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Quem vê as biografias nas estantes das livrarias e bibliotecas, muitas delas em grandes volumes, pode não imaginar o caminho que o autor percorreu até chegar à escrita das páginas. Além da presteza em elaborar uma história que tenha ritmo e prenda o leitor do início ao fim, o biógrafo tem o compromisso de recriar com fidelidade a vida do personagem tema da obra. Basta ir até o final do livro para ter uma breve noção das inúmeras referências – sejam elas documentais ou obtidas a partir de depoimentos – que foram utilizadas para entender o quanto a pesquisa é parte fundamental do trabalho do biógrafo.
“A pesquisa deve ser a mais ampla e árdua possível. É preciso reunir todo o material disponível sobre o personagem – exatamente tudo o que foi publicado, ou que foi produzido pelo personagem. A pesquisa é a base da biografia. Sem uma boa pesquisa, não se faz uma boa biografia”, resume a jornalista e escritora especializada em biografias, Regina Echeverria. Ela é autora da história de vida de personalidades como Elis Regina, Cazuza (esta com base no depoimento da mãe do cantor, Lucinha Araújo), do político José Sarney e do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger.
Para compor essas trajetórias, foi necessário lançar mão dos mais variados mecanismos de apuração: consulta a arquivos públicos que guardam documentos e jornais e que permitem compreender o período em que viveu o personagem, documentos pessoais, escritos, desenhos e depoimentos. “Sempre entrevisto muita gente, qualquer pessoa que teve algum relacionamento com o personagem em que trabalho”, diz Echeverria. A profissional conta, inclusive, com a ajuda da pesquisadora Susana Horta Camargo que cumpre a tarefa da pesquisa em bibliotecas e arquivos públicos.
Atualmente, Echeverria trabalha na biografia da princesa Isabel, que tem previsão de publicação ainda este ano. Foram necessários dois anos de pesquisa para reunir todo o material, processo que ela define como o mais árduo entre os livros que já escreveu. “Existem muitos documentos, muita coisa escrita, muitos estudos sobre o Segundo Império. É minha primeira experiência em biografia histórica e estou adorando”, relata.
Vidas dedicadas a narrar histórias de vida
Se há um ponto convergente em qualquer biografia ele está no esforço desmedido dos autores na busca de informações que pode se estender por anos, em alguns casos até décadas. São vidas dedicadas à narração de outras histórias de vida. Tarefa que se assemelha muito a de um garimpeiro, o trabalho do biógrafo é buscar e narrar histórias como se fossem preciosidades.
“São anos levantando dados, colhendo material, lendo livros, que vão ajudar a compor o universo do biografado. Muitas vezes é um trabalho da vida do pesquisador, como foi o caso do Paulo César de Araújo, autor de Roberto Carlos - Em detalhes, que levou mais de 15 anos de trabalho antes da publicação. Mário Magalhães, autor de Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo trabalhou nove anos na construção da biografia”. Os exemplos são trazidos pela jornalista e professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul), Karine Moura Vieira, que discutiu o tema das biografias em dissertação de mestrado e atualmente no doutorado.
Moura também atuou como pesquisadora de Lira Neto, na biografia do primeiro presidente militar do Brasil, Castello Branco. Ela ressalta que uma das principais dificuldades no processo de pesquisa é o acesso a alguns arquivos. “Nem sempre as portas estão abertas e o pesquisador precisa de tempo e dedicação para fazer essa apuração. Nessa pesquisa para o Lira Neto, tive dificuldades em conseguir o histórico escolar do ex-presidente no Colégio Militar de Porto Alegre. Depois de alguns meses e muita insistência os dados foram disponibilizados. Havia uma preocupação da escola de como essas informações seriam utilizadas”, conta. Outro desafio é o de narrar a vida de uma pessoa por completo, já que, segundo a jornalista, a característica da biografia é a sua “impossível totalidade”. “Fazer biografias é lidar com a impossibilidade de que sua pesquisa, de que sua narrativa, por mais completa que seja, vai dar conta de toda a experiência que encerra uma história de vida”, defende.
No Brasil, apesar de haver produções do gênero realizadas por historiadores, as grandes biografias que estão no mercado editorial têm como autores jornalistas. “Após se dedicarem a uma carreira na imprensa, eles encontraram na biografia um gênero para fazer reportagem, contando histórias de vida”, diz Moura.
Assim como no jornalismo, na biografia a confirmação das informações é fundamental para a credibilidade da obra. A conferência das fontes deve se dar como em qualquer reportagem, com a confrontação de documentos, depoimentos e o questionamento permanente da origem das informações. Esse trabalho exige que por trás de uma boa biografia haja sempre uma equipe de colaboradores, que são, em geral, jornalistas, historiadores ou especialistas no tema. Porém, o principal pesquisador da obra será sempre o biógrafo, segundo a jornalista. “Ele é o autor da pesquisa e da narrativa. Cada um tem métodos e técnicas próprias de condução da pesquisa de história de vida. O autor da biografia é o biógrafo”.
A apuração é essencial para o biógrafo, seja qual for a área da qual advém. Se para o jornalista a técnica é baseada na prática da reportagem, para o historiador a metodologia de pesquisa da profissão também traz muitas vantagens. “A biografia feita por um historiador sempre parte de um problema de pesquisa sustentado teórica e metodologicamente. Também os historiadores não acreditam em biografias definitivas, que ‘esgotem’ aquela vida. A pesquisa é sempre parcial e historicamente localizada”, afirma o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Benito Bisso Schmidt, organizador dos livros O biográfico: perspectivas interdisciplinares e Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica .
As ferramentas da pesquisa histórica são importantes não apenas para os historiadores que se tornam biógrafos, mas a qualquer um que se aventure no gênero. “Penso ser importante justamente, do ponto de vista histórico, pensar no indivíduo a partir de um conjunto de relações sociais e das possibilidades e limites de sua época, e não de forma isolada. Isso vale para todos os indivíduos. Suas ações e pensamentos só ganham sentido quando entendidos no contexto em que emergiram”, opina Schmidt.
Com relação às fontes de pesquisa, o arsenal do jornalismo é o mesmo do historiador: depoimentos orais, documentos de arquivos, imagens, jornais, entre outros.
“O historiador deve cruzar essas fontes entre si e também procurar contextualizá-las, analisando os interesses que determinaram a sua produção”, ensina o professor. No que diz respeito aos depoimentos, a história oral, técnica de entrevista na qual se dá vazão, sobretudo, ao fluxo de pensamento do entrevistado, é um dos recursos com os quais a disciplina trabalha e que envolve questões teóricas e metodológicas ligadas à memória e à subjetividade. “Ela pode ser utilizada tanto para revelar aspectos da vida do biografado não presentes em outras fontes, quanto (e sobretudo) para entendermos como esse indivíduo é lembrado no presente, qual a sua imagem ‘que ficou’”, explica.
Contando histórias de quem conta histórias
Para a professora em teoria da literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Eneida Maria de Souza, autora dos livros Janelas indiscretas – ensaios de crítica biográfica e Pedro Nava – o risco da memória, a trajetória do biografado pode ser resgatada com a ajuda de entrevistas de amigos, familiares, colegas de profissão e do próprio personagem. “Mas o que se deve contar nessa consulta será também com a construção de lendas e de ficções sobre a imagem do biografado, uma vez que a memória dos entrevistados pode ser ainda fantasiosa. São esses os encantos de lidar com recordações e memórias dos outros”, analisa.
A professora lembra que a desconstrução é fundamental no caso, também, dos arquivos e “faz parte da criatividade exigida pelo biógrafo”. “Pois, como afirma Pedro Nava em suas Memórias , ‘Para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança, onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Os fatos da realidade são como pedra, tijolo – argamassados, virados parede; casa, pelo saibro, pelo reboco da verossimilhança – manipulados pela inspiração criadora. (...) Só há dignidade na recriação. O resto é relatório”, cita Souza.
Documentos, depoimentos e entrevistas não esgotam as possibilidades para recriar o universo do personagem retratado, por exemplo, o de um escritor. “A elaboração de perfis biográficos deve contemplar não só o que se refere à obra publicada do autor, mas também aos objetos pessoais, imprescindíveis para a recomposição de ambientes de trabalho, de hábitos cotidianos e processos particulares de escrita. Objetos muitas vezes triviais, mas pertencentes ao cotidiano de todo escritor, adquirem vida própria ao serem incorporados à sua biografia: mesa de trabalho, máquina de escrever, canetas, agendas, porta-retratos, objetos decorativos, cadernos de anotações, papéis soltos, recibos de compra, diários de viagem, e assim por diante”, lembra a professora.
Para justificar a importância dos traços deixados pelas personalidades nos arquivos, a professora cita a fala do filósofo francês Jacques Derrida, em entrevista a Daniel Ferrer: “A grande fantasia (...) é que todos esses papéis, livros ou textos, ou disquetes já me sobrevivem. Já são testemunhas. Penso o tempo todo nisso, no que virá após a minha morte, quem viria, por exemplo, olhar esse livro que li em 1953 e se perguntará: 'Por que ele assinalou isso, colocou uma flecha aqui?' Sou obcecado pela estrutura sobrevivente de cada um desses pedacinhos de papéis, desses traços”.
Vida para além da vida – os arquivos
“Morte e vida são componentes indissolúveis para o entendimento da sobrevivência, à medida que esta é entendida”, e novamente a professora recorre à Derrida para reforçar seu argumento: “a vida para além da vida, a vida mais do que a vida”. Para ela, “com esse raciocínio, a dimensão temporal da existência – e do arquivo – rompe com as oposições entre antes e depois, entre vida e morte, pelo aspecto anacrônico conferido às categorias relativas ao passado e ao futuro. O arquivo se abre às biografias e às ficções”, descreve, quanto à importância dos arquivos.
Os arquivos são, portanto, guardiões do vasto material que pode ser consultado pelos biógrafos ou mesmo pesquisadores interessados no tema. O Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), localizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, reúne em seu acervo, arquivos de escritores e intelectuais brasileiros como Oswald de Andrade, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia e Flávio de Carvalho, que são disponibilizados para para consulta dos interessados. Há itens como manuscritos, fotografias, correspondências, desenhos, pinturas, livros, entre outros.
O Centro é procurado, segundo a diretora técnica do Cedae, Flávia Carneiro Leão, principalmente por pesquisadores ligados às universidades, que buscam o acervo para a realização de trabalhos acadêmicos. O foco das pesquisas normalmente se refere aos aspectos profissionais das personalidades, mas também pessoais. “Há as correspondências, por exemplo, que permitem obter informações não apenas sobre a pessoa tema do arquivo, mas também sobre personalidades com as quais ela se relacionou”, diz.
No Centro de Memória da Unicamp (CMU) há material histórico e documentação pública e privada relativa à memória de Campinas e região especificamente e, de forma mais ampla, do estado de São Paulo. Há setores como os Arquivos Históricos, com cerca de 800 metros lineares de documentos, Arquivo Fotográfico, com mais de 80 mil imagens do século XIX e XX, Laboratório de Conservação e Restauração de Documentos Gráficos, Laboratório de História Oral, com mais de 800 horas de gravações, Biblioteca e Hemeroteca, com milhares de livros raros e com 65 mil recortes de jornais e mapas, além de uma Área de Publicação, que funciona como editora de pequeno porte.
O historiador Fernando Antonio Abrahão, supervisor dos Arquivos Históricos, conta que o perfil do pesquisador do CMU é aquele que não busca a pesquisa pronta, mas quer levantá-la. Segundo Abrahão, além dos professores e pesquisadores acadêmicos, o CMU recebe muita gente interessada em estudos de parentesco (genealogias). “São solicitações do Brasil e do mundo de pessoas em busca de informações de seus antepassados e, muitas vezes, conseguimos ajudar nesses levantamentos”. Para os biógrafos, o CMU pode ser ponto de largada da pesquisa ou, necessariamente, um dos locais de passagem para levantamento de boa parte de documentos oficiais e fragmentos da história de vida de personagens da região.
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