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O futebol nas fábricas – de diversão a trabalho |
Por Fatima M. Rodrigues Ferreira Antunes
10/08/2006
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O futebol chegou ao Brasil como um esporte elitista nos últimos
anos do século XIX. Aos poucos se popularizou, fazendo adeptos
por todas as camadas sociais. Mas entre a classe operária, nas
fábricas e nos terrenos descampados dos bairros fabris e nas
várzeas dos rios, conquistou uma posição de
destaque. Os clubes da elite foram incorporando às suas equipes
os jogadores revelados pelos times de várzea. Também os
clubes formados por iniciativa dos operários nas
fábricas, contando com a aprovação e o apoio
material dos industriais, se tornaram comuns. Ao longo da primeira
metade do século XX, formou-se uma tradição de
futebol amador praticado em clubes de fábrica, sendo
difícil apontar a indústria que não tivesse ao
menos um pequeno núcleo constituído.
Um dos clubes de fábrica mais famosos foi
mantido pela Cia. Progresso Industrial, a “Fábrica Bangu” do Rio
de Janeiro. O The Bangu Athletic Club, fundado em 1904 pelos
funcionários ingleses – técnicos e mestres – para se
divertir nas horas de folga, tinha a aprovação da
direção da tecelagem, que comprou as camisas e cedeu um
terreno de sua propriedade para a instalação do campo de
futebol. Os ingleses, contudo, não conseguiram formar duas
equipes completas para jogarem entre si. A localização da
fábrica no distante subúrbio carioca desencorajava seus
compatriotas, que trabalhavam em outras empresas, a irem até
lá. A solução foi recorrer aos operários da
tecelagem, que, certamente, estavam com vontade de arriscar alguns
chutes. A singularidade do Bangu no processo de
popularização do futebol foi ter nascido como clube de
fábrica, incorporando, desde o início, operários
à sua equipe sem maiores restrições, ao
contrário dos clubes da elite carioca e da colônia
inglesa. Em pouco tempo, o clube se projetou para o futebol da
divisão principal, disputando torneios com o Fluminense, o
Flamengo e outros.
Além do Bangu, muitos clubes surgiram, de forma
simultânea, como o Votorantim Athletic Club, fundado em 1902 como
Savoia Team, por iniciativa de engenheiros e técnicos ingleses
da Fábrica de Tecidos Votorantim, no município de
Sorocaba, São Paulo. Também a Regoli e Cia Ltda., do
bairro da Mooca, em São Paulo, tinha seu clube de futebol. Em
1909, por ocasião da compra da tecelagem por Rodolfo Crespi, o
grêmio passou a se chamar Crespi F.C. Anos mais tarde, na
década de 1930, rebatizado Clube Atlético Juventus, o
time ficaria tão ou mais famoso que a fábrica, a exemplo
do que ocorrera com o Bangu e, até certo ponto, com o Juventus
da Itália, clube dos trabalhadores da fábrica de
automóveis Fiat.
Os clubes nasciam de jogos improvisados na rua ou no
pátio da fábrica, durante o intervalo para o
almoço. Aos poucos, a brincadeira ganhava
organização. A cotização entre os
interessados não cobria todos os custos que a prática do
futebol, nos moldes desejados, envolvia. Recorrer à
direção da fábrica era uma saída
viável, senão fundamental, para a
manutenção da atividade. Afinal, havia afinidade entre a
fábrica e o clube, uma vez que tudo começara em
função de relações de amizade estabelecidas
no espaço de trabalho. No entanto, uma vez obtido o
consentimento da diretoria e a garantia de continuidade da
prática esportiva, graças à
colaboração material que ela se comprometia a fazer, a
organização do clube de futebol ganhava contornos
diferentes.
A direção da fábrica costumava
ceder um terreno de propriedade da empresa para a
instalação do campo de futebol e a
construção da sede social ou, então, ajudar no
pagamento de aluguéis. Oferecia uma quantia mensal em dinheiro
para as despesas com energia elétrica, limpeza dos uniformes,
transporte de jogadores e outras, mas cobrava relatórios e
balancetes para saber como os recursos eram aplicados.
Esboçava-se, assim, uma primeira forma de controle sobre o clube.
A formação de uma diretoria, cujos
membros eram costumeiramente recrutados entre os quadros
burocráticos da empresa, como chefes, diretores, gerentes e
mestres, visava o aprimoramento organizacional do clube. Aos
operários, de quem partira a iniciativa de organizar o futebol,
restava o consolo de uma posição secundária na
direção do grêmio e da participação
nos jogos.
O Conselho Nacional de Desportos (CND), durante o
Estado Novo, ditava o modelo dos estatutos a serem acatados por clubes
de todo o país. Cabia às ligas classistas, criadas no
mesmo período, organizar torneios amadores entre as empresas,
que se transformaram em espetáculos de propaganda, sobretudo
governamental. Em São Paulo, atuavam a Liga Esportiva
Comércio e Indústria (Leci) e a Associação
Comercial de Esportes Atléticos (Acea). Também os Jogos
Esportivos Operários, promovidos pelo Serviço Social da
Indústria (Sesi), mobilizavam as atenções.
Com vistas ao sucesso do clube e, por extensão, da
fábrica, passou-se a fazer uma seleção rigorosa
entre os jogadores. Apenas os melhores integrariam a equipe. Quanto aos
demais, aqueles que gostavam de jogar por simples diversão,
teriam de se conformar com a condição de espectadores. Os
empresários acreditavam e apostavam na capacidade promocional
dos clubes, que, em geral, ostentavam o nome da fábrica. O
prestígio da empresa não dependia do desempenho da equipe
de futebol, mas podia, em parte, ser favorecido por ele, funcionando
como um cartão de visitas e um divulgador de seus produtos.
Os operários que integravam o time da fábrica passaram a
conquistar benefícios em sua atividade profissional regular,
como dispensas para os treinamentos, trabalho mais leve, possibilidade
de promoção mais rápida. Gerações de
trabalhadores foram admitidas às fábricas não
só porque trabalhavam bem, mas também porque jogavam bem.
Com bons elementos, a equipe poderia obter melhores resultados,
contribuindo para sua reputação e fama. Passou-se a
valorizar o “capital esportivo” dos operários no mercado de
trabalho, preferindo-se contratar um bom futebolista a um bom
operário. O apoio dos patrões aos clubes de futebol
favoreceu a consolidação de um falso amadorismo, que
atingiria o auge nas décadas de 1940 e 1950.
Para uma parcela das camadas sociais menos favorecidas, o futebol
praticado no clube de fábrica significava a possibilidade de
fazer carreira como operário-jogador. Oferecia-se uma
remuneração especial nesses casos, sob a forma de
presentes, gratificações e, inclusive, um segundo
salário. Muitos trabalhadores viam-se estimulados pela
possibilidade de complementar os ganhos provenientes do trabalho na
fábrica com os “bichos” pagos aos jogadores. Com esse
propósito, engajavam-se nas acirradas disputas internas por uma
posição no time, motivos de inúmeros conflitos.
Parte dos operários-jogadores pretendia
seguir carreira nas ligas de profissionais e encarava a
posição no time da fábrica como uma etapa inicial.
Não jogavam por diletantismo: tinham interesses bem definidos em
relação ao futebol.
Havia também jogadores que percorriam o caminho inverso.
Contratados por clubes profissionais aproveitavam as
relações estabelecidas no meio esportivo para obter um
emprego paralelo nas fábricas, a fim de aumentar seus
rendimentos. Em outros casos, as indústrias registravam
jogadores profissionais como empregados regulares para atuarem,
temporariamente, apenas como futebolistas, uma vez que, dos torneios
das ligas classistas, só poderiam tomar parte trabalhadores
devidamente registrados nas fábricas. Esse tipo de fraude, o
“emprego de cobertura”, foi prática comum inclusive nos clubes
de fábrica franceses no mesmo período.
Os exemplos de operários-jogadores bem
sucedidos como profissionais nos grandes clubes do país, fazendo
dessa atividade sua única fonte de rendimentos, fortaleciam o
sonho da ascensão social através do futebol. Garrincha, o
gênio de pernas tortas, foi um deles. No time do Sport Club Pau
Grande, organizado pelos operários da tecelagem Cia.
América Fabril de Pau Grande, Rio de Janeiro, onde trabalhava
desde menino, começou sua carreira como operário-jogador
em 1949. Graças ao excelente desempenho nos gramados, conseguiu
manter o emprego na tecelagem e passar imune pelos constantes conflitos
que permeavam as relações entre operários, mestres
e contra-mestres, e que, muitas vezes, terminavam com a demissão
dos primeiros, pois se acreditava que Garrincha teria uma carreira
esportiva promissora. A previsão se confirmou: Garrincha fez
carreira como profissional no Botafogo e celebrizou-se por sua
atuação na seleção brasileira em 1958 e
1962, conquistando dois campeonatos mundiais de futebol.
Outro exemplo foi o goleiro Barbosa, do Vasco da Gama e da
Seleção Brasileira na Copa de 1950, que despontou para o
futebol no time de uma indústria química em São
Paulo. Bauer, do São Paulo F.C. e da Seleção,
chamado de “Monstro do Maracanã” por sua atuação
na Copa de 50, jogava na Associação Atlética
Matarazzo quando jovem. Leônidas da Silva, o Diamante Negro,
atuou num time de funcionários da Light & Power do Rio de
Janeiro.
Muitos jogadores revelados pelas fábricas
projetaram-se para o futebol dos grandes clubes, mas poucos atingiram o
sucesso financeiro, sorte reservada aos craques, jogadores de alto
nível técnico. A maioria deles, embora melhorando seu
padrão de vida, teria um futuro incerto após o
encerramento da carreira. Eram coadjuvantes, que integravam o meio
futebolístico sem conseguir maior destaque e sem auferir ganhos
reais.
A dedicação ao jogo permitiu que
alguns trabalhadores adquirissem um pequeno comércio ou
negócio, mas esta não era a regra. Para a maioria dos
ex-jogadores profissionais, os clubes de fábrica representavam
uma forma de acesso a um novo emprego. Nesses casos, era fundamental
saber explorar as relações estabelecidas com os
“cartolas”, a fim de alcançar uma colocação nos
escritórios ou na linha de produção de suas
empresas e integrar a equipe de futebol da fábrica nas horas de
folga, como jogadores ou treinadores. Além de desenvolverem uma
modalidade singular de amadorismo, os clubes de fábrica
mantinham uma estreita relação com o futebol
profissional. Revelavam atletas para os clubes da divisão
principal e os acolhiam de volta quando abandonavam a profissão.
À medida que o profissionalismo no futebol se
aperfeiçoou, jogadores passaram a viver apenas do jogo,
recebendo melhores salários e sendo também mais exigidos
em relação a treinamentos e concentrações.
Não tinham tempo e nem precisavam manter um trabalho paralelo
nas fábricas. As empresas, por seu lado, passaram a buscar
outras modalidades mais eficazes de propaganda. A partir dos anos 1960,
a prática decaiu e a trajetória de grande parte dos
clubes de fábrica se perdeu no tempo.
Este artigo é uma versão modificada e resumida de “O
futebol nas fábricas”, publicado na Revista USP nº 22,
Dossiê Futebol, de junho/julho/agosto de 1994.
Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes é doutora em sociologia
pela Universidade de São Paulo, socióloga do Departamento
do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura
de São Paulo e autora de “Com brasileiro, não há
quem possa!” - Futebol e identidade nacional em José Lins do
Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: Unesp,
2004.
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