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Artigo
O renascimento dos veículos elétricos: trajetória e tendências atuais
Por Edgar Barassa e Flávia L. Consoni
10/11/2015

A agenda ambiental e a pressão para a adoção de práticas mais sustentáveis e com menor impacto ao meio ambiente vêm impondo à indústria automobilística global a necessidade de adoção de novas tecnologias alternativas às tradicionais, que se sustentam no motor a combustão interna (MCI). No centro desse debate, coloca-se como necessidade a redução do uso dos combustíveis fósseis, responsáveis pela emissão de poluentes na atmosfera e consequentes problemas relacionados à saúde pública.

Uma resposta, nesse contexto, tem sido a formulação e implementação de um conjunto de políticas públicas e de instrumentos de regulação que impõem padrões de emissão para os veículos comercializados, além de uma emergente classe de consumidores que optam por adquirir veículos com o apelo “amigável” ao meio ambiente. Esse contexto também justifica o fato de, com maior frequência, um conjunto diversificado de empresas, não somente aquelas vinculadas ao setor automotivo, estarem direcionado esforços em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para a concepção e produção de veículos mais eficientes, menos poluentes e com menos impactos negativos ao meio.

Dentre as possibilidades tecnológicas pelas quais a indústria automobilística pode optar, os veículos elétricos (VE) têm sido uma escolha. O veículo elétrico, aquele cuja propulsão de pelo menos uma de suas rodas ocorre por meio de um motor elétrico (Chan, 2007), pode assumir algumas configurações: movido a bateria, híbridos e sua variável plug-in e movido a células a combustível.

Nos VE a bateria, a propulsão ocorre exclusivamente por meio de um motor elétrico alimentado pela energia vinda de baterias1 que estão instaladas no interior do veículo e são recarregadas a partir da conexão com a rede elétrica. Já nos VE híbridos, prevalecem diferentes tecnologias de propulsão, que combinam a eletricidade e alguma outra fonte energética complementar. Por exemplo, nos VE híbridos com MCI, os combustíveis líquidos (gasolina, etanol e diesel) e gasosos (gás natural) alimentam os veículos. Há também a variável híbrida identificada como plug-in, a qual permite o recarregamento das baterias tanto pelo motor gerador instalado no interior dos veículos quanto pela rede elétrica externa. Nos VE híbridos movidos a células a combustível, prevalecem as células de combustíveis baseadas no insumo hidrogênio para a geração de eletricidade, sendo que a eletricidade gerada é utilizada tanto para a propulsão veicular quanto para ser armazenada no interior do veículo, por meio de baterias ou ultracapacitores.

A considerar que o VE, ao se basear nessas configurações, reduz ou elimina por completo a emissão dos gases de efeito estufa durante o seu uso, fica a questão: afinal, como tem se dado a emergência do VE ao longo do tempo? A resposta é que a tecnologia dos veículos elétricos não é algo “recente”, sendo que sua origem remete à época do nascimento da indústria automobilística, mais especificamente no início do século XX. Essa transição representou uma enorme mudança na época que aos poucos deixava de se apoiar no uso de animais para viabilizar a mobilidade.

Mas o VE não era a única opção tecnológica; eram três as possibilidades de motores para a mobilidade: a vapor; os conversores eletromecânicos de energia (motores elétricos); e os MCI. Esses três tipos de motores resultaram de invenções advindas de experimentos realizados ao longo do século XIX2. O palco da competição entre o tipo de tecnologia dominante deu-se nos Estados Unidos, que tinha um parque industrial instalado bastante avançado em relação aos demais países, além de um expressivo mercado consumidor em potencial no país.

A literatura3 que aborda parte da história da tecnologia automobilística aponta que foram vários os fatores que influenciaram o fechamento tecnológico do MCI como paradigma dominante: a facilidade dos métodos de fabricação dos componentes de um MCI; a autonomia de rodagem frente aos demais sistemas; a disponibilidade de petróleo como matéria-prima para o combustível; a difusão em massa do modelo Ford T, dotado de um MCI. Tais condicionantes transcenderam a esfera técnica e envolveram também um sistema de articulação de atores da indústria automobilística e petrolífera em prol da disseminação do MCI.

Os anos que se seguiram foram fundamentais para a consolidação do MCI e de seus subsistemas. Redes foram formadas e deram suporte a essa tecnologia. O motor a combustão interna experimentou um processo de desenvolvimento contínuo e de expansão de seu mercado, o que, por sua vez, resultou na formação do estado de aprisionamento, ou lock-in, dessa tecnologia (Unruh, 2000).

O questionamento do uso dos MCI só viria a acontecer a partir de 1970, puxado tanto pela crise do petróleo, de 1973, como pelo debate ambiental. O resultado foi um conjunto de políticas e ações adotadas por um grupo restrito de países (Estados Unidos, Japão e França), mas não suficientes para engendrar, à época, os mecanismos necessários para que tivéssemos uma participação expressiva das vendas de VE frente aos veículos tradicionais no século XX. Essa realidade passa a se modificar a partir dos anos 2000, quando alguns países retomam de forma mais agressiva políticas de controle de emissão (ou zero emissão de poluentes). O reflexo começa a ser percebido a partir das vendas dos VE híbridos, com tendência de crescimento consistente ao longo do tempo e, mais recentemente, também das versões de VE a bateria e plug-in.

Gráfico 1 - Evolução global das vendas de veículos elétricos a bateria (VEB), plug-in (VEHP) e híbridos (VEH)

Fonte: Barassa e Consoni (2015), a partir de U. S. Department of Energy (2014), ICCT (2014), IEA (2013), Hybridcars.com (2015), Evobsession (2015) e EDTA (2015).

A configuração dos veículos elétricos híbridos constitui-se como a mais bem sucedida em termos de vendas; trata-se de uma solução de transição para a mobilidade, pois ao passo que depende do MCI para seu funcionamento, por também possuir uma bateria para armazenagem de energia, o nível de emissão é bastante reduzido (entre 30% a 40% menos emissões). Já os veículos que necessariamente dependem da rede elétrica, tais como os VE a bateria e plug-in, passam a ganhar mercado a partir de 2010. Ressalta-se também que as vendas se situam principalmente nos Estados Unidos, Japão e países do continente europeu, os mesmos que empreenderam esforços para estimular o desenvolvimento e o consumo dessa nova opção para a mobilidade.

Grfico 2: Vendas de veículos elétricos a bateria e híbridos plug-in por países em 2013

Fonte: Barassa e Consoni (2015), a partir de Evobsession (2015).

Dados sobre a publicação de patentes, obtidos a partir da Plataforma Questel Orbit, enfatizam essa correlação entre os locais de desenvolvimento da tecnologia dos VE e os mercados mais promissores para o segmento, embasando uma reflexão sobre tendências e indicadores das tecnologias relacionadas aos VE e seus componentes.

Nossos estudos (Barassa, 2015; Barassa & Consoni, 2015) apontam que as tecnologias que compõem um VE passam por um processo expressivo de desenvolvimento, que se reflete no aumento quantitativo das publicações de famílias de patentes de componentes de VE nos últimos 20 anos, acentuando-se principalmente entre 2009 e 2013. Os dados de patentes também mostram uma visível liderança de montadoras tradicionais, principalmente de origem asiática, representadas por Toyota, Hyundai, Honda, Nissan, seguida pelas norte-americanas General Motors e Ford, além da ascensão de novos entrantes no segmento, como as chinesas BYD e Chery, bem como empresas do setor elétrico e eletrônico como Panasonic e Hitachi.

Gráfico 3 - Evolução das publicações de famílias de patentes de tecnologias relacionadas aos VE (1994-2013)

Fonte: Barassa e Consoni (2015)

Nessa nova trajetória tecnológica, vale enfatizar o espaço que se abre para o setor elétrico, ponderando sua função no abastecimento da frota automotiva, assim como dos atores responsáveis pelos eletropostos para abastecimento do VE. Outra evidência seria o domínio dessas tecnologias por países com tradição no segmento automobilístico, tais como Japão, Estados Unidos, Alemanha e França, mas acompanhados pela emergência de novos países entrantes nesse segmento, tais como Coreia do Sul e China.

Transição para um novo paradigma de propulsão? Perspectivas e desafios para os veículos elétricos

A aposta nos veículos “eletrificados” caracteriza-se como uma dentre as escolhas possíveis em prol de uma nova trajetória para uma economia de baixo carbono. As reflexões de Freyssenet (2011) ajudam nessa compreensão, ao sinalizar para três possíveis cenários para a indústria automobilística mundial: da diversidade, onde os esforços em prol do desenvolvimento e comercialização de veículos mais eficientes ocorrem em várias frentes e no qual os MCI, alimentados por combustíveis “mais limpos”, tais como os renováveis, conviveriam com as novas tecnologias de propulsão, baseadas na eletrificação; o cenário da progressão, em que a introdução do VE começaria pelos VE híbridos, para posteriormente avançar para os elétricos a bateria; e o de ruptura, que significa a quebra direta do aprisionamento do MCI para um paradigma dos VE alimentados por células a combustíveis como cenário dominante.

Atualmente, não é possível falar em um cenário mais promissor ou “vencedor”, pois verifica-se que as apostas dos países estão dispersas entre diversidade/progressão/ruptura. Tais escolhas estão diretamente ligadas às competências tecnológicas específicas e demais aspectos regulatórios que cada país, por meio de sua base industrial, apresenta. Como exemplos, destacamos a aposta dos países europeus e japonesa em prol dos veículos elétricos a bateria; os Estados Unidos, com uma ampla gama de modelos híbridos; e o Brasil, com os veículos movidos a biocombustíveis.

Mesmo havendo indefinições frente aos caminhos que a nova trajetória da mobilidade irá percorrer, é inegável observar os avanços e diversos estímulos em curso em prol da P&D, produção e comercialização do VE no período recente. Os incentivos e condicionantes, embora de origem distinta, têm motivações comuns: redução das emissões de gases do efeito estufa, quebra da dependência dos combustíveis fósseis, melhora nos indicadores da saúde pública.

Assim, ainda que os VEs venham se configurando como alternativa promissora, barreiras e desafios questionam a viabilidade dessa opção tecnológica. Considere-se que ainda não há uma rota tecnológica definida que sirva de parâmetro e oriente as empresas no sentido da produção de componentes e veículos. Cada configuração disponível de VE e seus componentes apresenta vantagens e desvantagens em relação aos demais tipos e ainda não é possível afirmar a existência de uma configuração ótima ou de um modelo superior (IEA, 2013).

Os VEs também enfrentam desafios para sua viabilidade comercial, pela aceitação por parte dos consumidores em função das diversas diferenças técnicas em relação ao veículo com MCI, tais como autonomia de rodagem e disponibilidade de fontes de abastecimento (eletropostos e sua difusão). Ademais, existe a problemática dos custos iniciais elevados de produção, decorrente dos elevados preços das baterias que encarecem os VE frente às demais alternativas.

São barreiras sim, mas que estão sendo trabalhadas sistematicamente por meio do desenvolvimento de novas tecnologias – vide a evolução das publicações de patentes para VE, acentuada a partir de 2005. É preciso assinalar que o mesmo grupo de países que dispensaram esforços em prol do VE na década de 1970 (Estados Unidos, Japão e França) acabaram por auferir a vanguarda tecnológica e de mercado do segmento no século XXI. No rol dos maiores patenteadores estão empresas cuja origem do capital é japonês e estadunidense.

A ascensão de novos entrantes no segmento, como as empresas coreanas e chinesas, além do aparecimento de empresas oriundas do setor elétrico e eletrônico, acirram esse campo de disputas pela tecnologia predominante. Esses movimentos sinalizam uma possível reestruturação da indústria automobilística global, com a ascensão de novos atores e que ocupam posição de destaque nesse cenário.

O conjunto das dificuldades e desafios para a viabilidade dos VE reforça o argumento de que o desenvolvimento dessa tecnologia não depende apenas dos esforços das empresas que integram esse setor, mas de um conjunto de organizações que transcendem a esfera corporativa, tais como o Estado, por meio de seu marco regulatório e políticas de promoção às tecnologias emergentes, e as instituições e o conjunto de conhecimentos que suporta esse processo.

Edgar Barassa é mestre em política científica e tecnológica pelo Instituto de Geociências da Unicamp e doutorando na mesma instituição.

Flávia L. Consoni é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências da Unicamp.

Referências bibliográficas

Anderson, J.; Anderson, C.D. Electric and hybrid cars: a history. McFarland & Co., London, UK. 2010.

Barassa, E. “Trajetória tecnológica do veículo elétrico: atores, políticas e esforços tecnológicos no Brasil”. Dissertação (mestrado), Campinas - Curso de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Política Científica e Tecnológica. 2015.

Barassa, E.; Consoni, F. The evolution of electric vehicle in XXI century: patent data as indicators of technological development. Gerpisa. Paris, França, 2015.

Chan, C.C. “The state of the art of electric, hybrid, and fuel cell vehicles”, Proceedings of the IEEE, vol. 95, no. 4, pp. 704-718, 2007.

Coalition, E. “State of the plug-in electric vehicle market: EV market outlook”. Disponível:. Acesso em: 13 fev. 2014.

Cowan, R.; Hultén, S.. “Escaping lock-in: the case of electric vehicle”. Technological Forecasting and Social Change, v. 53, pp. 61-79, 1996.

D.O.E. - U.S. Department of State, s.d..History of electric vehicles”. Disponível em: <http://www1.eere.energy.gov/vehiclesandfuels.... Acesso em 5 junho de 2009.

EDTA, Electric Drive Transportation Association. “Electric drive sales dashboard”. Disponível em: <http://electricdrive.org/index.php?ht=d/sp/i/20952/pid/20952>. Acesso em: 20 fev. 2015.

Evobsession. “Market Research”. Disponível em: <http://evobsession.com/category/research/market-research/>. Acesso em: 10 jan. 2015.

Freyssenet, M. “Three possible scenarios for cleaner automobiles”. Int. J. Automotive Technology and Management, 11 (4), pp. 300-311, 2011.

Hoyer, K. “The history of alternative fuels in transportation: the case of electric and hybrid cars”. Utilities Policy, 16(2), pp.63-71, 2008.

Hybridcars. “Culture and market”. Disponível em: <http://www.hybridcars.com/culture-market/>. Acesso em: 11 jan. 2015.

ICCT - The International Council nn Clean Transportation. “Driving electrification a global comparison of fiscal incentive policy for electric vehicles”. Disponível em: <http://www.theicct.org/sites/default/files/publications/ICCT_EV-fiscal-incentives_20140506.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2014.

IEA. “Global EV outlook: understanding the electric vehicle landscape to 2020”. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2014.

Unruh, G. “Understanding carbon lock-in”. Energy Policy, 28, pp. 817–830, 2000.

1 Exceção para os trólebus, VE de uso rodoviário desprovidos de baterias por ficarem conectados à rede elétrica quando em movimento.

2 Com exceção do motor a vapor, que data do século XVIII, mas que teve sua adaptação no automóvel apenas no século XIX.

3 Ver, a esse respeito, Cowan & Húlten (1996), Hoyer (2008) e Anderson & Anderson (2010).