade do gênero humano. Mais se apontam
diferenças, mais aparece, ao mesmo tempo, a unidade. As diferenças não
são fragmentação e hierarquização, mas, pelo contrário, manifestações
da riqueza da unidade fundamental do ser humano. Não são somente as
ciências que nos levam a fazer essa afirmação. Quem se aproximou de uma
outra cultura, de um outro povo com o coração e a mente abertos se
reconhecerá nessas linhas de Edgar Morin: “O importante é que a
diferença racial tenha alterado tão pouco a unidade cerebral do homo sapiens.
Alterou igualmente muito pouco a unidade afetiva. A despeito da
diáspora etno-cultural, todos os seres humanos se expressam
fundamentalmente pelo sorriso, o riso, as lágrimas. Dispõem, não só dos
mesmos meios de expressão, mas expressam uma mesma natureza afetiva e
isso a despeito dos adornos, variações, estereótipos, codificações,
ritualizações que as culturas trouxeram ao sorriso, ao riso e às
lágrimas” (Morin, 1973, 224)
Talvez possamos perceber algo que nos une além desta “unidade afetiva”.
Em qualquer sociedade, mesmo nas mais rígidas e reprimidas, existem, em
estado latente, valores que formam o substrato de uma sociedade, que na
tradição ocidental chamaríamos de democrática, tais como vontade de
liberdade e de autonomia aliados ao senso da fraternidade e da
solidariedade, reconhecimento da possibilidade de igualdade entre os
seres humanos. Aparecem ou voltam a se manifestar logo que algum
acontecimento pessoal ou coletivo, que caracterize uma desestabilização
cultural e um choque intercultural, o permite.
Então, se a ética é um dado, como se fosse, de um certo modo, parte do
nosso patrimônio genético, como podemos falar de crises? Não se afirma
aqui que somos herdeiros de valores imutáveis. Sobre um fundo comum de
humanidade, a ética se constrói através do tempo, das sociedades e das
civilizações como fato cultural pela interpenetração das culturas, das
visões religiosas e dos sistemas ideológicos e políticos, pela maior ou
menor influência de uns sobre outros. Progressivamente, ao longo da
história, constitui-se um referencial comum de valores acima dos
particularismos.
Talvez a minha reflexão aponte para uma certa visão ingênua da
humanidade. Definitivamente não somos iguais. É verdade, mas a crise da
ética é a dualização radical do mundo: o mundo real, do poder, da
economia e da tecnociência, e o virtual, dos valores éticos; o mundo
dos incluídos e o dos excluídos; o mundo do hedonismo individualista e
o outro, da responsabilidade; o bem e o mal. Mas as fronteiras traçadas
entre dois mundos não demarcam duas porções da humanidade. Elas
atravessam países, povos, classes e, em definitivo, cada ser humano. E,
ao atravessá-los, elas se diluem tanto que se torna difícil distinguir
onde está o bem e o mal. Até onde, por exemplo, a justa satisfação das
minhas necessidades me faz participar da irresponsabilidade da
sociedade dominante frente ao direito dos outros de satisfazer as suas?
A humanidade sente que a sua unidade ontológica encontra-se com a
possibilidade de uma humanidade contemporânea unida por valores, ao
mesmo tempo, comuns e expressos de mil formas. E é justamente esta
possibilidade que está em crise. Parte da humanidade recusa dar
conseqüência a essa unidade original e aceitar essa possibilidade. E
temos a sensação assombrosa que essa parte está crescendo
assustadoramente, o que dificulta enormemente uma revolução
civilizacional. E, enquanto temos dificuldade em distinguir o bem do
mal, nos obstinamos a nomeá-lo e apontá-lo, contribuindo para fazer das
diferenças e das contradições irremediáveis divisões e fragmentações.
K.O. Apel, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, distingue três
“esferas” da moralidade (Apel, 1987, 46 e ss.). Chama a primeira de
“microesfera”, a das relações de intimidade e de proximidade. Cuidar
dos filhos, dos pais ou do companheiro ou da companheira é bom. Essa
responsabilidade cria deveres para com eles e eles passam a ter
direitos sobre mim. Nesse nível, a ação ética fica restrita aos que
estão próximos a mim, seja pelos laços de sangue, de amizade, de classe
ou de vizinhança.
A segunda é a “mesosfera”, das relações que se formam no quadro da
nação. Com a modernidade iniciada com o Renascimento e consagrada com
as revoluções do século XVIII, o domínio da ética amplia-se: ao
próximo, como diz François Ost, sobrepõe-se o cidadão. Liberdade,
igualdade, fraternidade passam a ser os valores fundamentais, que
definem a boa nação democrática e servem de referências para a ação do
Estado, de um lado, e do cidadão, do outro.
Não cabe aqui mencionar as múltiplas tensões e contradições subjacentes
a esse modelo ideal. De qualquer modo, mesmo com todas as hipocrisias e
as opressões individuais e coletivas, as guerras civis e lutas de
classe, com todos os conflitos, abertos ou velados, a escravidão e o
colonialismo colocando em cheque esse modelo, mesmo com tudo isso, as
pessoas, nos países ocidentais, tiveram a sensação de viver inseridas
durante longos períodos em estruturas institucionais (societárias,
religiosas, jurídicas, culturais e jurídicas) que asseguravam um grau
de respeito a deveres e direitos recíprocos suficiente para garantir a
convivência dos cidadãos e a coesão da nação.
Hoje, essas duas esferas da ética estão em crise. Num mundo urbanizado
e individualista, atravessado por múltiplas influências culturais e
ideológicas e progressivamente sufocado pela mão de ferro do mercado,
dilui-se a noção de próximo. No plano da mesosfera, mal começávamos,
ainda saindo da ditadura, a inventar a cidadania e esta já definhava.
Depois do grande mutirão cívico que representou a elaboração da
“Constituição cidadã” de 1988, tivemos dificuldade em exercer a nossa
cidadania plena, pois a discussão democrática do futuro nos é
demasiadamente subtraída. Tornou-se domínio quase que absoluto das
tecnoburocracias nacionais e internacionais a serviço de um capitalismo
sem rosto. Ficou para nós a periferia da ação política: as políticas
compensatórias e o meio ambiente. Numa sociedade em que o Estado não
viabiliza os direitos dos cidadãos e não favorece a participação cidadã
na ação político-social, perde-se em contrapartida a noção dos deveres
e da responsabilidade, a noção de cidadania.
O ideário da cidadania desmorona de vez com as alterações sofridas
pelas relações interpessoais e com as fraturas que aparecem no sentido
coletivo do pertencimento a uma nação –
um território, uma história e uma sociedade. Pertencimento colocado em
xeque pelos detentores da riqueza e do poder, profundamente
internacionalizados e que, freqüentemente, só enchem a boca de
patriotismo para manter, até a seus próprios olhos, uma ilusão de
virtude, necessária à manutenção da relação dominador-dominado. Também
na massa da população, submetida ao rolo compressor da influência
cultural norte-americana, ponta de lança de um novo ciclo de dominação
de um capitalismo tentacular e que adquire múltiplas formas, esse
pertencimento é debilitado.
Como conclui o mexicano Canclini, “nas novas gerações, as identidades
se organizam menos em torno dos símbolos histórico-territoriais, os da
memória-pátria, do que em torno dos de Hollywood, Televisa ou Benetton”
(Canclini, 1996, 380). Talvez esta observação aponte para um dos
motivos que fez com que parte da humanidade tenha sentido tanto o
atentado que atingiu Manhattan, tão familiar a nosso imaginário. E é
nessa época de crises e de rupturas que se afirma uma terceira esfera
da ética, a “macro-esfera”, representando a idéia de cidadania
universal.
Grandes riscos já afetam e podem afetar ainda mais a humanidade no seu
conjunto: riscos ambientais, embora ainda um pouco imprecisos; riscos
econômicos, com a sua capacidade de varrer do mapa economias emergentes
e de expandir dramaticamente a pobreza e a exclusão; riscos políticos,
que nos deixam entre a perspectiva de submissão total à hegemonia
norte-americana e a de conflitos de baixa ou média intensidade; riscos
tecnológicos.
Estes riscos são em boa parte manifestações de “três desequilíbrios
maiores: entre o Norte e o Sul do planeta; entre os ricos e os pobres
no seio de cada sociedade; entre os seres humanos e a natureza”
(Aliança 1996) . Eles nos falam da grande atualidade dessa macro-esfera
e da premência de formular princípios éticos globais amplamente
aceitos. Estamos longe disso! É nessa hora que uma perspectiva
ecológica, sem dúvida, aporta algo a uma ética contemporânea que nos
prepare para o futuro.
A perspectiva ecológica renovadora da ética
Tornou-se já comum afirmar que a reflexão sobre o meio ambiente nos
leva a acabar com a separação radical entre o ser humano e a natureza,
consagrada em termos filosóficos por Descartes, que fez do homem
pensante o mestre e possuidor da natureza, matéria a transformar e
re-fabricar. A ecologia, nota François Ost, registra na história do
universo um continuum
marcado por dois saltos qualitativos: o surgimento da vida e o do
sentido (a hominização), o que o faz afirmar: “Não há mais, de um lado,
o ser humano e a natureza do outro; é no seio de cada ente que passa
doravante a diferença: o homem é, ao mesmo tempo, matéria, vida e
ciência, capaz de significação, natureza e cultura.” (Ost. 1995, 255)
Edgar Morin, ao introduzir o leitor ao pensamento complexo, por sua vez
escreve: “Assim, o mundo está em nossa mente nosso espírito, a qual
está no interior do mundo”. (Morin, 1990, 60) Cada ser humano é assim
herdeiro do passado, nos seus genes e na sua cultura, e responsável por
fazer frutificar para os seus descendentes essa herança.
Poderíamos dizer que o passado do mundo e da humanidade está em cada um
de nós. Que somos cada um como um condensado do mundo. Nos situamos na
história da humanidade, que vai além do tempo histórico que ela
constrói e se estende desde antes do surgimento da vida. Entende-se
assim a humanidade não somente como herdeira de um patrimônio cultural
expresso nas religiões e filosofias, nas línguas, nas artes etc, mas
herdeira também de uma natureza da qual emergiu e à qual pertence.
Modificado pela natureza, o ser humano, por sua vez, a transformou
profundamente. Na sua dominação da natureza, o ser humano, até o século
passado, embora fosse capaz de marcar profundamente vastas regiões, não
as modificava em geral de modo irreversível. Ou, quando isso aconteceu,
como foi o caso de regiões do hoje Próximo Oriente, essas modificações
ficavam circunscritas e não afetavam o conjunto do planeta. Isso mudou.
Basta olhar a diferença entre a ocupação do cerrado pela pecuária até
os anos 70, de fraco impacto ambiental, e a expansão da soja hoje, que
afeta em profundidade e por um longuíssimo tempo o ambiente. É
aterrador o contraste entre a ocupação tradicional das florestas
tropicais e as frentes de desmatamento da pecuária extensiva e da
exploração madeireira, produzindo catástrofes desde já incontroláveis,
como as que ocorreram em 1997 nas ilhas do sudeste asiático e, em 2000,
em Roraima. O desaparecimento de espécies vegetais e animais,
relativamente lento até os anos 50, tende a uma aceleração em
progressão geométrica. A velocidade com que se processam essas mudanças
radicais e o seu alcance se dão em conformidade com a nossa época em
que tempo e espaço se comprimem. O futuro e o outro lado do mundo nunca
mais serão distantes porque já estão sendo impactados pela ação e as
decisões humanas, aqui e agora.
A humanidade, além de não conseguir preservar o patrimônio que recebeu
para repassá-lo adiante, o dilapida em pouquíssimas gerações e
menospreza o fato de que nosso oikos, nosso habitat, estende-se às dimensões do mundo e constitui uma moradia única que se passa de geração em geração.
Hans Jonas enuncia as conseqüências éticas dessa nova situação da
humanidade nos seguintes termos: “Hoje, a ética tem a ver com atos que
têm um alcance causal incomparável em direção ao futuro, e que são
acompanhados de um saber de previsão que, independentemente do seu
caráter incompleto, vai muito além, ele também, do que se conhecia
antigamente. É preciso acrescentar à simples ordem de grandeza das
ações a longo termo, freqüentemente a sua irreversibilidade. Tudo isso
coloca a responsabilidade no centro da ética, inclusive os horizontes
de espaço e tempo que correspondem aos das ações” (Jonas, 1995,17).
Está se falando aqui da responsabilidade para com a humanidade futura.
François Ost, por sua vez, fala de “responsabilidade-projeto,
mobilizada pelos desafios do futuro, de preferência a uma
responsabilidade-imputação, presa às culpas do passado. Seus
beneficiários são as gerações futuras e não a natureza enquanto tal.”
(Ost, 1995, 296).
Vê-se que, entre as três esferas da moralidade que guiaram essa
reflexão, não existe uma hierarquia ou alguma solução de continuidade.
A dilatação da responsabilidade a dimensões espaciais e temporais que
escapam ao alcance da nossa experiência individual faz com que o
“próximo” seja meu familiar, meu vizinho e, ao mesmo tempo, meu
semelhante que nunca encontrarei e sempre desconhecerei. Esta reflexão
vai de encontro ao que declarava o populista russo Petrachewski: “Não
encontrando para mim nada que seja digno do meu apego, nem entre os
homens, nem entre as mulheres, me consagro ao serviço da humanidade”
(citado por Nicolas Baerdieff in Sources e sens du communisme russe).
A percepção das ligações existentes entre as três dimensões da ética
propostas aqui é fundamental para fugir de duas armadilhas:
A primeira é a da “deep ecology”
(ecologia profunda), pouco difundida entre nós. Simplificando,
poder-se-ia dizer que, ao se pensar a Terra como sistema vivo e ver
como está sendo agredida pela humanidade, no afã de preservá-la,
acaba-se afirmando a supremacia da vida em si sobre todo projeto da
humanidade. O antropocentrismo, que afirma que o ser humano é a medida
de todas as coisas, deveria ser substituído pelo ecocentrismo, em que a
Terra como sistema vivo se torna o centro das preocupações humanas. Sem
ter condições de desenvolver uma reflexão mais aprofundada sobre essa
corrente ambientalista, contento-me em observar que a “macro-esfera” da
ética aqui apresentada sublinha a responsabilidade do ser humano sobre
o destino da Terra, porém como seu habitat e parte intrínseca
dele-mesmo. Se o ser humano é capaz de responsabilidade para com seu
habitat é porque nele, no seu “próximo”, nesse território que ele chama
de pátria, ele é capaz de reconhecer o mundo. Portanto, nem
antropocentrismo nem ecocentrismo, mas uma totalidade complexa feita de
complementaridades e de contradições, de dissonâncias e de harmonias.
Essa totalidade somente adquire existência porque existe o pensamento
humano que lhe dá sentido, para o bem e para o mal. O homem descentra a
sua perspectiva sobre o mundo: ele-mesmo não é mais o centro absoluto;
muda de lugar, em combinações múltiplas com a natureza e a Terra, e
isso é fundamental.
Não é menos fundamental afirmar que, apesar de deslocá-la, o ser humano continua tendo uma perspectiva. É sujeito
chamado à responsabilidade. Quanto mais se fala de natureza e de meio
ambiente, mais se enfatiza a cultura e a humanidade. Correríamos o
risco de antropomorfismo se disséssemos que a natureza tem direitos e
deveres. Mas o direito e a necessidade de cada ser humano a um ambiente
sadio e a um futuro digno, o direito que tem a vida futura de
desabrochar o obrigam a respeitar e conservar essa natureza, a assumir
para com ela uma “responsabilidade assimétrica”, como disse Hans Jonas.
Assimétrica, pois não há reciprocidade moral; não há contrato entre
duas partes.
A segunda armadilha seria a de tomar como referência dessa nova ética
uma humanidade abstrata, como coletivo indiferenciado, ao qual seria
atribuída a responsabilidade para com o futuro, esquecendo-se o
presente e as profundas clivagens que a atravessam. Sabemos e
vivenciamos a profunda desigualdade na distribuição e na apropriação
dos recursos naturais e do meio ambiente, o que evidencia a enorme
diferença existente nos graus de responsabilidade de cada um. Vemos
como, e isso é particularmente visível na cidade, às manifestações de
exclusão social, acrescenta-se a exclusão e mesmo uma certa apartação
ambientais. O Rio de Janeiro pobre é, geralmente, mais distante das
praias e, quando se abre uma Linha Amarela que encurta as distâncias e
o aproxima da Barra da classe média, o murmúrio dessa classe média
contra os invasores torna ainda mais visível esse apartheid
sócio-ambiental. Nesse plano, a perspectiva ecológica alarga a nossa
percepção dos valores que sustentam a democracia e dá novas formas a
certos conflitos sociais, que passam a se chamar de “conflitos
sócio-ambientais”. Ao dar concretude à nossa humanidade universal, ela
revigora o sentido da “mesosfera” da cidadania que se constrói na
escala da nação.
A Constituição de 1988 legitima essa visão quando declara que o meio
ambiente é “bem de uso comum do povo”. E é baseado nesse princípio que
Henri Acselrad reflete sobre o sentido dos conflitos ambientais no
Brasil:
“Essas lutas têm por objetivo geral introduzir princípios democráticos
nas relações sociais mediadas pela natureza: a igualdade no usufruto
dos recursos naturais e na distribuição dos custos ambientais do
desenvolvimento; a liberdade de acesso aos recursos naturais,
respeitados os limites físicos e biológicos da capacidade de suporte da
natureza; a solidariedade entre as populações que compartilham o meio
ambiente comum; o respeito à diversidade da natureza e aos diferentes
tipos de relação que as populações com ela estabeleçam; a participação
da sociedade no controle das relações entre os homens e a natureza”
(Acselrad, 1992, 19).
Muitos problemas ambientais hoje colocam a impossibilidade de tratar as
poluições, a degradação do meio ambiente e o esgotamento dos recursos
naturais como uma questão privada. O fato de que a maioria das
agressões afeta a outros, próximos ou distantes, hoje ou no futuro,
fundamenta a indivisibilidade do patrimônio natural, proclamada na
Constituição, e coloca limites à propriedade privada. A derrubada da
mata na propriedade afeta, multiplicada por milhares de derrubadas e
queimadas, clima, regime e perenidade das águas, biodiversidade, saúde,
etc. O uso de pesticidas sobre as culturas afeta não só a saúde do
produtor mas a dos consumidores, a qualidade do solo e sua capacidade
futura de produzir, a resistência das plantas, a segurança alimentar no
futuro, etc. As opções por uma grande barragem hidroelétrica ou por uma
usina termoelétrica, por uma BR que corte a Amazônia ou por uma
hidrovia como a Paraguai-Paraná ou a Araguaia-Tocantins são tão
importantes que é muito pouco realizar Rimas – Relatórios de Impacto Ambiental –
e burocráticas audiências públicas antes de implantar essas obras.
Deveriam ser exigidos grandes debates na sociedade que as examinassem
sob a ótica da responsabilidade-projeto e da solidariedade para com os
brasileiros de amanhã e para com as populações atingidas, que, por
serem em geral índios, pequenos produtores, pescadores e extrativistas,
não pesam tanto nas decisões quanto os acionistas dos bancos
financiadores, grandes consumidores industriais de energia,
exportadores de soja e empreiteiros.
A consolidação do capitalismo associada ao desenvolvimento das idéias
liberais fez com que o indivíduo se tornasse centro da ética, e a
liberdade individual o seu valor mais precioso. Se o capitalismo de
cada dia mostra a que aberrações leva o individualismo absoluto, a
derrota do socialismo soviético provou que de fato não se pode
construir uma sociedade sem levar em conta os indivíduos com seus
interesses e seus desejos. O futuro parece estar na reconciliação do
coletivo e do individual, da solidariedade e da liberdade, da igualdade
e da diferenciação. Ao recapitular o que se constitui no melhor do que
somos, pergunto-me por qual monstruosidade chegamos a ter como
categoria essencial do pensamento comum a economia, e ainda por cima
maquilada de “desenvolvimento sustentável”? Sem medo de ser chamado de
dinossauro, penso que o momento atual deveria ser de reafirmação do
valor central da solidariedade, valor assentado sobre o senso do dever
e sobre a esperança, aquela que pode nos levar a assumir a
“responsabilidade-projeto” para com o futuro da humanidade e do
planeta.
Uma ética renovada da democracia fundadora de uma sociedade sustentável. O exemplo amazônico brasileiro
O uso do conceito de “desenvolvimento sustentável” como perpetuação da
ilusão do progresso não deve nos levar a concluir que está na hora de
abandonar o conceito e o terreno aos abutres, embora prefiramos falar
de “sociedade sustentável”. Propõe-se aqui, à luz de flashes
amazônicos, mostrar como o que chamei precariamente de “ética renovada”
é vivido de um certo modo na Amazônia e pode dar elementos para pensar
uma sociedade sustentável na Amazônia.
Formada muito recentemente, à escala dos processos geológicos e
naturais, a existência da floresta amazônica faz refletir sobre a
fragilidade do nosso futuro. A floresta tem uma importância inegável
como sorvedouro de CO2,
umidificadora e amenizadora do clima, conservadora viva da variedade da
vida. Mas demonstra agora uma fragilidade patente no balanço
produção/consumo de CO2, ameaçado pela queima crescente da
mata e dos campos; nos equilíbrios climáticos cujos periódicos
desajustes vêm se multiplicando pela intervenção dos aprendizes de
feiticeiro que somos; na biodiversidade aparentemente inesgotável mas
cuja erosão pode chegar a um crescimento geométrico; nas suas águas,
visível no volume e no regime dos afluentes da margem direita do
Amazonas e na tendência a menor umidade de grandes áreas de florestas.
Por isso, a população amazônica se vê investida de uma missão de
conservação do que seria “patrimônio da humanidade”.
Os setores econômicos e políticos dominantes consideram a Amazônia como
a última fronteira a abrir ao seu voraz apetite de lucro, e, por isso,
não hesitam em instalar no congresso uma CPI das ONGs, sem nexo nem
foco, e pressionar por todos os meios por mudanças catastróficas do
Código Florestal. Por que então não escutar sua população? A
conservação da Amazônia é ou, mais exatamente, era o projeto de futuro
dos povos indígenas e dos caboclos ribeirinhos, freqüentemente
obrigados hoje, por condições de sobrevivência, a liquidar com os seus
recursos. Estas populações colocavam limites culturais e religiosos à
exploração da floresta. Limites acionados unicamente em função das
necessidades de reprodução individual e coletiva, não só das famílias e
comunidades de hoje, mas das do futuro. A natureza, fonte de
espiritualidade e de vida, não é algo que se quer dominar. Negocia-se
com ela, que é temida, respeitada, manejada, assegurando que ela vai
continuar a dar fartura e sustento.
Freqüentemente, certos grupos sociais amazônicos, semi-extrativistas
semi-produtores, foram apressadamente apresentados como vivendo em
regime de subsistência, distantes do mercado. Não é verdade, mas a
inserção de muitos deles no mercado dava-se, e ainda se dá, nos marcos
dessa reprodução familiar e não do lucro capitalista; portanto
colocavam-se limites à exploração. Quanto à extração da borracha
nativa, as condições mesmo da sua exploração, depois da primeira fase
de dizimação total dos seringais do baixo Amazonas, exigiam que fosse
preservado o ambiente natural.
Se essas estratégias de sobrevivência aparecem hoje mais merecedoras de
registro etnográfico do que de incentivo econômico, as grandes questões
ambientais nos fazem descobrir como esses povos e grupos sociais estão
inseridos num projeto ético que liga a sua realidade à macro-esfera da
ética. Sua existência de sacrifício e de teimosia lembra que não se
pode construir desenvolvimento a custo da insustentabilidade e do
desaparecimento de sociedades, pois, com eles, desaparece a
possibilidade de um mundo humanizado, quer dizer um mundo onde o ser
humano possa viver como gente. Lembra a continuidade e a coerência
existentes entre a forma como se gera o quotidiano e a gestão do futuro
da humanidade. Recorda, enfim, que existe a possibilidade de um outro
mercado, a serviço da vida e não do lucro.
Não se trata de voltar ao passado e de isolar num ambiente anacrônico
povos indígenas ou de restituir a extrativistas um mítico paraíso que
nunca tiveram. A Amazônia quer hoje encontrar novos caminhos para um
genuíno desenvolvimento sustentável. Duvido que estes caminhos possam
ser encontrados pelos grupos econômicos e políticos que investem,
depois do pasto, da mineração e da metalurgia bruta, na segunda onda,
da madeira e do alumínio, ou já na terceira, dos grãos, em especial da
soja. Pois continua a perspectiva de enclaves, da Zona Franca e Carajás
até o Brasil em Ação, cujos projetos de infra-estrutura atravessam a
Amazônia como um corredor obrigatório para exportação. Falta o debate
com a sociedade amazônica no seu conjunto. Falta a percepção que a
população da região deve ser a base e o motor do futuro da região.
Falta cultura no sentido de uma visão do mundo fundada sobre os valores
mencionados aqui. Falta ética.
O que falta às classes dominantes encontra-se nas classes trabalhadoras
e “povos da floresta”. Organizações indígenas, movimento sindical no
campo, movimento dos seringueiros, dos colonos da Transamazônica, dos
pescadores artesanais, das cortadoras de babaçu, movimentos urbanos,
fóruns de entidades, ONGs, setores políticos, pessoas de boa vontade...
uma multiplicidade de pessoas e grupos colocam ou começam a colocar em
prática a “responsabilidade-projeto” construtora do futuro. Em centenas
de experiências, de projetos e de propostas, estão esboçando um outro
tipo de desenvolvimento para a região.
Se o poder – qualquer poder –
não se auto reforma, a construção do futuro exige, portanto, mudanças
no poder. Mas como um novo poder pode evitar reproduzir automaticamente
os vícios do antigo poder? Como pode se levantar sem ser preso ao chão
do imediato pelo peso do quotidiano e ao círculo estreito de uma moral
da reciprocidade para com a sua clientela? A ética da
responsabilidade-projeto para com o futuro pode ser o impulso que
coloque em movimento a constituição de um novo poder e o ajude a
levantar vôo.
Jean-Pierre Leroy é educador, assessor da Área de Meio Ambiente e
Desenvolvimento da Fase e membro da Coordenação do Fórum Brasileiro de
ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
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