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Subsídios para análise dos desastres |
Por Marcos Antônio Mattedi
10/04/2010
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O
interesse crescente da opinião pública sobre a questão dos desastres
indica que vulnerabilidade e risco constituem uma das características
mais marcantes do mundo em que vivemos. É por isso, inclusive, que
noções como desastres, hazards, catástrofes, risco, vulnerabilidade, mas
também resiliência tornaram-se cada vez mais usuais para tentar
entender a época em que vivemos. Podemos pensar, inclusive, todo o
conjunto de informações produzidas e sistematizadas nos estudos sobre
desastres em centros como Disaster Center Research da University of
Delaware, o Natural Hazard Center da University of Colorado at Bolder, o
Centre for Research on the Epidemology of Disasters da Universidade
Católica de Louvain, a International Strategy for Disaster Reduction da
ONU, como uma espécie de introspecção que a sociedade moderna efetua
sobre o sentido do seu desenvolvimento, com o propósito de criar
mecanismos que nos permitam conviver com os riscos, ou mais
precisamente, nos permitam desenvolver dispositivos materiais e
subjetivos para confrontar os desastres.
As formas como os desastres foram sendo representados e
enfrentados historicamente constituem um indicador por meio do qual
podemos avaliar o significado do interesse público pelo tema da
segurança na atualidade. Nas sociedades pré-industriais, por exemplo, a
insegurança tomava a forma de “perigos naturais” e, dessa forma, eventos
como os tremores de terra, as erupções vulcânicas, as inundações, as
secas, etc., eram representados culturalmente como fenômenos produzidos
pela natureza, pois sua ocorrência era atribuída a forças externas à
sociedade. Com o surgimento da sociedade industrial, as representações
das origens, consequências e características dos desastres mudaram,
passando a depender de forças sociais. Portanto, na sociedade moderna,
as causas das ameaças podem ser identificadas e suas probabilidades
calculadas em termos estatísticos, o que torna a sociedade responsável
pelos impactos.
O agravamento do problema dos desastres vem se constituindo
numa das questões mais desafiadoras para a sustentabilidade do processo
de desenvolvimento socioeconômico nas últimas décadas. Desde 1900, mais
de 9 mil desastres foram registrados no banco de dados EM-DAT do Centre
for Research on the Epidemology of Disasters (CRED) da Universidade
Católica de Louvain, sendo que mais de 80% ocorreram nos últimos 30
anos.
Distribution of natural disasters: by origin (1900-2005, by decades*
Fonte: Centre for Research on the Epidemology of Disaster
Porém, para entender os desastres, é preciso também
verificar onde eles ocorrem, mais precisamente, a distribuição espacial
da ocorrência dos desastres. Segundo o informe mundial do United Nations
Development Programe (PNUD), “Reducing disasters risk: a challenge for
development”, 75% da população mundial vive em zonas que foram afetadas
pelo menos uma vez entre 1980 e 2000 por um terremoto, um ciclone, uma
inundação ou uma seca 1. Muito embora, frequentemente, os riscos de
desastres estejam ligados às características geofísicas e meteorológicas
de cada região. Quando se considera, por exemplo, os impactos humanos
dos desastres, verifica-se que estes provocam mais impactos em regiões
onde existe maior concentração populacional. Nos últimos trinta anos,
aproximadamente 88% de pessoas mortas e 96% do total de perdas reportado
vivem na Ásia e na África. Isso indica que a maior parte das mortes e
das perdas diretas se concentra em países em desenvolvimento, sem
considerar as mortes provocadas por danos indiretos, resultantes do
aumento da desnutrição, da pobreza e da deterioração das condições de
vida, saúde e outros serviços básicos. Fonte: Centre for Research on the Epidemology of Disasters
Os dados disponíveis indicam que alguns grupos sociais são
mais vulneráveis que os outros. Isso indica que os desastres não podem
ser examinados isoladamente, mas somente por meio dos filtros
contextuais que definem como as populações compreendem e reagem a esses
fenômenos. Esse processo gera outro, o de institucionalização do risco:
perdas provocadas por desastres são confrontadas por ações parciais que
favorecem a ocupação de áreas de risco 2, também descrito como ciclo
do desastre: desastres-dano-reparação-desastres 3. Consequentemente,
os indivíduos marginalizados são incapazes de efetuar mudanças em suas
condições de vida. Portanto, o aumento da população, as desigualdades na
distribuição dos recursos, a marginalização de grupos específicos e a
crescente interdependência global definem a vulnerabilidade. Isso
significa que é a combinação de fatores naturais e sociais que definem o
desastre, ou, mais precisamente, se são as características físicas do
evento que determinam a probabilidade de ocorrência do fenômeno, são as
condições sociais de vulnerabilidade que determinam a severidade do
impacto. Os desastres são parte do contexto, e se modificam quando algum
elemento natural ou social se modifica.
Ao mesmo tempo, observa-se a concepção e a adoção de um
elenco bastante significativo de propostas, programas e formas de
intervenção voltadas à confrontação do problema. Assim, não deixa de ser
paradoxal o fato de que, mesmo durante o Decênio Internacional para
Redução de Desastres Naturais - Building a Culture of
Prevention, declarado pelas Nações Unidas para o período de
1990-2000, com o objetivo fortalecer as habilidades científicas e
tecnológicas de confrontação, a humanidade tenha testemunhado os
desastres mais dramáticos e custosos de sua história. Essa ambivalência
revela as múltiplas dimensões do processo de construção do risco como,
por exemplo, a importância desempenhada pela deterioração ambiental e o
aumento da pobreza observado nesse período. Isso demonstra que o
agravamento dos problemas dos desastres nas últimas décadas está
intimamente relacionado aos processos de desenvolvimento socioeconômico.
A crescente materialização dos riscos em desastres, traduzidos em
termos do aumento do número de afetados e perdas econômicas, revelam que
a dificuldade de atuar sobre os desastres funda-se, na maior parte dos
casos, não somente na importância que o tema dos desastres ocupa na
agenda de prioridades políticas, econômicas e sociais de cada
comunidade, mas, principalmente, nas formas de caracterização e
interpretação do fenômeno.
Por isso, apesar da comoção causada pela progressiva
cobertura da imprensa da destruição provocada por desastres como os
terremotos no Haiti e Chile ou as chuvas em Santa Catarina e Rio de
Janeiro, não devemos nos enganar: a situação de emergência não constitui
um problema natural, mas um produto da vulnerabilidade da população.
Mais precisamente, a disrupção verificada no período pós-impacto
(Tempo-2) constitui um produto da falta de cuidado no período
pré-impacto (Tempo-1). Não existe, portanto, como faz crer a cobertura
da imprensa, uma passagem de condições de “normalidade” pré-impacto para
uma condição de “anormalidade” pós-impacto.
Para entendermos adequadamente a ocorrência e impactos dos
desastres, devemos aplicar o chamado “princípio de continuidade” 4:
considerar a passagem das condições de vulnerabilidade pré-impacto para
condições de destruição pós-impacto. Nesse sentido, a chuva ou o tremor
de terra simplesmente desencadeia a destruição que se encontra incubada
socialmente e que é construída, cotidianamente, pela incapacidade
cognitiva da população de conceber adequadamente o problema ou de agir
política e tecnicamente na confrontação. Portanto, quando se considera
uma enchente, uma enxurrada, um deslizamento ou o efeito combinado
desses fenômenos, como ocorre atualmente em várias regiões do Brasil - e
o Rio de Janeiro constitui o exemplo mais imediato disso -, a
destruição pós-impacto deve ser vista como produto da vulnerabilidade no
Tempo 1 que desencadeia a destruição no Tempo 2.
Os desastres podem ser definidos como a disrupção provocada
no funcionamento de uma comunidade ou sociedade, podendo ser descritos
analiticamente como a função do processo de risco resultante da
combinação entre as probabilidades de ocorrência de hazards
e as condições de vulnerabilidade da comunidade. Isso significa que “o
impacto - o desastre - vai depender das características, probabilidade e
intensidade dos hazards, bem como da
sustentabilidade dos elementos expostos, baseados nas condições física,
social, econômica e ambiental” 5. Assim, do ponto de vista analítico,
um desastre (D) pode ser definido como a função do processo social de
construção do risco, que resulta do risco de ocorrência de um fenômeno
(r) e as condições de vulnerabilidade da comunidade (v), podendo ser
expresso da seguinte forma: D = r + v.
Considerando esses fatores, os estudos sobre desastres
costumam ser divididos em duas grandes tradições disciplinares: os
estudos Hazards, do ponto de vista de geografia, que
enfatizam as condições pré-impacto, e os estudos de Disasters,
do ponto de vista da sociologia, que enfatizam os fatores pós-impacto
7. O entendimento dos desastres envolve a correlação das dimensões
natural e social; porém, como essas dimensões variam de contexto, os
desastres convertem-se em fenômenos dinâmicos e com alta variação do
potencial de impacto. Ocorre, contudo, que essa multidimensionalidade
tem mobilizado um grande número de disciplinas acadêmicas para o estudo
dos desastres e, consequentemente, desencadeado um rico debate sobre as
formas mais adequadas de definição e intervenção 6. Não existe um
consenso entre os especialistas sobre a melhor forma de caracterizar a
forma de interação dos fatores natural e social na ocorrência dos
desastres, o que indica que a definição dos desastres permanece uma
questão aberta.
Como desastre compreende fenômenos multidimensionais,
compreender os fatores que têm provocado o aumento da frequência e
intensidade dos impactos dos desastres nas últimas décadas pressupõe o
estabelecimento de um modelo de análise que relacione tanto os fatores
naturais quanto os fatores sociais. Por um lado, constituem o resultado
da sobrecarga da capacidade de suporte assimilativa e regenerativa do
ambiente natural; por outro, da incapacidade de prever a sua ocorrência,
mas também de agir adequadamente. Nesse sentido, pode-se se dizer que
os desastres não são somente um problema para o desenvolvimento, mas,
sobretudo, um produto do próprio processo de desenvolvimento.
Marcos Antônio Mattedi é líder do Núcleo de
Estudos da Tecnociência na Fundação Universidade Regional de Blumenau
Referências bibliográficas
1 United Nations Development Program. Reducing
disaster risk: a challenge for development. New York:
www.undp.org/bcpr, 2004.
2 Mattedi, Marcos A. As enchentes como tragédias
anunciadas: impactos da problemática ambiental nas situações de
emergência em Santa Catarina. Campinas: (Tese de Doutorado em
Ciências Sociais - UNICAMP), 1999.
3 Tobin, Grahan A; Montz, Burrell E; Natural hazards:
explanation and integration. London: The Guilford Press, 1997.
4 Pelanda, Carlo. “Disastro e vulnerabilitá sociosistemaica”. Ressegna Italiana di Socioloiga, Roma, n. 22 pp.
432-507, 1982.
5 International Strategy for Disaster Reduction. Living
with risk: a global review of disasters reduction iniatives.
Genebre: www.unisdr.or, 2005.
6 Alexander, David. “The study of natural disasters, 1977-1997: some
reflections on a changing of knowledge”.
7 (Mattedi, Butzke, 2001).
8 Mattedi, Marcos A. “O papel da ciência e da tecnologia na
confrontação dos desastres naturais: novas respostas para velhas
questões”. Anais do IIV ESOCITE - Rio de Janeiro, 2008. 15p.
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