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Editorial
O animal simbólico
Por Carlos Vogt
10/09/2006

Já se disse que o que diferencia o homem de outros animais é não apenas o fato de que ele vive em sociedade - o que também é próprio do comportamento de outras espécies - mas que, além disso e sobretudo, precisa da sociedade para viver.

Em outras palavras, é a intensidade e a própria qualidade da cultura daí decorrente que fazem a diferença entre o ser humano e outros animais.

Num sentido amplo, cultura não é patrimônio exclusivo do homem, já que pode ser observada em outras espécies, se entendida, segundo propõe Luigi Luca Cavalli-Sforza no livro Genes, povos e línguas (Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 226), como “o conjunto de costumes e tecnologias que desempenharam e continuam a desempenhar papel essencial na evolução do nosso comportamento.”

Essa definição, que inclui as culturas animais, supõe uma diferença fundamental entre estes e os seres humanos baseada na capacidade de uns e de outros.

As espécies animais, pelo que sabe até hoje, mesmo as mais evoluídas do ponto de vista comunicacional, têm limitações que, ao contrário, a espécie humana não tem, graças à faculdade da linguagem de que é dotada de forma muito particular, com alta sofisticação de funcionamento e de desempenho.

Por essa capacidade de linguagem e de comunicação desenvolve-se uma outra característica da cultura que é a da sua estreita relação com os processos de aprendizagem e de educação, na forma em que essa relação se consagrou, por exemplo, na tradição humanista produzindo, entre outras, a distinção, que sempre lhe foi tão cara, entre cultura e civilização.

A cultura tem, pois, características de poder ser ensinada e transmitida por atos estruturados de vontade social, além, é claro, de entrar na dinâmica da transmissão, expansão, consolidação e transformação por contato, quer do ponto de vista da horizontalidade das relações numa dada sincronia, quer pelo legado vertical das gerações que se sucedem, em diacronia.

Em todo esse processo a linguagem tem um papel fundamental e o ato de comunicação que ela permite constitui a condição da diferença entre a cultura humana e a cultura animal.

Essa diferença deve ser entendida como uma diferença de categorias e não necessariamente como uma distinção valorativa, ao menos na forma em que eu a entendo e a apresento.

Segundo Karl Bühler, autor do livro Sprachtheorie (Teoria da linguagem), de 1934, todo ato de comunicação pode ser visto como um drama com pelo menos três personagens: o mundo, que traz o conteúdo objetivo de que se fala, o locutor e o destinatário; alguém fala a alguém de alguma coisa. O que o lingüista francês Emile Benveniste, num artigo famoso sobre os pronomes pessoais publicado no livro Problèmes de linguistique gènérale (Problemas de lingüística geral), de 1966, representou na forma de uma encenação triangular, na qual, na base da figura, encontram-se, em cada vértice, os pronomes pessoais, propriamente ditos - eu e você -, e no vértice superior, em oposição de contrariedade neutra e mediana, o pronome da não-pessoa ele.


Nesse teatro, os personagens se opõem, se complementam e se integram na unidade complexa do signo lingüístico que, desse modo, se desdobra em três direções: para o mundo, isto é, para o conteúdo comunicado, para o locutor e para o destinatário. É assim que ele é símbolo no primeiro caso, é sintoma, no segundo, e é sinal, no terceiro. Enquanto símbolo, o signo lingüístico tem como função principal a representação (Darstellung); como sintoma, sua função é a de expressão (Ausdruck) da atividade psicológica ou moral do locutor; como sinal, sua função é de apelo (Appel) ao destinatário que ele apresenta como concernido e interessado pelo conteúdo comunicado.

Roman Jakobson, num outro texto também famoso - “Linguistique et poétique” (Lingüística e poética) - publicado no livro Essais de linguistique générale (Ensaios de lingüística geral), de 1963, adota essa dramaturgia, multiplicando-a por 2 e elencando para a linguagem, além das três funções anteriores, agora chamadas, respectivamente, referencial, expressiva e conativa, as funções metalingüística, poética e fática. A função metalingüística diz que todo enunciado contém, implícita ou explicitamente, uma referência ao seu próprio código; a função poéticafática permite que a comunicação se mantenha entre os interlocutores através dos recursos recorrentes de contato entre eles. aponta o signo lingüístico para a materialidade de sua estrutura, enfatizando as suas motivações de sentido e de significação; a função

Por aí vê-se o grau de sofisticação e de complexidade da linguagem e de seu funcionamento na organização da cultura e na ordenação dos processos sociais que caracterizam o comportamento do homem na sua historicidade.

Esse poder da linguagem poderia ser sintetizado dizendo-se que o que é próprio da comunicação humana é o seu caráter eminentemente simbólico e em níveis crescentes de abstração, o que permite, por sua vez, formas também cada vez mais sofisticadas de conhecimento do mundo, de nós mesmos, da vida e de seus semelhantes.

Há alguns anos atrás, a título de “Introdução” ao livro Caminhos cruzados (Editora Brasiliense, São Paulo, 1982), que traz como subtítulo Linguagem, antropologia e ciências naturais e para o qual colaboraram com artigos Alexandre Eulálio, Berta Waldman, Edward MacRae, Gilberto Velho, Marcio D’Olne Campos, Marisa Corrêa, Peter Fry e eu próprio, escrevi um pequeno texto - “Caminhos cruzando-se” - que aqui reproduzo e que me parece condensar, em parte, as glórias e as atribulações disso que basicamente distingue a espécie humana das outras espécies animais, vale dizer, o seu comportamento simbólico.

***

Linguagem e mundo não se confundem. Palavras e coisas desgarraram-se umas das outras há muito tempo. Desde o século XVI, segundo o livro famoso de Michel Foucault. A prodigalidade recíproca das palavras e das coisas reforça o papel de representação da linguagem e privilegia o seu caráter simbólico. O símbolo, tal como o entendemos hoje, nasce dessa distância. Nela, elaboram-se as linguagens artificiais das lógicas matemáticas e formulam-se os modelos abstratos de simulação do mundo fenomenológico. Dela, projetam-se os cálculos demonstrativos das ciências em recortes de especialização cada vez mais sofisticados tecnicamente. Nela, a singularidade das relações entre os homens é quase sempre um detalhe que não encontra espaço onde se representar.

Separados linguagem e mundo, o símbolo deveria poder recompor a unidade rompida entre o homem e a natureza. O problema é que o símbolo opera no vazio dessa relação. Ao preenchê-la abstratamente, o resultado é que o homem aparece fantasiado de sujeito do conhecimento e o mundo travestido em seu objeto.

O símbolo é a consciência infeliz dessa separação. Ou a inconsciência feliz da união convencional que através dele se estabelece entre o homem e a natureza. O cotidiano desse casamento e os conflitos que engendra - nem sempre solucionados nos modelos teóricos de suas representações - é esta filha de muitas faces e muitas identidades a que indistintamente chamamos cultura. Nela e por ela somos cruzados: missionários e loucos, normais e espúrios, sinceros e irônicos, alternativos e sistemáticos, sábios e ignorantes, prepotentes e humildes, irreversíveis e subversivos, adultos e menores, heterossexuais e homossexuais, cultos e populares, interpretados e interpretativos.

Quando os conflitos recrudescem, não há teoria econômica, política, religiosa, lingüística, semiótica, filosófica, física ou metafísica capaz de, por si só, resgatar o residual das ruínas de singularidades que o progresso dessa relação abandona em sua marcha para o futuro. Não há centro que generalize a periferia, não há pureza que domine o perigo, não há norma que classifique o desvio.

Insatisfeitos com a unidade convencional que o símbolo opera, passamos a viver criticamente as grandes generalizações. Nesses momentos, mais do que nunca, somos plurais. Importa, então, ouvir o outro, fazer do próprio texto a região de confluência de outros textos, de outras vozes. Transformar o texto próprio no confluente de múltiplos riscos cruzando-se no centro vazio do pensamento simbólico.