O ser rastejante se desloca entre o público. As pessoas passam por ele procurando não notá-lo. Tarefa difícil: as pernas tortas e finas, a pele grossa e os olhos esbugalhados chamam atenção de longe. Agora é uma garotinha de olhos azuis que fita a criatura com curiosidade, segundos antes de ser puxada pela mãe apressada. O monstro é deixado para trás em sua triste sina diária de buscar alguns trocados para sobreviver.
O mendigo que perambula no calçadão público é o retrato mais cruel do monstro na sociedade. Parece impossível não perceber esse corpo que foge à normalidade. Não é de hoje que rejeita-se o diferente do normal. O “monstro humano” já era representado na cultura medieval como aquele que violava as leis da natureza e as da sociedade.
Esse conceito, criado pelo filósofo francês Michel Foucault em sua obra Os anormais , destaca algumas características que ainda hoje persistem em nossa definição de monstro. “O monstro homem é o homem-besta, um animal que não tem a natureza humana”, explica o sociólogo e psicólogo Francis Morais de Almeida, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Estudioso de Foucault, Almeida conta que em tempos medievais, a natureza se resumia às “ características humanas ” e tudo que se afastava delas era tido como monstruoso.
“A monstruosidade é considerada a desumanização do outro”, colabora a antropóloga Núbia Bento Rodrigues, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E além de sua aparência, o monstro é identificado pelos seus atos. “Suas ações fogem do critério possível ou aceitável pelas pessoas”, acrescenta Rodrigues. Seguindo a idéia de Foucault, se a anormalidade física do mendigo agride as leis da natureza, o comportamento do louco assassino fere as leis da sociedade.
A humanidade do monstro é o que mais assusta a sociedade. Fonte: O silêncio dos inocentes. Anthony Hopkins, como Hannibal Lecter. www.adorocinema.com
O monstro não surge sozinho. “Cada sociedade elege seus critérios de normal e aceitável”, frisa a antropóloga. Crimes taxados de monstruosos nos levam a refletir sobre a condição de humano daqueles que os praticam. A cada maníaco que surge estampado nos jornais, um novo monstro aparece para assustar nosso cotidiano. As pessoas se refugiam em seus lares e sentem-se desprotegidas diante da barbárie e da violência. A sociedade pede justiça. Os relatos dos dramas familiares, amplificados pelas mídias, criam esse efeito de comoção.
Foi assim há quase 15 anos, quando a atriz Daniela Perez foi assassinada pelo ex-ator Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz. O crime deixou a sociedade estupefata, como se sentisse cada um dos 18 golpes de tesoura desferidos contra a atriz. Seguiu-se ao crime um movimento liderado pela autora Glória Perez, mãe de Daniela, que em 1994 conseguiu incluir o homicídio qualificado na lei dos crimes hediondos. Momentos de comoção nacional geram, por vezes, terrorismo penal e forçam o endurecimento da lei.
“É sintomático ver uma sociedade comovida por um crime contra alguém de projeção nacional, mas nunca se mostrar preparada para acabar com os crimes hediondos que ocorrem diariamente nas classes baixas”, analisa Rodrigues. Segundo ela, o caráter monstruoso do crime, ou a barbaridade da ação, também dependem do contexto em que são aplicados. O aparato de tortura utilizado no regime militar, por exemplo, mutilou, subjugou e expropriou a condição de humano dos presos, do mesmo modo que faz o mais brutal dos criminosos. Nesse caso, os requintes de crueldade são amparados pela lei.
Por que a sociedade faz essa diferenciação nas ações de crueldade? “Foucault talvez perguntaria quais são os discursos que estão em torno de um tipo de barbaridade e de outro que vão torná-los diferentes”, responde Rodrigues, sugerindo que o discurso em si pesa mais que a própria ação. Basta analisar a sociedade que se estarrece diante de atos bárbaros de criminosos, mas almeja que eles sejam punidos com a mesma violência que proporcionaram às suas vítimas.
Essa visão fica ainda mais clara em dois últimos exemplos. Há 10 anos, o índio Galdino Jesus dos Santos, 44, do povo Pataxó, acordava em um ponto de ônibus de Brasília com o corpo tomado por chamas. Ele não suportou os ferimentos e morreu horas depois no hospital. Galdino fora à Brasília junto com uma delegação de indígenas reivindicar a recuperação de suas terras. Como não conseguira lugar para passar a noite, dormiu no banco de uma praça. Na madrugada, cinco jovens de classe média brasiliense resolveram, “por diversão”, confessou um deles, atear fogo em uma pessoa que dormia indefesa. Diante da perplexidade da opinião pública, um dos jovens declarou: “Não sabíamos que era um índio, pensávamos que era só um mendigo”.
Em 2004, o dentista Flávio Ferreira Sant'Ana, 28, foi assassinado pela polícia na zona norte de São Paulo. Negro, Flávio foi confundido com um ladrão e morto com dois tiros. Nova comoção nacional, dessa vez pelo engano da polícia. Todos ficaram chocados com o erro, mas alguém se perguntou se seria normal a polícia matar um ladrão? “A polícia tem o direito de matar o ladrão, independente do que ele fez?”, indaga Rodrigues.
Humanidade em tempos de guerra
Soldada humilha prisioneiro em Abu Ghraib Fonte: salon.com Fernando Botero, artista colombiano, se inspira no terror de Abu Ghraib para fazer suas obras. Fonte: www.repubblica.it
A jovem militar traz pela coleira seu brinquedo. Na outra ponta da corda, o homem se contorce de dor, apóia uma das mãos no chão, mas não consegue equilíbrio. As imagens chocam o mundo todo, mostrando as torturas impostas pelos soldados norte-americanos aos iraquianos na prisão de Abu Ghraib. O desprezo pelo prisioneiro é exemplar e demonstra que, em tempos de guerra, o inimigo é o monstro. “É uma condição de guerra desumanizar o inimigo. Caso contrário, a verossimilhança com o outro impede o ato de violência”, explica a antropóloga da UFBA.
Outros casos se espalham pela história. Como explicar o holocausto nazista ou o massacre de Ruanda, quando as pessoas perderam a total noção de sua humanidade? Para Maria de Fátima Franco dos Santos, professora de psicologia forense da Puccamp, o nazismo surgiu em um ambiente favorável provocado pela humilhação da Primeira Guerra e pelo caos econômico. “O discurso nesses momentos de fragilidade pode soar mais convincente do que o próprio senso crítico e assumir importância maior para o indivíduo que os seus valores pessoais”, resume.
No caso de Ruanda, o governo colonial belga acabou criando mecanismos de diferenciação na sociedade. Quando a guerra estourou, em 1991, vizinhos e colegas de trabalho se tornaram inimigos pelo simples fato de pertenceram a etnias diferentes. E o mundo fez vista grossa à brutal matança de um milhão de ruandeses. “Atos monstruosos, bárbaros e desumanos que exigem maior interpretação do contexto para entender com foi possível ocorrerem naquela situação”, conclui Rodrigues.
Monstro e doença
Quando os crimes monstruosos surgem na cena brasileira, a sociedade se esforça na tentativa de explicá-los. Por culpa de seu crime, o homem vira um monstro, mas aos poucos retoma os seus contornos humanos. “Somente o ato em si não é monstruoso. A falta de uma explicação e racionalidade é que o faz assim”, explica o psicólogo Francis Almeida. Quando a ciência consegue explicar o crime, ele perde sua monstruosidade.
Ele conta que, do ponto de vista etimológico, o monstro (do latim, monstrun) não pode ser descrito ou nominável, nem passível de definição ou classificação. Por isso, em muitos casos, a psicologia entra em campo para decifrar o autor do crime e classificá-lo sob a égide da ciência. “No momento que identificamos alguém como psicopata ele deixa de ser monstro”.
Muitos dos maníacos que assustam nosso cotidiano já são previstos e comuns na literatura psiquiátrica. “A ciência desmistifica e racionaliza os crimes”, avalia Almeida, sugerindo que não há monstruosidade no comportamento do criminoso. Segundo ele, o psicopata, ou sociopata, é uma pessoa desprovida de sentimento altruístico e que não desenvolve qualquer empatia pelo outro. “É uma determinação relacional, não é um sujeito que nasce com a predisposição para ser assim”, defende o psicólogo, “a sociologia e a psiquiatria estão muito próximas”.
Já Santos, também psicóloga, destaca dentre as características do psicopata, a insensibilidade e a falta de vínculos sentimentais duradouros. “Essa insensibilidade é o que vemos na televisão quando um delegado diz: ‘o assassino não demonstrou nenhum remorso ao assumir o crime'. Claro que não vai demonstrar, ele é incapaz de sentir culpa, remorso ou compaixão pela vítima”, avalia.
O psicopata pode cometer barbaridades, mas sua definição é prevista, inclusive no Código Penal Brasileiro. No âmbito do direito, o sujeito que sofre de personalidade psicopática é semi-imputável – ou segue direto para a prisão ou cumpre medida de segurança em um hospital de custódia e tratamento até a cessação de sua periculosidade. A definição do psicopata é feita em uma entrevista com um psiquiatra forense.
Quem é o psicopata?
Na história da criminologia, diferentes estudiosos tentaram entender com funciona a “mente criminosa”. No século 19, um dos autores de grande destaque foi o criminalista italiano Cesare Lombroso, que ficou famoso por tentar relacionar características físicas à tendência inata do comportamento criminal. Mais tarde as idéias de Lombroso foram desacreditadas entre as ciências.
“Ninguém em sã consciência diria hoje que os métodos de Lombroso são válidos”, atestou Almeida. Os métodos atuais, no entanto, pecam pelo mesmo erro metodológico do criminalista italiano. O pesquisador da UFRGS diz que os estudos da personalidade criminal são feitos somente em pacientes presos. Os dados identificam questões como assiduidade ao trabalho, tendência ao casamento, etc, que têm mais a ver com o estilo de vida das pessoas do que com a personalidade.
“A luva é feita de acordo com a mão. Os indicadores são feitos para destacar somente aquilo que supostamente identificaria uma personalidade violenta, mas os estudos não são aplicados na população não presa para confirmar isso”, reclama o psicólogo.
Segundo Almeida, a própria definição do psicopata é algo que não resolve todos os problemas. A criação do termo sem entender como e por que ele ocorre vale apenas como rótulo. “Essa preocupação com o monstro, no limite, é pensada como modelo para toda a criminalidade”, acredita. “A pessoa entrega o dinheiro, pois o bandido pode ser um assassino. Sempre pensa o pior”.
Voltando a Foucault, a obra Vigiar e punir fala da relação de suplício e da vigência do poder soberano. Até a Revolução Francesa, o crime mais grave que podia ser cometido era o assassinato do rei. Para mensurar os outros crimes, todos eram comparados com o regicídio, conta Almeida. Em sua opinião, “hoje o parâmetro é o psicopata, e na menor oportunidade para enquadrar um criminoso como tal, isso é feito”.
Mas a maioria dos crimes é provocada por pessoas comuns, de ficha limpa, e não por psicopatas. Almeida conclui com a idéia de “máscara da sanidade”, do psiquiatra norte-americano Hervey Milton Cleckley, segundo o qual, a maior parte dos psicopatas sequer são presos. “Psicopatas bem sucedidos são aqueles que conseguem apresentar uma boa máscara”, avalia Almeida, e conclui: “A psicopatia tem muito de humano, ela só é levada ao extremo para constituir esse rótulo”.
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