Não há dúvida que, embora ainda
minoritária, a presença de personagens negros na propaganda brasileira, adquiriu,
nos últimos anos, uma importância inédita. As imagens publicitárias que povoam
nosso cotidiano – veiculadas na mídia impressa e audiovisual, ou disseminadas
na paisagem urbana através de painéis luminosos, outdoors, e afixadas às
carrocerias dos transportes coletivos – evidenciam uma presença crescente de
personagens de cor. Em que medida isso pode significar uma mudança na percepção
da diferença racial, no contexto de uma cultura marcada pela experiência
histórica da escravidão, fundada nos valores da hierarquia e do preconceito de
cor?
Em toda a história da propaganda no
Brasil, até meados da década de 80 do século passado, negros e mestiços só
apareciam em funções subalternas – como escravos, serviçais e trabalhadores
braçais de vários tipos. Mesmo nesses casos, sua presença é secundária, como
complementos do cenário, e nunca como beneficiários diretos do produto. Por
exemplo, a empregada doméstica que garante a qualidade da farinha comprada pela
patroa, ou o chofer que dá maior status ao carro cuja porta abre para o patrão
(branco, naturalmente). A única exceção a essa regra são os anúncios dirigidos
especificamente para negros, principalmente cosméticos e fortificantes. Estes,
no entanto, só fazem reforçar uma imagem do corpo negro como feio e precário,
um corpo, enfim, cuja natureza deve ser melhorada e corrigida. É o caso dos
anúncios de hené, que torna liso e “bom” o cabelo crespo e “ruim”, e os
de vermífugos e fortificantes que, como na clássica peça criada por Monteiro
Lobato para o Biotônico Fontoura, oferecem uma solução para as agruras do
maltratado e mal nutrido Jeca Tatu.
Modelos negros ocupam cada vez
mais espaço na propaganda brasileira
Há cerca de 20 anos atrás, em 1984, a
atriz e cantora Zezé Mota fundou uma organização para criar maiores
oportunidades para modelos e atores negros: o Centro de Informação e
Documentação do Artista Negro (Cidan). Na época, a iniciativa era pioneira e
ousadamente oportuna. Naquele momento, o ambiente midiático de um modo geral e,
talvez, ainda mais especificamente, o meio publicitário, não apenas não
demonstrava nenhum interesse pelo uso desses profissionais, como lhe era,
muitas vezes, francamente hostil.
O argumento central era que o discurso
da propaganda, para ser eficaz, deveria provocar, no público consumidor,
projeções identitárias “para cima”. Assim, na medida em que, no Brasil,
predominava o ideal de beleza branco europeu – cabelos lisos, de preferência
louros, olhos claros, traços finos –, o uso de negros não só desvalorizaria o
produto como provocaria um sentimento de rejeição, tanto por parte de
consumidores brancos quanto dos próprios negros, na medida em que, entre esses,
prevalecia o ideal de embranquecimento. Por outro lado, a associação entre cor
da pele e condição sócio-econômica era mais uma justificativa a favor da
discriminação.
Hoje, o panorama já não é esse. Cada
vez mais, rostos e corpos escuros ocupam lugar de destaque na mídia para vender
os mais diversos produtos e serviços – moda, alimentos, remédios, acessórios
esportivos, eletrodomésticos, cartões de banco, cursos universitários e de
pós-graduação –, a um público sem característica de cor, e, muitas vezes, de
poder aquisitivo elevado. No papel de protagonistas ou simplesmente inseridos
num grupo de pessoas etnicamente distintas, exibindo ou não uma estética
explicitamente “afro” , os corpos dos modelos negros já não apontam
necessariamente para uma condição de inferioridade de qualquer ordem. Pelo
contrário, a diferença de cor aparece, agora, muitas vezes, como uma
característica positiva, uma diferença que, ao invés de retirar, agrega
prestígio e sedução ao que está sendo oferecido ao consumo da sociedade.
Outro aspecto relevante é o surgimento
de um novo mercado de produtos cosméticos “étnicos” – cremes, shampoos,
sabonetes – destinados especificamente às “pessoas de cor”. A Gessy Lever,
fabricante do sabonete Lux, que se tornou famoso através da campanha que
afirmava ser o preferido de “9 entre 10 estrelas do cinema” (todas louras)
lançou, há cerca de dois anos, a sua versão Lux Pérola Negra. E o que Lux
Pérola Negra promete à Isabel Filardis – atriz negra da TV Globo muito popular
pela sua participação em novelas –, e, por identificação, a todos os que
possuem a pele escura, é cuidar dessa pele, preservá-la. Isto é: seu objetivo
não é torná-la mais clara, e sim ainda mais negra e, com isso, mais bela e
sedutora. Um ideal a que se pode aspirar.
Atriz Isabel Filardis em propaganda
do sabonete Lux, da Gessy Lever
As mudanças no paradigma estético
tradicional no campo da mídia, entretanto, não se restringe a uma valorização
de uma beleza negra, alcançando também o próprio ideal de beleza branca. Como
evidenciam os lábios grossos, a tez morena e os olhos amendoados de alguns dos
modelos brasileiros de maior prestígio, este já não parece tão pautado numa
aparência “puramente” européia, e valoriza traços que denunciam assumidamente a
mestiçagem. Com alguma ousadia, se pode levantar a hipótese de que se verifica,
aqui, uma valorização inversa à do branqueamento. É a “branquitude” que parece
se valorizar quando incorpora traços atribuídos a outros biotipos, seja do
negro ou do índio. A declaração de um executivo de uma das maiores agências
internacionais de modelos estabelecidas no Brasil, Elite, ao explicar o enorme
sucesso de Raica, a modelo brasileira que é a atual namorada de Ronaldo
Fenômeno, no exterior, deixa isso bem claro:
“A Raica tem uma coisa bem índia, é
morena, tem uma coisa bem Brasil. É até a primeira top brasileira que
tem uma cara de brasileira mesmo, que o mercado internacional queria muito.
Acho que, do ponto de vista do conhecimento do público, a maior top que
se viu aí antes dela, nos últimos tempos, foi a Shirley Mallman, que era uma
alemã nítida, né?”
Não há dúvida, de que as mudanças de
comportamento relacionadas ao mercado têm um pé na realidade sócio-econômica. O
surgimento e crescimento de uma classe média negra, ou seja, de um mercado
consumidor negro, é assunto que, recentemente, tem merecido espaço não só nas
páginas de revistas dirigidas aos profissionais de propaganda e marketing, mas
vem sendo objeto de destaque também em revistas de informação geral como Veja,
a de maior circulação no país.
Com o nome sugestivo de “Qual é o pente
que te penteia? perfil do consumidor negro no Brasil”, uma pesquisa realizada
em 1996, pela agência paulista Grottera, revelou a existência segmento com
potencial de consumo em expansão. No mesmo momento, estava sendo lançada, em
São Paulo, pela editora Símbolo, a revista Raça, uma publicação
ilustrada bem editada, a cores, voltada para o público negro. Um grande sucesso
de venda nas suas primeiras edições, a revista Raça tem sido, desde
então, objeto de grandes polêmicas e alvo de severas críticas de uma parte dos
militantes do Movimento Negro, que a consideram excessivamente voltada para o
consumo, em detrimento de questões políticas mais urgentes. Do ponto de vista
dos defensores da revista, por outro lado, o consumo e a estética são, na
sociedade contemporânea, instrumentos de luta pela cidadania e, portanto,
elementos de uma ação política estratégica. Dessa perspectiva, produzir
mudanças no imaginário social é um passo decisivo para provocar mudanças nos
processos de construção de identidades e, portanto, das relações de poder que
se estabelecem na prática.
Seja qual for a opinião que se tenha a
respeito da Raça, entretanto, é inegável que essa revista, apesar das
várias crises editoriais e da queda nas vendas que levaram à redução de sua
periodicidade, foi um marco na divulgação de uma estética negra positivamente
valorizada, e isso não apenas para o seu público alvo. A própria pesquisa da
Grottera, por exemplo, foi um projeto desenvolvido em conjunto com a editora.
Embora predomine, entre a maioria dos
profissionais da propaganda, uma perspectiva marcadamente utilitarista, que
atribui o crescimento do mercado de produtos étnicos e a presença cada vez mais
evidente de negros na propaganda ao surgimento e expansão de uma classe média
negra no Brasil, esse não é o seu único argumento. Um segundo argumento, de
importância central, é o fato de que a presença do negro agrega um valor
específico ao produto. Esse valor pode ser nomeado como modernidade.
Se a cor da estética publicitária
contemporânea é híbrida, a cor da modernidade, enquanto atitude política é
plural. Seu significado está associado ao processo de emergência de novas
identidades sociais – definidas principalmente a partir dos critérios de gênero,
raça e etnicidade – que deram lugar à proliferação de movimentos sociais
pós-anos 60. A valorização das diferenças e a afirmação da cidadania através da
igualdade universal de direitos e deveres, são seus parâmetros centrais.
A globalização da economia e dos fluxos
de comunicação desempenhou, com certeza, um papel importante na disseminação
dessas idéias. Hoje, a presença de negros na propaganda é, muitas vezes,
“exigência das multinacionais”. Desse ponto de vista, o uso de negros na
propaganda não visa atrair consumidores negros, e sim despertar a simpatia dos
brancos para a marca da empresa que, com isso, estaria dando provas de ser uma
empresa dotada de consciência social. Ou, para usar uma expressão muito em
voga, de ser uma “empresa cidadã”, porque valoriza e respeita as diferenças.
Um terceiro argumento para as mudanças
que vêm ocorrendo no trato da diferença de cor na propaganda brasileira é que
são, assim como a defesa do sistema de cotas, o resultado das reivindicações e
denúncias das organizações do Movimento Negro, que, nos últimos anos, ganharam
espaço nos meios de comunicação.
Revista dominical do Jornal do Brasil
Novembro de 2002
Em que medida, então, a propaganda, ao
divulgar padrões de beleza mais plurais e inclusivos, teria algum papel a
desempenhar na construção de relações raciais mais igualitárias e equitativas?
Como os meios de comunicação de um modo geral, a propaganda não cria
comportamentos ou valores. Atuando no campo da cultura, e suas diferentes
expressões, ela capta algumas tendências e as dissemina. Assim, sua atuação
pode ou reforçar preconceitos – reproduzindo os estereótipos dominantes no
discurso social; ou promover e fortalecer novos valores e visões de mundo –
abrindo espaço para outras versões da realidade.
A comparação com a moda é muito
oportuna. Como a moda, a propaganda faz parte do sistema de produção industrial
da cultura. Como a moda, ela está comprometida com a produção de discursos
inovadores no contexto da lógica da economia de mercado – onde, como diria
Lipovetsky, em O império do efêmero, (Lipovetsky, 1989) impera o
transitório. Como a moda, esse processo de inovação se dá sempre numa dinâmica
coletiva. Se há tendências que vingam na moda, há modas que vingam no discurso
publicitário. Assim, o uso de negros numa campanha ou peça de propaganda, pode
levar, como tem levado, ao uso de negros em outras.
Diversamente da moda, no entanto, o
produto da propaganda é o próprio discurso, cujo consumo independe da troca
econômica, de poder aquisitivo ou, até mesmo, do desejo expresso de consumi-lo.
Diversamente da moda também, por outro lado, a publicidade não vende apenas a
si mesma – aos anúncios e suas mensagens – mas tem compromissos com clientes
cujos produtos deve vender ou cuja imagem deve promover. Precisa, portanto,
para não trair os seus propósitos, manter-se no interior de uma linguagem cujo
vocabulário seja compreensível e cuja mensagem seja positivamente assimilada.
Na posição ambígua, entre a obrigação
de atender ao cliente e a de inventar para ser notada, a propaganda tem sempre
uma brecha para inovar, no sentido de tornar a exceção à regra. Como antenas
sensíveis, os profissionais do mercado – em especial os publicitários e
especialistas em marketing – detectam uma diversidade de visões de mundo que
circulam na sociedade, que posteriormente selecionam e rearticulam,
emprestando-lhes ênfases próprias. E, por estarem sempre em busca de
diferenciais, irão estar especialmente atentos para a informação que ainda é
periférica.
Como estratégia empresarial, sem
dúvida. Potencialmente geradora de lucro, sem dúvida. O que não elimina o
potencial dos discursos da propaganda daí resultantes, em termos da produção,
disseminação e legitimação de outros modelos e ideais de comportamento social.
O que, se não tiver nenhum outro efeito, terá pelo menos o de colocar em cheque
determinados padrões aceitos como naturais, instalando o debate. Nem que seja
porque está na moda.
Ilana Strozenberg é pesquisadora e professora de graduação e pós-graduação da
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É
também vice-coordenadora do Programa Avançado de Estudos Culturais (Pacc), do
Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.
* Este trabalho é um
resultado da pesquisa “A cor do mercado”, coordenada por mim, que integra o
Projeto Integrado “Estética e política: relações entre raça, publicidade e a
produção da beleza no Brasil”, coordenada pelo Prof. Peter Fry, com o apoio do
CNPq.
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