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Reportagem
Realista, político e autoral, cinema latino-americano dos anos 1960 buscou identidade própria
Por Tamires Salazar
10/11/2016

A partir da década de 1960 os cineastas latino-americanos começam a buscar um cinema de ação conscientizadora e transformadora, onde as pessoas pudessem se encontrar e se reconhecer. Este cinema tem como reduto festivais, cinematecas e cineclubes. “O cinema latino-americano começa a querer dar uma cara mais real, política e autoral para seus filmes”, diz Mariana Mól, doutora em artes da UFMG e especialista em cinema latino-americano.

O novo cinema latino-americano se consagrou em 1967, no Chile. O Festival Internacional de Cinema de Viña del Mar reuniu nomes como os brasileiros Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, o cubano Humberto Solás, o argentino Leopoldo Torre Nilson, o chileno Miguel Littin e o boliviano Jorge Sanjinés. Cada país da América Latina vivia, na época, contextos sociopolíticos diversos e o festival possibilitou o encontro de distintos movimentos nacionais: Cinema Novo no Brasil, Icai em Cuba, Libertação na Argentina, Grupo Ukama na Bolívia, Independente no México, Experimental e Novo Cine chileno, Terceiro Mundo no Uruguai, Documental na Colômbia, Novo na Venezuela etc.

Apesar dos distintos nomes e contextos, a vontade política de transformação social convergia os cineastas para pontos em comum. Nesse festival, de Viña del Mar, ficou claro que, mais do que nunca, era necessário se reconhecer nas imagens, buscando identidade ao produzir um cinema com mais vontade do que técnica, com mais potência do que rigor estético. A ideia primordial era produzir um cinema diferente, nem de entretenimento, nem de evasão. “O cinema devia servir à conscientização sobre os problemas da pobreza e da exploração da América Latina e sobre a política entreguista e antipopular de suas classes governantes”, explica Marina.

A ideia fundamental era, portanto, a construção de uma cinematografia própria e liberta, totalmente aberta à experimentação, que buscasse novas linguagens que permitissem o distanciamento das formas e conteúdos do cinema industrial e de consumo. O lema do brasileiro Glauber Rocha – “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, traduzia perfeitamente o espírito da época.

No Brasil, as críticas à chanchada e ao modelo hollywoodiano da Vera Cruz funcionaram como um instrumento de retórica contra tudo o que havia sido feito no cinema nacional até então e para definir as linhas gerais do que seria o cinema novo no Brasil. Ao lutar para que o cinema se tornasse uma expressão da cultura brasileira, esse movimento pode ser considerado um herdeiro da geração modernista dos anos 20 e 30. Glauber Rocha, considerado por muitos o porta-voz do movimento, deixa claro, em 1962, os desejos dos cinema-novistas brasileiros: “Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isso nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa”.

Assim, as produções desse período começam a mostrar a miséria e os problemas sociais dentro de uma perspectiva crítica, contestadora e cultural. Nomes como Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Miguel Borges, Paulo César Saraceni, dentre outros, deram imagem e som ao movimento no Brasil, em filmes como Mandacaru vermelho (1961), Cinco vezes favela (1962), Deus e o diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e Macunaíma (1969).

Golpe e recessão

Nas décadas de 1970 e 1980, o contexto político na América Latina não era o melhor para o fortalecimento do cinema. “As grandes ditaduras militares do Cone Sul e a progressiva aparição do tema da dívida externa no continente foram mais freio que impulso para uma arte ainda jovem para esses países”, afirma Mariana.

No Brasil, o governo militar cria a estatal Embrafilme, com o intuito de promover (e controlar) a indústria cinematográfica nacional. Com financiamento público e salas de exibição garantidas em lei, a Embrafilme promove os filmes nacionais em meio ao domínio dos filmes estrangeiros. Em São Paulo, outro movimento que surge nessa época é o Boca do Lixo, que produz, no período de 1960 a 1980, filmes de baixo orçamento, com forte apelo erótico, conhecidos como pornochanchadas.

Na década de 1980 o cinema latino-americano enfrenta uma grave crise devido à forte recessão econômica da época. No Brasil, os donos de cinema começam uma luta na justiça contra a obrigatoriedade de exibir filmes nacionais e muitas salas param de passar os filmes brasileiros. A “Lei do Curta”, criada em 1975, foi aperfeiçoada em 1984 e garantiu que antes de todo longa estrangeiro um curta-metragem brasileiro fosse exibido. Nesse período, surgem, então, novos cineastas e novas propostas de produção. Curtas brasileiros ganham vários prêmios internacionais, como o Ilha das flores, de Jorge Furtado, que vence o Festival de Berlim na categoria e é eleito pela crítica europeia um dos mais importantes curtas-metragens do século XX.

Blecaute e retomada

Na década seguinte, o Brasil passa por um blecaute cinematográfico por causa da era Collor, que extinguiu a Embrafilme, o Concine, a Fundação do Cinema Brasileiro, o Ministério da Cultura, as leis de incentivo à produção, a regulamentação do mercado e até mesmo os órgãos encarregados de produzir estatísticas sobre o cinema no Brasil. A retomada do cinema nacional se dá com o fim da breve era Collor, com a criação da Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual e diversas leis de incentivo. Foi nessa década também que as organizações Globo criaram sua própria produtora, a Globo Filmes, que se envolveu em diversas produções cinematográficas e consagrou sua supremacia em 2003, quando seus filmes obtiveram mais de 90% da receita da bilheteria do cinema nacional e mais de 20% do mercado total. Alguns filmes lançados no final do século XX e primeiros anos do século XXI, com uma temática atual e novas estratégias de lançamento, como Central do Brasil (1998), de Walter Salles, Cidade de Deus (2002), de Fernando MeirellesCarandiru (2003), de Hector Babenco, e Tropa de elite (2007), de José Padilha, alcançam grande público no Brasil e  reconhecimento internacional.

O cinema latino-americano contemporâneo é fortemente marcado por uma diversidade de expressões. “Não podemos afirmar que exista um cinema latino-americano, no singular, pois é tão diverso, plural, tem propostas próximas de Hollywood, da europeia e mais outras”, diz Mariana. “São vários os cinemas latino-americanos contemporâneos, que apresentam formas de produção, estilos, durações, formatos e experiências específicas de cada local.” Mas há marcas comuns: “Força do real nas histórias; narrativas carregadas de afeto; coprodução entre os países e uso de leis de incentivo governamentais para auxílio nas produções”, enumera a pesquisadora.

Para a especialista, uma característica do cinema brasileiro contemporâneo a ser destacada é a articulação de coletivos de produção fora do eixo RJ-SP, como a Teia (MG), Filmes de Plástico, os grupos de cinema do Recife, do Ceará e também do sul do país.

Longo percurso

Na primeira sessão pública latino-americana de cinema de que se tem notícia foram apresentados oito filmetes retratando cenas pitorescas do cotidiano na Europa. Foi no Rio de Janeiro em 1896, apenas seis meses após a projeção inaugural do cinematógrafo feita pelos irmãos Lumiére, em dezembro de 1895, na França. No mesmo mês, Argentina e Uruguai também foram contemplados com suas primeiras sessões, seguidos de México, Chile e Guatemala, ainda em 1896, e Cuba, em 1897.  

O cinema nacional demorou para se desenvolver. Foi somente na década de 1930 que surgiram as primeiras grandes empresas cinematográficas no país – a Cinédia e a Brasil Vita Filmes, responsáveis pelos famosos Ganga bruta (1933) e Favela dos meus amores (1935). Nos anos anteriores, o país se caracterizou mais pela estruturação do mercado exibidor, com alguns espaços dedicados à exibição exclusiva de filmes dos EUA. Diversos acordos comerciais consolidaram a dominação norte-americana, pois permitiram, entre outros, a entrada isenta de taxas alfandegárias dos filmes estadunidenses. Os filmes brasileiros, até então produzidos fora do eixo Rio-São Paulo, ficavam restritos a ciclos regionais, enfrentando dificuldades relacionadas à distribuição e exibição.

Nas décadas de 1940 e 1950, duas grandes empresas cinematográficas se destacaram: a Atlântida Cinematográfica e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. A Atlântida, fundada em 1941, se caracteriza incialmente pela produção de comédias musicais de fácil comunicação com o público, tendo como tema principal o carnaval. Posteriormente, a empresa se consagra como a maior produtora do gênero conhecido como chanchada, que explora a comédia de costumes e satiriza os dramas norte-americanos de sucesso, criticando de maneira sarcástica a xenofilia da elite brasileira. A chanchada foi amplamente aceita pelo grande público e duramente criticada na época pelos mais intelectualizados. Porém, foi na chanchada que pela primeira vez na história do cinema nacional associou-se produção com distribuição, quando, em 1947, Luiz Severiano Ribeiro, dono do maior circuito exibidor brasileiro, torna-se o maior acionista da empresa.

Fundada em 1949, a Vera Cruz foi outro grande marco do cinema nacional. Seus idealizadores, influenciados pelo neorrealismo italiano, criam a companhia cinematográfica com o intuito de produzir filmes de qualidade, criticando o modelo hollywoodiano e exaltando a intelectualidade do cinema europeu. A empresa constrói grandes estúdios, com equipamentos importados, contrata técnicos estrangeiros e elencos fixos. Com isso, embora criticasse o modelo hollywoodiano, a Vera Cruz acaba por reproduzi-lo, se distanciando de algumas das características básicas do neorrealismo – produção barata, fora dos estúdios e com atores pouco conhecidos. Apesar de todo o investimento na produção, a empresa pouco se preocupou com a distribuição e a exibição dos filmes, que ficou a cargo de multinacionais, também produtoras de filmes, e que não tinham interesse em ceder espaço de seu mercado para o cinema brasileiro. A empresa foi à falência e, pressionada pelas dívidas, vendeu os direitos do primeiro filme brasileiro de sucesso internacional, O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, para a Columbia Pictures.