O vazio existe? “Essa é uma das questões mais debatidas através dos tempos e, portanto, mais instigantes para serem estudadas à luz da história e da filosofia da química”, avalia Luciana Zaterka, integrante do grupo de História e Teoria da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A filosofia considera que as primeiras idéias acerca da existência do vazio surgiram, de forma sistemática, por volta do século V antes de Cristo com os gregos Demócrito e Leucipo. Eles propuseram a teoria da matéria, na qual a natureza era basicamente constituída por átomos e vazio.
O filósofo Jorge Lucio de Campos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, explica que Demócrito concebeu o espaço como “uma extensão vazia (kené diastolé), sem influência alguma sobre a matéria, cujo movimento dar-se-ia em conseqüência das constantes colisões dos átomos”. A teoria da matéria, proposta por ele e Leucipo, estruturou, atomicamente, a realidade, afirmando-se contrária à postulação de que o vazio não poderia existir.
Mas, nem todos os pensadores antigos acreditavam na existência do vazio. Aristóteles (384-322 a.C.), lembra Zaterka, defendia que a natureza tem horror ao vazio. Para ele, reconhecer a existência do vazio na natureza seria, antes de mais nada, ir contra o princípio de não contradição, que afirma que uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser. “Segundo essa tradição, um espaço vazio seria privado de coisas, ou seja, no limite, seria o nada. Mas o nada não existe, temos aí portanto uma contradição”, explica.
Aristóteles julgava que certos fenômenos dos corpos, tais como dilatação e crescimento, não deviam ser explicados a partir da existência do vazio, como faziam os atomistas antigos. Esses estudiosos acreditavam que algumas coisas se contraiam e eram comprimidas – o corpo comprimido se contraia justamente nos vazios nele existentes. Mas o filósofo do século II a.C. discordava. "As coisas podem ser comprimidas sem ser por seus vazios, mas porque elas espremem para fora aquilo que continham”, diz Zaterka, parafraseando Aristóteles.
A existência do vazio foi defendida novamente por pensadores como Lucrécio, no século I a.C, para quem o espaço vazio era o local do movimento dos átomos – se o espaço estivesse pleno de matéria seria impossível termos o movimento contínuo.
Só nos séculos XVI e XVII d.C., com a chamada revolução científica, é que a questão da experimentação e dos estudos químicos e biológicos se tornam fundamentais. O químico irlandês Robert Boyle (1627-1691), por exemplo, defendia que não se pode simplesmente afirmar, sem demonstrar experimentalmente, que a natureza abomina o vácuo. Foi por isso que ele investigou o modo de ação da sua famosa bomba de vácuo, com a qual aspirava o ar contido em recipientes de vidro nos quais aprisionava pequenos animais, que morriam durante a ação da máquina. Seu objetivo principal foi demonstrar que é perfeitamente possível produzir vácuo em laboratório.
Para esses pensadores, os experimentos só faziam sentido se fossem guiados por determinadas perguntas formuladas de modo que a própria natureza pudesse responder. "Tais respostas são arrancadas da natureza violentamente, ou com o ato de a atormentarmos, sobretudo pela intervenção do homem nos seus processos e fenômenos. Assim, conseguimos penetrar nas suas estruturas e atingir seus segredos mais ocultos. Aqui encontramos, sem dúvida, o homem – ministro – tentando dominar a natureza", analisa a filósofa.
Zaterka, que é autora do livro Filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle, ressalta que ainda hoje o homem pretende comandar a natureza, mas acredita que os valores subjacentes às atividades do filósofo natural seiscentis ta e às do cientista contemporâneo são bastante distintos. No século 17, pensadores como Boyle e seu filósofo influenciador Francis Bacon (1561-1626) liam o livro da Natureza, antes de tudo, para se aproximarem de Deus. “Afinal, segundo eles, foi Deus quem construiu o mundo e, portanto, conhecendo cientificamente sua obra poderíamos chegar mais perto de seu autor ”, lembra.
Já na ciência contemporânea teríamos o predomínio da relação instrumental do homem com seu objeto, com uma intensa aposta na funcionalidade e utilidade. O vazio interessa na medida em que faz funcionar mecanismos e desenvolver produtos. A química moderna investe não no vazio do vácuo, mas do vazio do vaso – espaços cheios de ar ou de água e plenos de efeito ou ação. Entre macro, micro e nano ocos hospedeiros de moléculas, tonalizantes e isolantes térmicos, a ciência tem ainda a natureza como cenário, fonte, motivo e inspiração.
A bordo das nanopartículas ocas
Os debates dos filósofo s antigos sobre corpos que se comprimem em espaços vazios ou que ocupam tais espaços espremendo para fora o que eles continham até fazem lembrar as nanopartículas ocas do mundo moderno. Entre elas, destacam-se as ciclodextrinas, anéis formados por unidades de glicose, com cavidades centrais – seus vazios funcionais – que possibilitam o embarque de medicamentos e outras s ubstâncias.
A estrutura espacial cônica (ver figura) desses açúcares cíclicos permite que eles se solubilizem em meio aquoso, enquanto encapsulam e acomodam compostos insolúveis em seu vazio interno. Nessas circunstân cias, as cavidades centrais espremem para fora moléculas de água para dar lugar às moléculas hóspedes. A bordo das ciclodextrinas, esses compostos tornam-se solúveis e menos irritantes, protegem-se contra a ação de microorganismos, oxidação, degradação pela luz e calor e perdas por volatilidade. A encapsulação pode ainda mascarar odores e sabores desagradáveis, uma propriedade que torna estratégico o emprego das ciclodextrinas na indústria de alimentos e farmacêutica.
“Vazio” interno da ciclodextrina. Adaptado a partir do artigo de Rama e colaboradores.
Fonte: www.scielo.br
Todavia, as aplicações das ciclodextrinas são quase incontáveis. Em um artigo recente publicado na revista Química Nova, p esquisadores da Universidade de Blumenau enumeram algumas dessas mil e uma utilidades. Para essas nanopartículas e seus vazios funcionais, as possibilidades soam mesmo infinitas. "Ao pensar nelas, torna-se impossível deixa r de evocar o célebre princípio formulado por Paul Ehrlich em sua forma proverbial: corpora non agunt nisi fixata, isto é, 'os corpos não agem a menos que eles estejam ligados'. É precisamente na sua capacidade de ligação aos que reside sua força para transformá-los e amplificar a sua ação", comemoram os autores. E essa capacidade reside no vazio.
A opacidade dos vazios nanométricos
E a intervenção do homem – descrita por Zaterka – nos processos e fenômenos da natureza segue incansável seu rumo. Na busca pela funcionalidade das cavidades, a química contemporânea reúne vazios para dar o tom à tinta. Há mais de um século, o físico alemão Gustav Mie (1868-1957) propôs a teoria do espalhamento da luz, segundo a qual vazios fechados dentro de partículas ou filmes geram opacidade e produzem pigmentos brancos. São realmente os vazios que fazem branco o pigmento nano-estruturado de fosfato de alumínio, inspirado na teoria de Mie e denominado Biphor, que invadiu o mercado de tintas em 2005.
Foi o químico Fernando Galembeck, do Instituto de Química da Unicamp quem coordenou as pesquisas que possibilitaram a descoberta do Biphor, lançado pela empresa multinacional Bunge. Em seu artigo publicado na revista Química nova, Galembeck faz analogias que remetem ao efeito dos vazios do cotidiano que passam desapercebidos. “A cerveja Pilsen é transparente e amarela, mas a sua espuma é opaca e branca devido ao espalhamento da luz nas interfaces entre o líquido que rodeia as bolhinhas e o ar que está no seu interior”, aponta o artigo.
Mas mais do que efeitos, a química busca novas funções. De acordo com Galembeck, as pesquisas sobre o novo pigmento continuam. "Um desenvolvimento nunca termina; sempre há possibilidades novas a explorar", diz. O químico acredita que os vazios das partículas ocas de fosfato de alumínio podem revelar outros produtos, com diferentes funcionalidades para muitas aplicações.
De fato, na química, cavidades funcionais não se esgotam e elas estão mais perto de nós do que imaginamos. Galembeck exemplifica. “Só se fazem boas geladeiras e congeladores se houver bons materiais isolantes térmicos, que hoje são as espumas de poliuretanas. Nas espumas, quem isola não é a poliuretana, e sim os vazios. A poliuretana apenas mantém os vazios no seu lugar”.
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