Em dezembro de 2005, ao fazer a seleção de grandes descobertas que
apresenta tradicionalmente ao final de cada ano, a revista
norte-americana Science foi obrigada a descartar o estudo que foi uma
de suas maiores apostas editoriais nesse mesmo período e um dos que
mais esperanças havia trazido nos últimos meses para a pesquisa na área
de biotecnologia.i Dessa constrangedora retrospectiva foi excluído um
empreendimento coordenado pelo pesquisador sul-coreano Woo-suk Hwang,
da Universidade Nacional de Seul, que foi amplamente divulgado para o
mundo todo como a primeira clonagem de células-tronco embrionárias
humanas (CTEHs) e, que, posteriormente, foi desmascarado como fraude.ii
Esse caso apresenta diversos elementos de reflexão sobre o jornalismo
na área de ciência. No que se refere à pauta, a credibilidade da
Science, que é editada pela Associação Americana para o Avanço da
Ciência (AAAS) e é uma das principais fontes da imprensa, foi decisiva
para a repercussão mundial dos resultados descritos no paper de
Hwang.iii Como reforço a essa chancela, a pesquisa se baseava em dados
preliminares apontados em um estudo também coordenado por ele, que
havia sido divulgado em 2004 por essa mesma publicação.iv
No plano das conseqüências da divulgação pela mídia, o pesquisador
sul-coreano, guindado rapidamente à condição de herói nacional e de
celebridade internacional, teve, num piscar de olhos, o reconhecimento
do governo de seu país na forma de US$ 65 milhões investidos no seu
laboratório na universidade. Poucos meses depois, mais US$ 15 milhões
foram previstos no orçamento de 2006 do Ministério da Saúde e do
Bem-Estar Social com a rubrica destinada à criação do Centro Mundial de
Célula-Tronco, no qual membros da equipe de Hwang deveriam clonar
células humanas para clientes científicos de outros países.v
Ao decretar oficialmente a nulidade dos dois papers de Hwang, o
editor-chefe da Science pediu desculpas pelo tempo e pelos recursos que
a comunidade científica teria gasto tentando reproduzir os resultados
divulgados pela revista e afirmou que providências deverão tomadas para
evitar futuros engodos.vi
Apesar de envolver diversos aspectos diretamente relacionados a temas
cruciais da ética e da técnica jornalísticas, o caso Hwang, assim como
outros que envolveram fraudes científicas, não gerou entre
profissionais que cobrem ciência nenhum questionamento de significativa
repercussão.vii No entanto, no âmbito do jornalismo em geral, são
amplamente conhecidos diversos casos em que a imprensa foi forçada não
só a reconhecer seus deslizes, como também a se questionar com relação
aos seus métodos e objetivos ― desde casos locais, como o do fantasioso
abuso de crianças na Escola Base, em São Paulo, a acontecimentos de
repercussão e conseqüências globais, como a revelação tardia da
inexistência de provas dos alegados arsenais de destruição em massa que
serviram do pretexto para a invasão do Iraque.
Não se trata aqui de afirmar que o chamado jornalismo científico goza
de imunidade a questionamentos sobre sua confiabilidade. Decerto não é
razoável exigir dos jornalistas que sejam mais criteriosos que os
próprios cientistas em assuntos que envolvam fraude científica.
Geralmente crítica e exigente no que se refere à “tradução” do discurso
científico para a linguagem coloquial, jamais a comunidade científica
repreendeu a imprensa por ter ludibriado seu público com a divulgação
de estudos chancelados pelo ritual do peer review.
No entanto, trata-se aqui inicialmente de questionar essa certificação
oferecida pelos ritos acadêmicos, os processos jornalísticos a eles
associados e a cultura de trabalho que essa relação envolve. Em busca
de critérios de seleção de novidades científicas para assegurar
confiabilidade das pautas, a imprensa adotou nas últimas décadas o
princípio de exigência do endosso de comitês científicos independentes.
Na prática, isso significou a consagração como principal fonte do
noticiário de ciência das revistas científicas, uma vez que elas
organizam e mantêm comitês consultivos independentes para avaliar
os estudos encaminhados para publicação.
Esse processo teve conseqüências muito maiores no plano da comunicação
em geral para as publicações científicas de maior circulação e
prestígio. Entre as interdisciplinares destacam-se as norte-americanas
Science e Proceedings of the National Academy of Sciences e a britânica
Nature e, entre as da área médica, Journal of the American Medical
Association e New England Journal of Medicine, dos Estados Unidos, e
British Medical Journal e The Lancet, do Reino Unido. Consagradas como
fontes indispensáveis da mídia internacional, essas publicações
rapidamente incorporaram uma outra função além da original de
divulgação científica inter pares, mas de uma forma não explícita: elas
passaram a ser veículos de comunicação disponíveis para instituições
científicas ― governamentais ou não-governamentais ―, lideranças
acadêmicas e até de empresas, como as indústrias farmacêuticas, os
recentes empreendimentos da genômica e outros.
Expostas aos holofotes da mídia, embora continuando a usar os seus
próprios meios de comunicação, lideranças e entidades científicas
rapidamente compreenderam porque no cinema e na televisão se usa
maquiagem. Na medida em que determinadas publicações científicas
expandiram seu público-alvo para além dos limites da comunidade
acadêmica, abrindo espaço para influenciar comunicadores, formadores de
opinião e tomadores de decisão, elas passaram a servir como palco para
campanhas institucionais e disputas internas por poder e recursos. Aos
simples press-releases se acrescentaram, com o tempo, entrevistas
coletivas, eventos especiais e teleconferências.
Um dos mais eloqüentes exemplos desse novo papel das publicações
científicas foi a divulgação simultânea, nas revistas Nature (vol. 409,
nº 6822) e Science (vol. 291, nº 5507), respectivamente em 15 e 16 de
fevereiro de 2001, dos resultados do Projeto Genoma Humano, realizado
por instituições públicas dos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Japão
e China e pelo grupo privado norte-americano Celera, como mostrou uma
criteriosa pesquisa realizada pelo jornalista Marcelo Leite para sua
tese de doutorado “Biologia total: Hegemonia e informação no genoma
humano”.
“Publicações como a Nature e a Science se encontram numa posição
privilegiada para influenciar a forma final que as realizações dos
cientistas assumem no imaginário social: têm periodicidade semanal, não
são ultra-especializadas como maioria dos journals, os trabalhos
técnicos que veiculam são precedidos por artigos, comentários e
notícias que contextualizam e discutem os dados e interpretações dos
primeiros, e desenvolveram nas duas últimas décadas um sistema de
prestação de serviços viii para jornalistas especializados em ciência
que as transformou em duas de suas fontes preferidas de informação e em
mananciais de pautas para reportagem (ambas as publicações são também
importantes formadoras de opinião na comunidade científica
internacional). Não é de estranhar, assim, que as duas edições aqui
analisadas tenham abusado das hipérboles para sublinhar o caráter
histórico da publicação das seqüências-rascunho do genoma humano; era
imperioso, antes de mais nada, que os jornalistas assim a percebessem e
assim a apresentassem para o grande público.” ix
Ao caracterizar de forma inequívoca a “mobilização retórica e política,
nas interfaces com a esfera pública leiga, de um determinismo genético
crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos obtidos no
curso da própria pesquisa genômica”,x bem como o recurso crescente a
hipérboles e metáforas por parte de cientistas em publicações
especializadas a função de suporte a um programa hegemônico de
pesquisa, Marcelo Leite conclui em seu estudo que
“... cabe ao cientista social que se defronta com a tecnociência em sua
vertente biotecnológica empunhar as armas da crítica para desafiar o
campo hegemônico da genômica a abandonar ou reformular drasticamente o
complexo de metáforas deterministas que até agora lhe deu sustentação.
Sem isso ela deixará de ser científica, ou seja, se afastará cada vez
mais da promessa de objetividade e de imparcialidade implícita em
qualquer forma de pesquisa científica, até mesmo na tecnociência.” xi
Mapeada por esse estudo de sociologia da ciência nas publicações
científicas especializadas, a retórica determinista e reducionista no
uso de hipérboles e metáforas sobre as promessas da genética não tem
servido apenas para atrair a atenção dos pauteiros, influenciando o
ponto de partida da atividade editorial. Ela tem sido também amplamente
reproduzida no texto das reportagens, isto é, no produto final do
noticiário de ciência, como indica a pesquisa no âmbito da comunicação
realizada pelo jornalista Cláudio Júlio Tognolli “A falácia genética: A
ideologia do DNA na imprensa”:
“As vastas operações da linguagem da mídia vêm fomentando, como
demonstramos, a idéia de que, num mundo em que a transparência é
espírito de época, o gene é a caixa preta final do ser humano”.xii
Às considerações aqui apresentadas acrescentam-se os questionamentos
que vêm se tornando cada vez mais freqüentes sobre a prática do
jornalismo científico, no qual o peso das publicações científicas não
se restringe aos critérios de seleção de pauta, mas também aos
critérios de correção da informação final. No entanto, esse peso tem
sido hegemônico, sobrepujando inclusive os próprios preceitos
jornalísticos de avaliação crítica e independente das fontes. Como
ressaltou a jornalista Mônica Teixeira ao analisar essa omissão,
"importa, para a aferição da qualidade do que escreve o jornalista
(jornalista de televisão também escreve), estar o texto ou não de
acordo com o que reza a ciência, concretizada na conclusão do artigo
científico mais recente".xiii
Um dos aspectos mais preocupantes levantados por essas críticas é a
omissão generalizada do contraditório no noticiário sobre ciência.
Nesse processo, “o papel do jornalista acaba não sendo muito diferente
daquele que seria de um assessor de imprensa do pesquisador que deu a
entrevista”, como ressaltamos anteriormente.xiv Em artigo recente sobre
esse tema, a jornalista Martha San Juan França observou que:
"Enquanto repórteres de política e economia freqüentemente vão além dos
releases oficiais para comprovar a veracidade das notícias, os colegas
de ciência se contentam com a informação autorizada, os papers
(relatórios científicos), entrevistas coletivas e revistas
especializadas. Enquanto as notícias de outras áreas são normalmente
objeto de crítica, a ciência e a tecnologia são poupadas ― até que
ocorram acidentes trágicos. Se bons jornalistas são reconhecidos ― e
temidos ― por suas análises críticas, no caso de ciência, a
investigação e a crítica costumam passar longe." xv
O papel das publicações científicas especializadas no âmbito da
cobertura jornalística de ciência se tornou hegemônico com relação aos
preceitos de avaliação crítica e independente das fontes.
Potencializado pelos serviços de divulgação das instituições
científicas e pelas novas tecnologias de comunicação, esse papel tem
praticamente consolidado nesse campo específico da cobertura da
imprensa o processo para o qual muitos estudiosos e críticos da mídia
em geral têm alertado: o da conversão do jornalista em um simples
comunicador, que se ocupa de reproduzir informações em um formato mais
acessível ao público em geral, em detrimento das demais atribuições
inerentes à mediação plena que se espera dessa profissão.
Dizendo em termos mais enfáticos, o chamado jornalismo científico
encontra-se em estado mais avançado do que outras áreas da imprensa
nesse processo que foi devidamente caracterizado no relatório “The
State of Newsmedia 2004”, da Escola de Jornalismo da Universidade
Columbia: 1) a maior parte da atividade jornalística consiste em
distribuir informações, e não em produzi-las e 2) mesmo entre grande
parte dos meios que produzem a informação a ser distribuída,
confunde-se cada vez mais os elementos informativos brutos com o que
seria a informação resultante de checagem, comparação e avaliação.xvi
Não sabemos se esse processo é reversível, seja no âmbito do jornalismo
em geral, seja no plano específico da cobertura de ciência, devido aos
componentes conjunturais de crise global no mundo da comunicação, com
as sucessivas eliminações de postos de trabalho, o crescente processo
de concentração de propriedade dos meios de comunicação, paralelamente
à progressiva miscigenação e promiscuidade do espaço jornalístico com o
do entretenimento e à pulverização dos valores éticos e de
credibilidade.
Se esse quadro é resultado de uma tendência da sociedade, da
globalização, do pós-modernismo, do neoliberalismo ou coisa que o
valha, é uma questão. Seja o que for, uma outra questão é o que fazer.
Do ponto de vista daquilo que ainda se pode chamar de deontologia do
jornalismo, imaginamos que é indesejável a continuidade dessa clonagem
do noticiário de ciência. Se existem antídotos ou paliativos contra
ela, é necessário ― mas não suficiente ― que a receita inclua o resgate
do papel investigativo do jornalismo.
Maurício Tuffani é assessor de comunicação e imprensa da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e responsável pelo blog Laudas Críticas
(http://laudascriticas.blogspot.com).
Notas
1 -
Donald
Kennedy ― “Breakthrough of the year” (Editorial). Science,
23 December 2005: Vol. 310. no. 5756. p. 1869
(http://www.sciencemag.org/cgi/content/summary/310/5756/1869).
2 -
Donald
Kennedy ― “Editorial retraction”. Science,
20
January 2006: Vol. 311. no. 5759. p. 335
(http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/311/5759/335b).
3 -
Woo
Suk Hwang, Sung Il Roh, Byeong Chun Lee, Sung Keun Kang, Dae Kee
Kwon, Sue Kim, Sun Jong Kim, Sun Woo Park, Hee Sun Kwon, Chang Kyu
Lee, Jung Bok Lee, Jin Mee Kim, Curie Ahn, Sun Ha Paek, Sang Sik
Chang, Jung Jin Koo, Hyun Soo Yoon, Jung Hye Hwang, Youn Young Hwang,
Ye Soo Park, Sun Kyung Oh, Hee Sun Kim, Jong Hyuk Park, Shin Yong
Moon, and Gerald Schatten ― “Patient-Specific Embryonic Stem
Cells Derived from Human SCNT Blastocysts”. Science,
17 June 2005: 1777-1783
(http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/sci;308/5729/1777).
4 -
Woo
Suk Hwang, Young June Ryu, Jong Hyuk Park, Eul Soon Park, Eu Gene
Lee, Ja Min Koo, Hyun Yong Jeon, Byeong Chun Lee, Sung Keun Kang, Sun
Jong Kim, Curie Ahn, Jung Hye Hwang, Ky Young Park, Jose B. Cibelli,
and Shin Yong Moon ― “Evidence of a Pluripotent Human Embryonic
Stem Cell Line Derived from a Cloned Blastocyst” Science,
12 March 2004: 1669-1674
(http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/sci;303/5664/1669).
5 -
Nicholas
Wade ― “Clone Scientist Relied on Peers and Korean Pride”. The
New York Times, 25/dez/2005
(http://www.nytimes.com/2005/12/25/science/25clone.html).
6 - Ver
nota 27 -
Maurício
Tuffani ― “Lições sobre a fraude dos clones”.
Laudas Críticas (blog), 27/dez/2005
(http://laudascriticas.blogspot.com/2005/12/lies-da-fraude-dos-clones.html).
8 -
O
autor citado se refere aos veículos Press Nature
(http://press.nature.com) e Eurekalert/Science
(http://www.eurekalert.org/jrnls/sci)
9 -
Marcelo
Leite ― Biologia total: Hegemonia e informação no
genoma humano. Tese de Doutorado em Ciências Sociais.
Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
(inédito). p. 89.
10 -
Idem,
p. 207.
11-
Idem,
p. 211
12 -
Cláudio
Júlio Tognolli ― A Falácia genética: a
ideologia do DNA na imprensa. Escrituras Editora. São
Paulo. 2003, p. 300.
13 -
Mônica
Teixeira ― "Pressupostos do Jornalismo de Ciência no
Brasil". in Luísa Massarani et al (orgs.) Ciência
e Público: Caminhos da divulgação científica
no Brasil. Casa da Ciência, Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. 2002. pp. 133-141
14 -
Maurício
Tuffani ― “O fogo cruzado no jornalismo de ciência”.
ComCiência. Laboratório de Estudos Avançados
de Jornalismo Científico, Universidade Estadual de Campinas.
10/jul/2003.
(http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura11.shtml).
15 -
Martha
San Juan França ―"Divulgação ou
jornalismo?". in Sergio Vilas Boas (org.) Formação
e informação científica: Jornalismo para
iniciados e leigos.
São Paulo. Summus Editorial. 2005. pp.
31-47
16 -
The
Project for Excellence in Journalism ― The
State of News Media 2004. Graduate School of Journalism. Columbia
University. Nova York. 2004
(http://www.stateofthenewsmedia.org/2004).
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