“A Constituição do país está nua”. Ou, no mínimo,
muito maltrapilha. A carta magna do Brasil está despida de parâmetros técnicos
que deveriam embasar os projetos de divisão territorial no país. Essa é a
opinião do geógrafo José Donizete Cazzolato, pesquisador do Centro de Estudos
da Metrópole, especialista em cartografia e professor em geoprocessamento
(análise dos aspectos de um território com base no cruzamento de mapas variados
e dados numéricos). Cazzolato atuou decisivamente na divisão distrital do
município de São Paulo (Lei 11220/92) e acaba de lançar o livro Novos
estados e a divisão territorial do Brasil – uma visão geográfica, pela
editora Oficina de Textos, o qual permite compreender melhor inúmeros aspectos
ligados aos vários projetos de divisão territorial do Brasil em tramitação no Congresso
Nacional.
Segundo levantamento feito pelo geógrafo, trinta projetos
de lei para divisão territorial foram acolhidos na Câmara e no Senado desde
1988, ano em que foi promulgada a Constituição. Se todos tivessem sido aprovados,
teríamos três dezenas de novos estados no país. Entre eles estariam, por
exemplo, os estados da Guanabara, do Maranhão do Sul, de São Paulo do Leste, de
São Paulo do Sul, do São Francisco, do Pantanal, de Minas do Norte, do Triângulo,
do Xingu, do Uirapuru, do Sul do Rio Grande do Sul e vários outros – além de,
obviamente, os estados de Carajás e Tapajós, cujas emancipações serão votadas
em plebiscito marcado para o dia 11 de dezembro deste ano.
Um exemplo é o projeto de criação do estado de São
Francisco, de autoria do deputado Oziel Oliveira (PDT – BA). O novo estado
seria composto pela parte da Bahia que fica a oeste do rio São Francisco, com
trinta e cinco municípios. Oliveira explica sua proposta afirmando que a
distância média dos municípios até Salvador é de mil quilômetros. “A cidade de
Barreiras, por exemplo, a mais populosa da região, fica a 600 km de Brasília, mas a
900km de Salvador. Além disso, a riqueza que o oeste da Bahia produz com
algodão e soja, não retorna para a região. Essa região é do tamanho do estado
do Paraná e não recebe atenção suficiente do governo do estado nem para
pequenas demandas, imagina para algo maior, como hospitais ou infraestrutura de
segurança pública”, completa. As razões apresentadas soam justas, mas podem não
ser suficientes. Pela lógica defendida por Cazzolato, elas deveriam ser
obrigatoriamente pautadas por critérios técnicos que determinassem, por
exemplo, a dimensão máxima ou mínima permitida para o território a ser criado,
assim como a maior equanimidade possível em relação aos estados da federação já
existentes. Mas não são. E não são porque a Constituição não exige que sejam.
A origem legal de todos os trinta projetos de divisão
territorial já apresentados está no artigo cinco da Constituição de 1988, o
qual estabelece a legitimidade das demandas de alteração territorial no país
sem, contudo, definir regras claras para tanto. A partir daquele momento,
qualquer deputado poderia encaminhar propostas de formação de novos estados
conforme suas conveniências e prioridades sem, no entanto, precisar
fundamentá-las em parâmetros técnicos, os quais, segundo Cazzolato, deveriam
guiar qualquer proposta de (re)divisão de um território. O mapa abaixo, de
autoria de Cazzolato, permite visualizar a localização dos projetos propostos:
“Praticamente todos os projetos de divisão territorial
em tramitação hoje na Câmara dos Deputados têm a marca da improvisação, do
isolamento e da oportunidade política. Ou seja, não são projetos que levam em
conta a integridade do arranjo federativo, da organização do país como um todo.
Mas o grande problema é que a nossa atual legislação permite que isso aconteça.
Na minha opinião, a Constituição é praticamente omissa na questão territorial:
ela diz que o Brasil é formado por estados e por municípios, mas ela não diz
quantos nem quais são eles, ou qual o tamanho ou população média que um estado
deve ter”, afirma o geógrafo. Já esteve em tramitação, por exemplo, um projeto
para a recriação do estado da Guanabara (que muita gente ainda apoia), constituído
por um único município, e isso, segundo a Constituição, é perfeitamente legal.
“Se o projeto do estado da Guanabara foi acolhido, então alguém pode entrar com
um projeto para que a região de Santo Amaro, no município de São Paulo, se
torne um estado, e ele também será aceito porque, a rigor, pela Constituição, isso
é permitido”, provoca
Cazzolato. “Projetos assim poderiam levar a federação brasileira a uma situação
de desequilíbrio impossível de administrar”, completa.
Uma das
questões que mais se discute em relação à atual divisão territorial do país é a
da representatividade no Poder Legislativo. O
estado do Sergipe, por exemplo, que tem um território e uma população muito
menores que a da Bahia, tem o mesmo número de senadores que seu estado vizinho,
ou seja, há, ao mesmo tempo, uma sobre-representação dos sergipanos e uma
sub-representação dos baianos no Senado – consequência política de uma divisão
territorial aleatória.
Surge, então, um questionamento: por que a
Constituição é omissa?
“A gente fica em dúvida se ela é assim por causa de um cochilo do legislador ou
se é de propósito, para deixar uma ‘porteira aberta’. Agora, eu acho que essa
porteira não poderia ficar aberta, porque a criação de um estado não é um mero
projeto de uma questão restrita da vida nacional – ele é fundamental na
composição de toda nossa sociedade. O estado é o repositório da nossa identidade,
ele é uma instância de poder instituído, é uma coisa muito séria. Sem nenhum
demérito dos deputados, mas qualquer projeto sem nenhuma estruturação, sem
nenhuma amarração com o todo, sem nenhuma consistência, seja geográfica,
econômica, histórica ou de identidade, é aceito pela lei atual, porque nós não
temos nenhum parâmetro técnico para isso na Constituição”, constata Cazzolato.
Dividir ou não dividir? Eis a questão
Nelson Bacic Olic, geógrafo formado pela Universidade
de São Paulo (USP) e um dos editores do Boletim
mundo – geografia e política internacional, também ressalta a
necessidade de se estabelecer regras técnicas claras para a criação, fusão ou
emancipação de novos territórios no país. Ele afirma ainda que, no caso da
criação de Carajás, assim como em muitos outros, estão em jogo interesses de
fortes elites econômicas da região, e que o momento atual do país não é o mais
indicado para se realizar nenhum tipo de divisão territorial. “Para se dividir
qualquer estado, precisam ser levadas em consideração razões de ordem técnica, política,
econômica, social e histórica. No que diz respeito à criação de Carajás, há,
logicamente, as razões políticas e históricas, mas há outras razões também. Há
o interesse de elites econômicas que querem se firmar, no contexto nacional,
como elite política, ocupando mais cargos no Senado, e isso tem um custo para a
federação”, avalia.
Olic acredita que a divisão do Pará pode se tornar
mais um foco de corrupção. “O governo federal já vai gastar uma quantia considerável
para receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas no país, sendo que a situação
econômica mundial também não é das mais favoráveis”, observa. Além disso, na opinião
dele, o mais urgente seria pensar na criação de estados no Amazonas, que é
maior que o Pará e onde há um grande desequilíbrio de desenvolvimento: “A Zona
Franca de Manaus concentra 60% da população e produz ¾ da riqueza do estado”,
aponta.
Cazzolato, entretanto, propõe em seu livro uma nova
divisão territorial para o Brasil, com 37 unidades da federação – sendo 33
estados, 3 territórios e o distrito federal – e diz que a corrupção não pode
nos fazer abandonar planos de melhoria para o país. Veja na figura abaixo como
ficaria o novo mapa da federação brasileira segundo a proposta do especialista:
Cazzolato entende que a corrupção é uma questão de
momento e também uma questão cultural forte, que deve ser combatida, mas não
acredita que “devemos matar a vaca por causa dos carrapatos. Mesmo se a vaca
estiver cheia de carrapatos, não vamos matar a vaca, vamos tentar tirar os
carrapatos. Muita gente diz que em Carajás e Tapajós vão aparecer políticos
tradicionais, daqueles que ficam muito tempo no poder e acabam virando donos do
estado, como o Sarney no Maranhão ou como foi o Siqueira Campos no Tocantins.
Mas temos que acreditar que o processo eleitoral pode reverter isso. Precisamos
acreditar nessa possibilidade de mudança e partir desse princípio, caso
contrário não adianta fazer nada. Eu quero acreditar que Tapajós e Carajás vão
se tornar algo novo, que traga talvez um novo modelo de ocupação, mais
comprometido com o meio ambiente, por exemplo. Eu achei que a proposta de
divisão territorial para o Pará, pelo menos geograficamente, ficou boa”,
avalia. Ele deixa claro, entretanto, que uma boa divisão geográfica não é, por
si só, garantia de que os carajaenses e tapajoanos irão para o paraíso com a
emancipação.
Vale tudo
Cazzolato lembra que, em relação ao caso do Pará, foi um senador de Roraima quem
apresentou o projeto para a criação de Tapajós, fato criticado pelos que são contra
a divisão do estado, mas que, na verdade, a Constituição permite. De certa
forma, é como um vale-tudo, porque são muito poucas as regras estabelecidas
pela legislação. O plebiscito será realizado só no Pará. “Mas a rigor, deveria
ser realizado em toda a federação. O correto seria verificar se o país todo – catarinenses,
capixabas, baianos, rondonienses, etc... – está de acordo em
ter mais dois sócios (Carajás e Tapajós), porque, afinal de contas, nós somos
um clube, uma federação, e essa divisão concerne a todos nós. Mas isso também
não está definido na Constituição”, reforça o geógrafo.
Outro problema é a falta de periodicidade na
apresentação das propostas – elas podem ser feitas a qualquer momento e com
qualquer frequência. Para Cazzolato, a estrutura territorial da federação só
deveria poder ser alterada dentro de intervalos de tempo previstos. “Como fica
o planejamento da gestão pública ou mesmo da instalação de uma grande empresa
num local onde pode se alterar a divisão territorial a qualquer momento? Nós deveríamos
ter prazos estabelecidos para isso, como acontece com as eleições”, defende.
Ele observa que não há, na Constituição, nem mesmo a
indicação de que o Poder Executivo tem que fazer parte das decisões de criação
ou fusão de estados, ou seja, é impossível garantir que uma nova divisão estará
em harmonia com o resto do país, com os outros entes federativos. Não se
discute a divisão territorial do país em nível técnico, somente político. Não
há parâmetros estabelecidos que determinem que uma região, para ser um estado,
precisa ter certa dimensão territorial, incluir certo número de municípios,
arrecadar certo valor, ter certa população, ou mesmo ter sido município antes
de ser estado.
Arranjo territorial: um vestígio do passado e um
retrato do presente
“O Brasil é uma história de emancipações. Nossa
história é toda calcada nas conquistas territoriais. Nós começamos com a
divisão em capitanias hereditárias e, depois, conforme a população ia ocupando
e avançando do litoral para o interior dos estados, foram surgindo demandas de
emancipações. Por exemplo, Mato Grosso e Goiás são emancipações da capitania de
São Paulo. Ouro foi descoberto naquelas terras e com isso começou a se forjar
uma economia nova, um povoamento novo e quase que imediatamente já veio a
demanda pelo novo território emancipado”, conta Cazzolato.
A divisão territorial brasileira espelha a nossa história.
O pesquisador lembra que as formas territoriais são sempre um construto
histórico, social e coletivo. O território nordestino, por exemplo, é todo
picotado, em parte, porque é a região ocupada a mais tempo. “O Brasil, quando
começou, era praticamente só o Nordeste. Tanto que a capital do país era
Salvador. A cultura canavieira era toda centrada ali. Então, formaram-se
cadeias produtivas e núcleos de produção econômica desde aquela época e,
portanto, formaram-se também instâncias de identidade e de poder”, lembra
Cazzolato. Alagoas, por sua vez, foi criada como retaliação política contra
Pernambuco, que sempre sediava movimentos de rebeldia e, como castigo, perdeu
parte de seu território.
Nossa história de divisão territorial acumula vários
processos diferentes. Alguns estados se originaram a partir das capitanias
hereditárias; outros, devido a ações do governo federal, como, por exemplo,
Mato Grosso do Sul, criado no período da ditadura militar. Tocantins surgiu no
âmbito da Constituição; Paraná foi emancipado de São Paulo, porque a população
daquela região, em troca da emancipação pelo governo central, concordou em não
participar de um movimento revoltoso que estava acontecendo na região de
Sorocaba, ou seja, a divisão do território foi usada como objeto de barganha
política; o Acre, por sua vez, foi comprado da Bolívia; e agora, com a proposta
de divisão do Pará, está se inaugurando um processo de plebiscitos.Como observa
Cazzolato, a nossa estrutura de divisão territorial é resultado de processos
diversos, múltiplos, “sem nunca ter havido um caminho linear até o momento”.
Sendo assim, que configuração terá o mapa do Brasil de nossos filhos ou netos?
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