A palavra biblioteca nos remete a um lugar tranquilo
e silencioso, ou para alguns, a apenas um repositório de livros. Mas muito mais
do que um lugar reservado a livros e leitores, as bibliotecas têm muito a dizer
sobre as relações estabelecidas ao longo da história entre a cultura e as
pessoas, entre a humanidade, seu conhecimento acumulado e seu legado para o
futuro. A história das bibliotecas remonta à história da
consolidação da civilização em seu aspecto mais fundamental, no qual os resultados dos progressos da humanidade em sua
evolução social e intelectual são mantidos e perpetuados. “A ciência é
cumulativa e a biblioteca tem a função de preservar a memória – como se ela
fosse o cérebro da humanidade – organizando a informação para que todo ser
humano possa usufruí-la”, explica Luís Milanese, professor do Departamento de Biblioteconomia da
Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA/USP), no livro O que é biblioteca. Desta maneira, segundo ele, a história da biblioteca é a
história do registro da informação.
De acordo com Ana Lúcia Merege, da Biblioteca Nacional, o conceito de “biblioteca”, apresentou significados diferentes ao longo
do tempo, sem, contudo, deixar de representar um espaço de registro de
informações. “O conceito de biblioteca como lugar de acumulação de registros
escritos remonta à Antiguidade. As primeiras civilizações a criar sistemas de
escrita foram também as pioneiras em manter bibliotecas. Na Mesopotâmia, as
bibliotecas compostas por tabuletas de argila, com registros em escrita
cuneiforme, existem aproximadamente desde o século V anterior à nossa era”,
conta.
Segundo Merege, assim como hoje, as obras eram
organizadas segundo critérios rigorosos, e também havia mecanismos de consulta.
“ Na mais antiga biblioteca de que se tem notícia, a de Ebla, na Síria, havia
extensas listas de nomes, dicionários e gramáticas. Na de Assurbanípal, a mais
famosa biblioteca da Mesopotâmia, as obras eram divididas em ‘Ciências do Céu’
e ‘Ciências da Terra’, eram catalogadas e ficavam a cargo de funcionários
qualificados”, aponta. Como apenas uma pequena parcela da população sabia ler,
essas bibliotecas particulares ou institucionais só eram usadas por estudiosos
e, em certas civilizações, por funcionários e escribas que davam suporte à
administração. “Ainda assim, pode-se dizer que o conceito de biblioteca como
espaço de saber também data da Antiguidade; basta citar, como exemplo, a famosa
biblioteca de Alexandria, que reunia em torno de si um grande número de
estudiosos e dava suporte a debates, pesquisas e avanços científicos”, completa.
A biblioteca de Alexandria foi fundada pelos
primeiros representantes da dinastia ptolomaica, no século III a.C, no interior
do Museion, ou templo das musas (centro de cultura grega). Sua finalidade era “concentrar
em si toda sabedoria acumulada pelo mundo grego, dando a seus herdeiros domínio
sobre ela”, relata Matthew Battles, da biblioteca Houghton, no livro A conturbada história das bibliotecas. Parte
da mitologia que envolve essa biblioteca se deve aos relatos que ressaltavam as
atividades intelectuais em torno dela, uma vez que não restou nenhuma evidência
física de sua existência. “Os estudiosos do Museion comiam juntos num
refeitório e toda propriedade intelectual era coletiva, modelo que seria
imitado depois, na Idade Média, pelas primeiras universidades europeias. O grau
de liberdade acadêmica de que os estudiosos desfrutavam era extraordinário”,
aponta Battles. “Ao patrocinar esse objetivo, os ptolomeus confirmavam a
intuição essencialmente alexandrina de que o conhecimento é um bem, uma
mercadoria, uma forma de capital a ser adquirido e entesourado”, conclui.
Atenas e Pérgamo também sediaram grandes
bibliotecas, com centenas de milhares de livros. Havia ainda bibliotecas mais
modestas em Rodes e em Antioquia (atual Antakya, na Turquia). O mundo experimentou sucessivas experiências
de acúmulo e organização dos livros, como a profusão de bibliotecas
particulares durante o Império Romano, além de importantes iniciativas como a
biblioteca de Constantinopla, no século V, com cerca de 120 mil volumes, ou as
coleções medievais cristãs, mantidas em monastérios.
As bibliotecas, ainda que fossem espaços de
circulação do saber, eram centralizadas em torno da relação entre governantes e
intelectuais. “Em tempos de guerras, infortúnio ou decadência, porém, essa
centralização tornava-se um problema, pois toda a literatura contida ali
estaria condenada a ter o mesmo destino que a biblioteca”, explica Battles. Contudo, mesmo que algumas
bibliotecas se perdessem através de guerras, a tradição estabelecida se manteve.
Na Idade Média surgiram, na Europa, importantes bibliotecas nos centros de
poder político-econômico, como as bibliotecas italianas de Florença
(Laurenziana, arquitetada por Michelângelo), Veneza (Marciana), do Vaticano (fundada
pelo Papa Sisto IV), de Milão (Ambrosiana), além das bibliotecas de Roma, entre
elas a da Universidade Sapienza (uma das mais antigas do mundo).
As bibliotecas monásticas, em particular, tiveram
um papel fundamental, pois além de manter livros que eram essencialmente
religiosos, também contribuíram para a perpetuação e preservação de textos da Antiguidade.
Os monges beneditinos praticavam o oficio de scriptoria, ou seja, realizavam cópias de livros que se tornaram
raros no Ocidente. Embora os monges censurassem certas obras ou passagens, esse
trabalho permitiu a perpetuação de obras antigas. O mosteiro de Monte Cassino,
próximo a Roma, foi provavelmente o maior do Ocidente, onde se copiou aproximadamente
três mil volumes.
Na França, a Biblioteca Real (atual Biblioteca
Nacional), foi criada por Carlos V, em 1368, e ficava no palácio do Louvre, com
aproximadamente 1,2 mil volumes. Mas a biblioteca pública francesa mais antiga
é a Mazarine, aberta ao público desde 1643. Ela se origina como coleção
particular do cardeal Mazarin e foi consideravelmente expandida sob a tutela de
Gabriel Naudé, autor do primeiro tratado de biblioteconomia moderna. Para
garantir a sua manutenção, Mazarin integrou-a ao Collège des Quatre Nations,
destinado à educação de jovens das quatro províncias que estavam sob sua
regência e que, mais tarde, tornaria-se o Institut de France (reunião das academias francesas de letras, belas-artes, ciências
e ciências sociais).
Frente da
Biblioteca Mazarine, em Paris. Foto: Wikimedia
Commons.
Além dessa incipiente abertura das bibliotecas ao
público, um marco histórico fundamental mudaria para sempre o alcance das obras.
“ A adoção do formato códice em substituição ao rolo já havia facilitado
muitíssimo a circulação de informação nos primórdios da cultura cristã. Mas o
surgimento da imprensa, no século XV, é o grande divisor de águas, pois
permitiu uma multiplicação de obras, de sua circulação, e foi,
consequentemente, vital para o surgimento e o incremento de bibliotecas”, diz
Merege. De acordo com ela, ainda que parte do conhecimento tenha sido transmitido ao longo do tempo de forma oral, as bibliotecas tiveram um papel crucial na formação da cultura ocidental. “Tanto as bibliotecas da Antiguidade, quanto, mais tarde, as da Idade Média e da Moderna foram repositórios de saber e cultura sem os quais boa parte dos conhecimentos acumulados pela humanidade teriam sido perdidos. O Renascimento, por exemplo, só foi possível graças à preservação de textos de filósofos e cientistas clássicos, retomados séculos mais tarde”, ressalta.No Oriente, segundo Merege, não era diferente, e o conhecimento acumulado dos orientais influenciou, inclusive, as grandes navegações, que tomaram impulso na Península Ibérica a partir do século XV. “Durante séculos ela esteve sob o domínio muçulmano, e pôde aproveitar a tecnologia e as instituições – avançadíssimas para a época – que eram mantidas pelo Islã. Em Córdoba e Granada, assim como em Bagdá, havia hospitais, observatórios e bibliotecas, e o número de leitores era muito maior do que no restante da Europa”, afirma. Merege destaca, assim, a importância dos livros e das bibliotecas para as civilizações do Oriente. “Na Índia, nos séculos VIII-V antes de nossa era, existiam universidades que mantinham extensas bibliotecas de obras escritas sobre folhas de palmeira; a China e o Japão também têm livros e bibliotecas milenares. O papel surgiu, inclusive, na China e foi trazido para o Ocidente pelos muçulmanos. E em todos esses países existe uma tradição que mantém e valoriza a cultura escrita, os livros e as bibliotecas”, conclui.
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