O tema da divisão da terra evoca uma questão recorrente no Brasil: os
conflitos fundiários que, no decorrer da história do país, adquiriram
diferentes contornos. De acordo com a doutora em história pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), Marina Machado, muitas
vezes esses conflitos aconteceram por envolverem divisões territoriais administrativas,
construção de limites e de fronteiras. Para ela, é fundamental, também, considerar
que tal discussão é atravessada pela questão das disputas entre terras
latifundiárias. A expansão - ou não – de uma fronteira explora diferentes
aspectos e interesses, de diferentes grupos envolvidos em um mesmo processo
(fazendeiros, moradores, grupos indígenas, agentes do governo, representantes
da igreja etc.), lembra a historiadora.
Num período mais recente, a partir da segunda metade da década de 1990,
após a fase de reestruturação e modernização da produção agrícola, as questões
econômicas relacionadas a esses conflitos ganharam maior grau de complexidade. De
acordo com a economista Viviam Souza Nascimento, que desenvolveu pesquisa sobre
o tema junto à Universidade de São Paulo (USP), nos últimos anos a
complexificação dessas disputas se deu em função “do aumento das demandas
sociais criadas com a crise econômica da década de 1980, da modernização do
setor agrícola e das significativas mudanças institucionais que alteraram o
ambiente de negócios brasileiro”.
Por outro
lado, Nascimento relembra o percurso histórico dessa questão, sinalizando que convencionalmente
atribui-se a raiz desses conflitos no Brasil ao problema da concentração de
terras, que teria suas origens no modelo de ocupação territorial adotado no século
XVI pela Coroa Portuguesa, durante o período da colonização. Contudo, para ela
é “a falta de regulamentação e fiscalização na distribuição de terras no país
que efetivamente contribuiu para a concentração fundiária”.
Carlos Alberto Feliciano, geógrafo da Universidade Estadual Paulista
(Unesp, campus de Presidente Prudente), reforça que entre as principais causas
dos conflitos fundiários no Brasil está a concentração de terras. Esses
conflitos são bastante antigos no Brasil, com maior evidência a partir do
século XIX, tendo se agravado ainda mais no século XX.
Entre os principais conflitos no início do século XX estão Canudos e
Contestado, que “embora muitas vezes sejam
lembrados como episódios que envolveram questões religiosas, estão diretamente
voltados para uma questão de luta pela terra”, afirma a historiadora Marina
Machado. Nesse sentido, Feliciano
ressalta que o assunto em nosso país ultrapassa a questão das fronteiras legais
das unidades federativas, mas ao mesmo tempo é movido pelas relações sociais de
poder e disputa que nelas são materializadas.
Em comparação aos séculos anteriores, é possível
afirmar que no século XX houve, ao mesmo tempo, uma redução na concentração
fundiária e uma valorização da terra no país. Isso se deu, por um lado, devido ao fato
de os agricultores brasileiros passarem a investir em atividades
urbano-industriais – em decorrência, sobretudo, da desvalorização mundial do
café durante a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica de 1929. Por outro
lado, houve um aumento do valor de uso da terra, gerando maior produtividade em
propriedades de pequeno e médio porte em algumas regiões do país – como é o
caso da região Sul.
Para o geógrafo da Unesp, além da concentração de
terra, a construção da propriedade privada no Brasil trouxe consigo o significado
de terra como reserva de valor, “onde boa parte dos ditos ‘proprietários’ vivem
da renda que ela pode lhes auferir, mesmo sendo improdutiva.”
Foi na década de 1960, que surgiu com maior
intensidade a discussão sobre a necessidade de reforma agrária no Brasil,
principalmente nas regiões Norte e Nordeste que sofriam mais com a concentração
fundiária. No mesmo período, seguiu-se a criação da organização das Ligas
Camponesas e muitos outros conflitos, como o episódio de Trombas e Formoso, em
Goiás (das décadas de 1950 e 1960). Ocorreu
também nessa época a discussão sobre terras devolutas – “um tipo de terra
pública que deveria estar sob o domínio do Estado, mas que está na esfera
privada, seja ligada a proprietários, ou então, a grandes empreendimentos, como
bancos ou indústrias”, explica Feliciano.
Em meio a esse contexto, em março de 1963, foi
aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no
campo, que até então estavam à margem da legislação trabalhista. Contudo, com o
golpe militar de 1964, as ideias foram revistas e a reforma agrária realizada
nesse período foi concentrada na fronteira agrícola do Centro-Oeste, visando
sobretudo a ocupação do território.
Entre 1980 e 1990, surgiram várias organizações em
defesa da reforma agrária como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, Ligas
Camponesas e a Pastoral da Terra.
Em 1993, o
Congresso Nacional estabeleceu que a improdutividade das terras caracterizava o
não cumprimento do caso previsto pela Constituição de 1988 de função social da
propriedade; ficou estabelecido por Lei que a improdutividade procederia à
desapropriação. Atualmente, por parte dos movimentos, as ocupações de terra
tornaram-se o principal mecanismo de pressão sobre o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), para a execução dos processos de
desapropriação e assentamentos.
Para Viviam Nascimento, um caminho para minimizar
o conflito neste sentido é fortalecer as políticas de controle e fiscalização
da propriedade agrícola, “organizando a titulação, acompanhando o mercado de
terras (incluindo a compra por parte dos estrangeiros), além de fiscalizar e
agir com rapidez nas resoluções de conflitos”.
Segundo Carlos Feliciano, “a solução para esse
impasse é a realização de uma reforma agrária ampla, baseada em critérios
legais melhor definidos”, de acordo com o pesquisador, só assim o Estado
cumpriria o que a Constituição Federal estabelece como função social da
propriedade: ser produtiva, respeitar as leis trabalhistas, ambientais, gerando
desenvolvimento para a região a que pertence.
Mapeamento dos
conflitos
Em abril deste ano, a Comissão Pastoral da Terra lançou um relatório
sobre conflitos no campo a partir de dados coletados em 2010. Dos 638 conflitos
neste último ano, mais da metade refere-se a posseiros (antigos donos de
pequenas áreas sem títulos da propriedade) e a povos e comunidades tradicionais
(indígenas, quilombolas, extrativistas etc.) - totalizando 57% das violências ligadas
à terra, no ano. A maioria tem sua causa ligada a grandes projetos, como
barragens, ferrovias, rodovias, parques eólicos, e mineração.
Mas o que mais marca o ano de 2010 nesse quesito é o crescimento do
número de assassinatos em conflitos no campo: 34 assassinatos, um número 30% maior que em 2009, quando foram registrados
26. O estado do Pará mantém
a liderança quanto ao número dos assassinatos, 18, número 100% maior que em
2009, quando foram registrados 9 mortes. Além dos assassinatos, em 2010 foram registradas 55 tentativas de
assassinato, 125 pessoas receberam ameaças de morte, 4 foram torturadas, 88
presas e 90 agredidas.
Com relação aos conflitos de terra propriamente ditos, o total
permaneceu muito próximo ao de 2009, passando de 854 para 853, em 2010. Os embates
protagonizados pelos movimentos sociais do campo caíram 38%; por outro lado, os
conflitos gerados por expulsões, pistolagem, despejos e ameaças cresceram 21% -
passando de 528, em 2009, para 638, em 2010. A região Nordeste teve o maior número de
conflitos, com 43,7% (279), seguido da região Norte com 36,7% (234). As demais
regiões concentraram 9,6% (61) no Sudeste, 5,8% (37) no Centro-Oeste e 4,2%
(27) no Sul.
A chamada Amazônia Legal concentra 65% dos conflitos de terra, sendo que
Maranhão, Pará e Tocantins concentram 46,2% desse total.
Ao analisar as categorias sociais que foram vítimas das 604 ocorrências
de ações violentas em conflitos no campo, 57% envolveram populações
tradicionais, como comunidades indígenas ou ribeirinhas. Outros 43% atingiram
setores que eram considerados protagonistas da luta pela reforma agrária, como os
sem-terra (182 conflitos), os assentados (61), pequenos proprietários (9) e outros.
Para a Pastoral da Terra, esses dados “deixam
evidente que não é por causa da ação dos sem-terra que a violência no campo
persiste, mas sim devido à violência sobre a qual se alicerçou todo o processo
de ocupação territorial brasileiro desde o tempo da Colônia até os dias de
hoje.”
|