Com o advento da sociedade em rede (Castells, 2000), torna-se cada vez mais evidente a importância das cidades como elos (nós) numa vasta rede (ainda que em muitos casos excludente) baseada em tecnologias de informação e comunicação (TICs). Existem diversos motivos pelos quais as cidades tornam-se elementos centrais na sociedade em rede, e, dentre eles, pode-se destacar os seguintes: a compressão do espaço-tempo via tecnologias de informação e comunicação (TICs) e a possibilidade de descentralizar produção e centralizar o controle de processos via TICs (Sassen, 1994; Mosco, 1996; Castells, 2000).
Considerando a importância das cidades na sociedade em rede e sem a pretensão de esgotar as possibilidades de abordagem conceitual que podem lhe ser aplicadas, é possível identificar quatro perspectivas para compreendê-las na sociedade em rede: cidades globais, technopolis, cidades do conhecimento e cidades criativas. Cada um desses conceitos é apresentado, de forma breve, com o objetivo de explorar (de forma inicial) a possibilidade de sua aplicação às cidades de Salvador (Bahia, Brasil) e Austin (Texas, Estados Unidos).
Cidades globais
De acordo com Castells (2002), as cidades conectam-se umas às outras numa escala global (via tecnologias de informação e comunicação) da mesma maneira que “nós” conectam redes. Os fluxos diversos dentro dessas redes de cidades, no entanto, não são homogêneos e certos circuitos são preferidos em detrimento de outros, em grande medida em função do fato de tradicionalmente serem centros internacionais de negócios e serviços bancários; concentrarem centros decisórios, serviços especializados e financeiros; e serem ao mesmo tempo geradores e consumidores dos produtos resultantes de inovações. Para Castells (2002), a cidade global não é um lugar, mas sim um processo, uma arena onde capital, inovação, tecnologia, interações organizacionais, sons e símbolos podem fluir por meio de redes baseadas em tecnologia (Catells, 2000, pp. 442-444). Similarmente, para Graham (2002), as cidades globais concentram uma série de elementos que as torna dominantes na economia global, dentre eles, destacam-se: redes e serviços de telecomunicações, serviços financeiros e finanças corporativas, comércio internacional, matriz de corporações, serviços avançados, e indústrias culturais de alcance global (incluindo as indústrias de mídia). Em complemento a essas perspectivas, para Sassen (1994), as cidades globais são aquelas que concentram atividades e funções que são essenciais à economia global, a exemplo de finanças e serviços corporativos avançados. Na verdade, as cidades globais são os centros de comando dessa mesma economia e é nelas que estão localizados os centros decisórios de firmas e organizações transnacionais (Sassen, 1994). As cidades globais são, portanto, o centro estratégico na gerência da economia global, notadamente no que se refere a serviços especializados e finanças, constituindo-se em mercados transnacionais onde firmas e governo podem comprar tais serviços.
Technopolis
Smilor, Kozmetsky e Gibson (1988) definem uma technopolis como uma cidade na qual os setores público e privado interagem para gerar desenvolvimento econômico via desenvolvimento tecnológico, sendo que três elementos são essenciais na sua constituição: proeminência em ciência e tecnologia, tornando a technopolis conhecida nacionalmente e internacionalmente a esse respeito; b) desenvolvimento em tecnologias emergentes (a exemplo de biotecnologia, materiais, inteligência artificial e tecnologias de informação e comunicação); e c) capacidade de criação e atração de indústrias de tecnologia. Gibson, Smilor e Kozmetsky (1991) destacam que a interação e a contribuição dos seguintes atores institucionais são essenciais para a formação e manutenção de uma technopolis: universidade líder em pesquisa, empresas de tecnologia (tanto grandes quanto pequenas), governos estadual, municipal e federal e grupos de suporte diversos (a exemplo de incubadoras). Por fim, numa technopolis, a comercialização da tecnologia criada é um elemento essencial. Portanto, não basta que os atores (indicados acima) estejam interagindo entre si e produzindo um ambiente propício à criação de novas tecnologias; é necessário que existam, também, condições que permitam a sua comercialização.
Cidades do conhecimento
Para Ergazakis e Metaxiotis (2006), uma cidade do conhecimento é aquela que cria condições que incentivam criação, compartilhamento, avaliação e atualização de conhecimentos por meio de interações entre seus cidadãos e com outras cidades. O pressuposto básico é que a geração de conhecimento pode gerar desenvolvimento local, sendo que para tanto, é necessária a existência de infraestrutura de redes e tecnologias de informação e comunicação, uma cultura de compartilhamento de conhecimento e condições infraestruturais na cidade que favoreçam a geração de conhecimento. Para eles, os seguintes elementos são essenciais a uma cidade do conhecimento: uma forte dinâmica de suporte à inovação; educação de qualidade; envolvimento do cidadão com o desenvolvimento da cidade, incluindo sua identidade; e criação de um ambiente tolerante a minorias e imigrantes. Para Edvinsson (2006) a cidade do conhecimento encoraja e cria elementos que gerem capacidades coletivas de conhecimento, que se expressem, por exemplo, na criação de parques tecnológicos. Ele vê as cidades como um “porto” de conhecimento, onde a colaboração entre sociedade, universidades e negócios é essencial para a geração de riqueza. Corroborando Edvinsson (2006), Flores (2006) ressalta que a grande tarefa de uma cidade focada no conhecimento é maximizar a interação entre seus diversos agentes, na busca da criação de valor.
Cidades criativas
De acordo com Florida (2005), as cidades são um “caldeirão” de criatividade por concentrarem energia humana (a ser transformada em inovações artísticas e técnicas, novas indústrias e paradigmas de comunidade e civilização). Para ele, todo o desenvolvimento de uma cidade é centrado nas pessoas, pois são elas que possuem a capacidade de criar. Daí surge a importância depositada por Florida no talento (ou conjunto desses) para o desenvolvimento de uma cidade. Na perspectiva de Florida, uma cidade criativa é centrada em três “Ts”: tecnologia, tolerância e talento. No que se refere à tecnologia, uma cidade criativa possui uma boa infraestrutura tecnológica, concentra indústrias de tecnologia e gera inovação. A tolerância diz respeito à abertura para diferentes culturas, etnias, raças e respeito a minorias. Na perspectiva de Florida (2005), o talento é o elemento mais importante para uma cidade criativa, sendo, portanto, fundamental para as cidades que desejem centrar-se num desenvolvimento baseado na criatividade reter e atrair pessoas talentosas. Além dos outros “Ts” (tolerância e disponibilidade de tecnologia), as pessoas talentosas decidem se mudar para certas cidades em função do estilo de vida proporcionado, das amenidades oferecidas (parques, bares, restaurantes, cafés, elementos naturais etc.) e, muitas vezes, na busca de um estilo de vida boêmio (Florida, 2005). Clark (2004), por exemplo, afirma que as amenidades podem “transformar uma localidade numa cena”, ao ressaltar a importância das opções de entretenimento e cultura para a atração de talentos. Blakely (1991) também destaca a função das amenidades e suas relações com pessoas talentosas, porém, ressalta a importâncias das oportunidades educacionais nesse processo. Por outro lado, as cidades criativas não devem ser definidas apenas em função do seu desenvolvimento tecnológico. A existência de uma forte economia cultural e de indústrias criativas bem desenvolvidas também podem ser elementos definidores desse conceito. Currid (2007), por exemplo, demonstra a importância das indústrias de moda, arte e música para a economia da cidade de Nova York.
Salvador e Austin – explorando conceitos
Com base na breve explanação acerca dos conceitos acima, pode-se posicionar, de forma breve e necessitando de complemento, as cidades de Austin e Salvador em relação a eles.
a) Austin – Ainda que tenha certo grau de internacionalização (é sede, por exemplo, da Universidade do Texas, que atrai diversos alunos estrangeiros, e de grandes empresas, notadamente na área de tecnologia), a cidade de Austin não pode ser considerada uma cidade global, pois não se constitui num nó central na sociedade em rede, papel que cabe a cidades como Nova York, Londres e Tóquio, por exemplo. Ainda que nela possam ser observados os diversos elementos que definem uma cidade global, Austin não é um grande centro financeiro e, no que tange a negócios, não possui a escala necessária a uma cidade global (Dallas e Houston são, comparativamente, centros muito maiores). Por outro lado, Austin destaca-se no que se refere à tecnologia, arte, cultura, e qualidade de vida, o que lhe concede o título tanto de technopolis, quanto de cidade criativa. Simlor, Kozmetsky e Gibson (1988) e Gibson, Smilor e Kozmetsky (1991) posicionam Austin como uma tecnhopolis, demonstrando que a interação entre diversos atores institucionais, a existência de uma universidade de pesquisa (a Universidade do Texas) e a existência de estratégias e instituições que fomentam a comercialização de tecnologia (a exemplo do IC² Institute, que, dentre outras atividades, gerencia o Austin Technology Incubator), ajudaram a tornar Austin numa cidade proeminente em tecnologia (notadamente de informação e comunicação). Florida (2005) deixa bastante evidente a existência dos três “Ts” em Austin, demonstrando que a cidade tem uma alta concentração de trabalhadores na área de tecnologia e de software; é considerada um lugar ideal para empreendedorismo; é uma cidade com boa infraestrutura de informação e comunicação (inclusive redes wireless ); com uma alta concentração de indústrias de alta tecnologia e de pessoas com nível superior e pós-graduadas; possui um estilo de vida “relaxado” e ao ar livre; é considerada uma das principais cidades dos Estados Unidos no que se refere à música ao vivo; e tem se constituído em uma importante cena de filmes independentes. Além disso, o fluxo constante de estudantes internacionais e de trabalhadores estrangeiros na área de tecnologia – muitos dos quais, atraídos pelas amenidades, segurança e alta qualidade de vida proporcionada por ela – amplia a diversidade cultural da cidade. No que se refere às cidades do conhecimento, ainda que não existam estudos analisando Austin sobre essa perspectiva, acredita-se que as condições institucionais que tornam a cidade uma technopolis e uma cidade criativa permitem afirmar que Austin é uma cidade do conhecimento. A Universidade do Texas é, inclusive, uma grande geradora de conhecimento via pesquisa e desenvolvimento, e possui mecanismo para disseminá-los para além de seus laboratórios e salas de aula.
b) Salvador – A capital baiana não pode ser considerada uma cidade global (ainda que certos elementos da cidade possam ser assim considerados), pois, dentre outros aspectos, não possui uma alta concentração de centros decisórios de empresas, não é um centro financeiro e não se constitui num nó central na sociedade em rede (Ferreira, 2010). Na perspectiva de technopolis, Salvador não pode ser considerada como tal, pois dentre outras coisas, não possui uma grande concentração de indústrias de tecnologia nem de infraestrutura de informação e comunicação, e deixa a desejar em inovação tecnológica (Ferreira, 2010). Ainda que existam centros de excelência em tecnologia em suas universidades, estes ainda se encontram distantes do mercado e a comercialização da inovação tecnológica (via transferência universidade-empresa) tende a ser baixa. Por outro lado, deve-se ressaltar que iniciativas como o Tecnovia (parque tecnológico) buscam dar um impulso a área tecnológica da cidade, por exemplo, nas áreas de TIC e de biotecnologia. Ainda que possua em seu território universidades que conduzem pesquisa (a exemplo da Universidade Federal da Bahia) e mecanismos de apoio à disposição que visam incentivar a geração de conhecimento, Salvador não pode ser considerada como uma cidade do conhecimento, pois carece de infraestrutura e articulações diversas entre seus atores para tanto. Sob a perspectiva de indústrias criativas, ao se considerar o aspecto tecnologia dos três “Ts” de Florida (2005), Salvador estaria ainda distante de se tornar criativa. No entanto, considerando-se o conceito de cidades criativas para além de seu viés tecnológico, sob uma perspectiva de economia da cultura e de indústrias criativas, Salvador pode ser considerada como parte desse grupo de cidades. Salvador tem um grande potencial como um polo de entretenimento e turismo, além da possibilidade de constituir-se como um cluster cultural. O carnaval da cidade, que movimenta bilhões de reais nos dias da festa (Secult, 2007), por exemplo, demonstra o poder da economia criativa em Salvador.
Conclusões
A breve análise desses dois casos permite algumas especulações, ainda que embrionárias. A primeira delas é a porosidade dos diversos conceitos. Na verdade, ainda que distintos, os conceitos discutidos possuem uma série de similaridades. Isso fica evidente no caso de Austin, que pode ser considerada ao mesmo tempo uma technopolis, uma cidade criativa e do conhecimento, por motivos bem semelhantes. Além disso, percebe-se que os conceitos não podem ser utilizados de forma restritiva; Salvador pode ser considerada uma cidade criativa, ainda que não seja um caso de desenvolvimento baseado em tecnologia. Por fim, esses conceitos (inclusive conjugados) podem servir de base para a construção de indicadores e marcos norteadores do desenvolvimento de cidades, ou seja, se uma cidade deseja se tornar uma technopolis, por exemplo, tem à disposição na literatura os elementos que definem uma localidade desse tipo.
Fabio Ferreira é doutor em comunicação pela Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos e professor adjunto da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia.
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