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Artigo
DSM: a (in)discreta relação entre ciência e política
Por Leandro Siqueira
10/03/2011

Com a publicação da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM III), em 1980, a psiquiatria biológica parecia ter ultrapassado a meta que sempre obcecara os psiquiatras, a de tornar sua disciplina uma verdadeira especialidade médica. O manual sinalizou a legitimação da psiquiatria como um saber científico, enfim dotado de uma classificação diagnóstica fundada sobre pesquisas empíricas e dados estatísticos. A partir de testes com psicofármacos, exames de imageamento cerebral e outras tecnologias computo-informacionais, a psiquiatria biológica passou a traduzir em uma gramática biologicista o funcionamento do mental, que anteriormente dispunha principalmente de fundamentos psicológicos e psicanalíticos para sua compreensão. Desta forma, a psiquiatria emergiu como um saber capaz de regular disfunções nos neurotransmissores cerebrais, terapeuticamente utilizado para reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida dos portadores de transtornos mentais.

Desde então, quase sempre, acontecimentos – como as recentes críticas do psiquiatra Allen Frances à elaboração do DSM 5 – desvelam ser a psiquiatria atravessada por questões não tão científicas, que colocam inclusive em questão a existência de uma clara separação entre ciência e política. Na história da psiquiatria não faltam evidências disso. Particularmente, a elaboração do DSM III é repleta de acontecimentos políticos recobertos por um espesso verniz médico-científico que, com o tempo, começou a desgastar e rachar.

A publicação do DSM III procurou responder a duras críticas vindas de fora e do interior da psiquiatria. Desde os anos 1940, a psiquiatria encontrava-se em um profundo descrédito. Sem oferecer “ cura” para a doença mental, os manicômios superlotados haviam se transformado em “depósitos”, onde casos de tortura e desrespeito aos direitos humanos eram frequentemente denunciados. A partir dos anos 1960, as antipsiquiatrias, além de apontarem o caráter autoritário, segregador e de controle social da psiquiatria, chegaram a colocar em cheque a própria validade científica do conceito de doença mental e mostraram, por meio de experiências alternativas, a possibilidade de tratar fora dos muros do asilo os estigmatizados como loucos.

Internamente, os psiquiatras alinhados a uma vertente mais biológica, atribuíam à psicanálise a responsabilidade pela disciplina ter se distanciado do modelo médico. Manifestavam um perturbador desconforto em relação ao diagnóstico das doenças mentais. Em diversas pesquisas, a confiabilidade e a validade do sistema de classificação das doenças mentais foram apresentadas como sérios entraves para o desenvolvimento da psiquiatria como especialidade médica. A discussão sobre confiança e validade dos diagnósticos serviu ainda de pretexto para que, nos anos 1970, as grandes seguradoras de saúde dos Estados Unidos limitassem a cobertura de procedimentos psiquiátricos devido à falta de clareza e uniformidade na terminologia dos diagnósticos e nos tratamentos.

Diante deste quadro crítico, a American Psychiatric Association (APA) propôs a revisão da segunda edição do DSM, de 19681, que acabou resultando na publicação do DSM III. Não é por acaso que logo na introdução do novo manual, o psiquiatra Robert Spitzer, coordenador do grupo de trabalho de sua elaboração, destacou o aspecto “científico” da obra, que a partir de então se fundava sobre “evidências de pesquisa relevantes para a validade dos vários tipos de diagnóstico”2.

A APA pode contar mais do que com as qualificações científicas de Robert Spitzer, um reconhecido especialista em classificações diagnósticas e apoiador da psiquiatria biológica. Antes mesmo de ser escolhido para comandar os trabalhos do DSM III, o psiquiatra havia mostrado uma preciosa habilidade política para gerenciar a reivindicação de grupos gays de retirar a homossexualidade da lista de psicopatologias. Durante os seis anos de preparação do novo manual, Spitzer soube lidar diplomaticamente com a pressão de outros grupos organizados, dentre eles os psicanalistas, no caso envolvendo a subtração do termo “ neurose” do manual, e as propostas de incluir o racismo e o estresse pós-traumático entre seus transtornos3.


Demandas de minorias

A homossexualidade constava na segunda edição do manual como um “ desvio sexual”. Ativistas e psiquiatras gays exigiram, por meio de regulares protestos durante os congressos anuais da associação psiquiátrica, sua retirada da classificação dos transtornos mentais. A questão da exclusão ou não da homossexualidade no DSM criou tamanha polêmica que teve de ser decidida, em 1974, por um referendo interno da associação, no qual 58% dos membros optaram pela sua retirada. No seu lugar, a terceira edição do manual trouxe uma nova categoria, a “homossexualidade egodistônica”, entendida como o sofrimento psíquico resultante do desconforto do indivíduo quanto à sua orientação sexual que, por sua vez, foi suprimida na revisão do DSM III, de 1987.

Para reforçar o caráter científico do DSM III, anunciado com um manual “ateórico” e de “raciocínio sindrômico”, o grupo de trabalho chefiado por Spitzer decidiu excluir da classificação toda referência à psicanálise que as edições anteriores traziam. Os psicanalistas estadunidenses reagiram à proposta de mudanças e depois de várias reuniões conseguiram manter o termo neurose nas nomenclaturas, mas colocado entre parênteses após a nova terminologia adotada para todas as psicopatologias sem etiologia cientificamente atestada, a partir de então denominadas “transtornos” (do inglês, “ disorders”). Na quarta edição do DSM, de 1990, a palavra “ neurose” foi completamente abolida.

Outro grupo que não obteve sucesso com suas reivindicações foi o movimento negro. Um comitê de psiquiatras negros recomendou a inclusão do racismo entre os transtornos mentais do DSM III e que as minorias raciais participassem das discussões do manual. Spitzer rejeitou as propostas, mas em correspondência, acenou com a possibilidade de o racismo ser citado como um exemplo de “ funcionamento psicológico não-ótimo”, que fragiliza o indivíduo e poderia conduzir à aparição de sintomas. Quando saiu o manual, nenhuma menção ao racismo fora feita.

A associação dos veteranos da guerra do Vietnã conseguiu fazer constar no novo manual um diagnóstico específico para os transtornos relacionados a traumas de guerras. Mesmo antes do projeto do DSM III, campanhas nacionais defendiam o reconhecimento dos transtornos que dificultavam a reinserção dos ex-combatentes na sociedade estadunidense. No DSM I, havia a figura da “reação de estresse”, na qual eram enquadradas as neuroses de guerra. Porém, no DSM II, ela foi suprimida. Psiquiatras e psicólogos defensores da causa dos veteranos se reuniram com Spitzer e a subcomissão dos transtornos reativos, a qual deliberou, em 1978, a inclusão do transtorno de estresse pós-traumático no novo manual.

Polêmicas relacionadas à outra “minoria”, desta vez as mulheres, voltaram a acontecer nas edições posteriores do DSM. Na revisão da terceira edição, foram listados no apêndice como “categorias diagnósticas que necessitam de mais estudos” dois transtornos que desagradaram as feministas: o transtorno de personalidade autodestrutiva, cujo manual apontava ser mais comum em mulheres do que em homens, na proporção de dois para um; e o transtorno disfórico da fase lútea tardia, evidenciado somente em mulheres por estar relacionado ao ciclo menstrual. Por pressão de grupos feministas, o primeiro foi eliminado da quarta edição do DMS, de 1994, mas o segundo recebeu um novo nome: transtorno disfórico pré-menstrual4.

O que interessa a esta análise não é fazer um balanço de quem ganhou ou perdeu com as edições do DSM, mas evidenciar que mesmo a psiquiatria biológica – com seu pressuposto de que o “cérebro é o órgão da mente”, fundada sobre pesquisas e evidências científicas – não está imune ao jogo político que estabelece (1) o que deverá ser tomado e catalogado como transtorno (a homossexualidade? os sintomas do ciclo menstrual?); (2) quem o constrói (psiquiatras, psicólogos, minorias etc.) e (3) a partir de quais fundamentos teóricos (biológicos ou psicanalíticos?). Os exemplos acima citados devem ser analisados não só como resultados científicos, mas dentro de um contexto específico da história da psiquiatria, no qual a linha biológica despontava como a de maior influência no campo psi, e da própria história dos Estados Unidos, em que a articulação de minorias pelo reconhecimento de direitos civis obrigou o Estado a atender demandas que implicaram no reconhecimento de direitos específicos para os negros, mulheres, homossexuais etc.


Farmacologia e psiquiatria

O DSM III marca também o momento que a farmacologia tornou-se um elemento reorganizador da prática e dos saberes psiquiátricos, aproximando assim a psiquiatria da indústria farmacêutica. Não é que a prática de receitar psicofármacos tenha surgido com o manual, ela começou antes, no final dos anos 1950, com a invenção do primeiro antipsicótico. Todavia, foi a partir do DSM III e sua definição dos critérios diagnósticos dos sintomas a serem observados na clínica, que os medicamentos começaram a ser empregados como instrumentos de confirmação do próprio diagnóstico. O psiquiatra Peter Kramer5, da Brown University, denomina “ouvir as drogas” o processo de observar as reações dos pacientes aos psicofármacos, como se fosse uma “dissecação farmacológica” dos transtornos, ou seja, “ deixar que a resposta à droga informe ou mesmo comande nosso sentido de perceber como o comportamento humano pode ser melhor categorizado”. Para o psiquiatra, essa prática transformou a psiquiatria ao fornecer um retorno sobre a exatidão do diagnóstico. Receitar medicamentos tornou-se tão importante para a clínica psiquiátrica que a revisão do DSM III foi vendida juntamente com um guia complementar que trazia referências sobre psicofarmacologia.

As preocupações que Allen Frances afirma ter sobre a relação entre a psiquiatria e as companhias farmacêuticas não são novidades, principalmente para ele que coordenou os trabalhos de elaboração do DSM IV e sua revisão, o DSM IV TR. O estudo “Financial ties between DSM IV panel members and the pharmaceutical industry”, de Lisa Cosgrovea e colegas, publicado na revista Psychotherapy and Psychosomatics, em abril de 20066, revela que dos psiquiatras membros dos grupos de trabalho da elaboração desses manuais, 56% tinham uma ou mais ligações financeiras com a indústria farmacêutica, recebendo por serviços de pesquisa, consultoria ou comunicação. Nos grupos de trabalho sobre transtornos do humor e esquizofrenia, 100% dos psiquiatras participantes recebiam recursos de companhias de medicamentos.

Que as indústrias farmacêuticas financiem pesquisas não causa nenhum espanto. Este é o seu business. O problema está, como aponta o psiquiatra David Healy, no livro The antidepressant era, que a indústria, além de drogas, também produz “visões sobre as doenças”, selecionando possibilidades de elas serem enxergadas7 (p.181). Frances diz se sentir culpado pela explosão dos diagnósticos de transtorno bipolar e de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade em crianças, dois negócios extremamente lucrativos para as farmacêuticas. Mas antes dessas, outras epidemias foram “enxergadas” por psiquiatras a partir de dissecações farmacológicas. Além do caso da depressão com os antidepressivos, refiro-me à síndrome do pânico, após a comercialização nos anos 1980 do ansiolítico Alprazolam (Xanax, nos EUA, e Frontal, no Brasil) e ao transtorno obsessivo compulsivo (TOC), com o antidepressivo clomipramina (Anafranil), na década de 1990. Especialmente no caso do TOC, é incrível como uma neurose rara e praticamente desconhecida da população, aparece nos anos 1990 como o quarto transtorno psiquiátrico mais comum e considerado atualmente pela OMS a 10ª maior causa de incapacitação no mundo, logo após a liberação da venda no mercado estadunidense da clomipramina. Este medicamento foi um fator decisivo para essa “peste” se alastrar8.


Política de subjetividades

Michel Foucault9 mostrou como a “peste”, mais do que uma questão de saúde pública, configurou um problema político no século XVIII. As sociedades disciplinares por ele estudadas valeram-se das práticas de distribuição, classificação, isolamento, vigilância e hierarquização dos indivíduos, desenvolvidas no combate às pestes que assolaram a Europa, para aperfeiçoar uma tecnologia positiva de governo dos homens, depois empregada pelos Estados para gerir a população. Segundo o autor, as disciplinas e o controle da população estão na base dessa nova tecnologia de poder à qual denominou biopolítica. No lugar de excluir e matar, como fazia a soberania para exercer o poder, a biopolítica procura maximizar a vida para governá-la. Outro aspecto político destacado por Foucault nas sociedades disciplinares, que nos interessa abordar, diz respeito à produção de subjetividades assujeitadas, ou seja, o forjamento de indivíduos a partir da submissão de seus corpos a determinadas relações de saber e poder. Nesse sentido, o manicômio e a prisão foram os confinamentos mais explorados por Foucault para mostrar como o indivíduo não passa de um efeito das relações de poder.

No século XXI, as coisas não são idênticas ao que Foucault observara em suas análises. Hoje, o confinamento do manicômio não é mais o espaço por excelência para a produção do indivíduo louco. Além disso, outros atores (fora a psiquiatria e o Estado) como a indústria farmacêutica, minorias e os meios de comunicação participam das relações de poder que produzem indivíduos, ou melhor, neste caso, subjetividades transtornadas. Paul Rabinow10 usa o conceito de biossociabilidade para abordar a produção de identidades na contemporaneidade. Ele aponta para a possibilidade da genética, por meio de práticas médicas, remodelar todo o tecido social, criando identidades definidas a partir de termos biológicos. Entretanto, essa nova sociabilidade baseada na vida já é impulsionada pela psiquiatria biológica. Dela vemos surgir biosubjetividades que se definem a partir de categorias diagnósticas de transtornos mentais e se agrupam em associações de defesa de seus interesses.

Um exemplo dessas associações é a International Obsessive Compulsive Foundation (IOCF), uma associação que congrega portadores de TOC e seus familiares. As estatísticas estimam existir 120 milhões de portadores de TOC em todo o planeta, uma população maior do que a de muitos países. Fundada em 1986, nos Estados Unidos, a IOCF rapidamente se transformou de pequeno grupo de autoajuda em uma organização de âmbito internacional, cuja missão é educar o público e a comunidade profissional sobre o TOC; providenciar assistência a portadores, familiares e amigos; apoiar pesquisas científicas e acompanhar as políticas públicas de saúde, intercedendo em favor dos portadores desse transtorno.

Com objetivos semelhantes, há a Children and Adults with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder (1987); a National Association of Anorexia Nervosa and Associated Disorders (1976) e a Tourette Syndrome Association (1972), entre outras. A exemplo da IOCF, todas nasceram de iniciativas da sociedade civil organizada, inicialmente voltadas para reunir portadores, mas hoje possuem escritórios de “lobby” e “advocacy” para cobrar do Estado políticas públicas, legislações especiais e recursos orçamentários. Elas desempenham um papel político parecido com o que tiveram durante o século XX, com mais força do que hoje, os sindicatos na organização e defesa dos direitos das diversas categorias de trabalhadores.

É interessante observar que o corpo do louco, antes arbitrariamente sequestrado e confinado em instituições, emerge hoje na figura do transtornado construído cientificamente por uma gramática biológica dos neurotransmissores e sistemas cerebrais e recoberto por direitos que o tornam mais um ator político. Neste sentido, as subjetividades transtornadas parecem ser efeito desse tênue limiar em que é impossível se distinguir o que é científico do que é político. Apesar de a psiquiatria afirmar-se como uma ciência, seu caráter de dispositivo político para o governo das populações persiste em se apresentar. Assim, essas subjetividades transtornadas tendem cada vez mais a proliferar e a participar ativamente da movimentação da ciência, de mercados e democracias. Mesmo sendo alvo de mais críticas, o DSM 5 não deverá mudar isso. Pelo contrário, poderá expandi-lo a uma escala planetária.


Leandro Siqueira é doutorando no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-sol), da PUC-SP, e jornalista.


Referências:

1. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: (DSM). 2nd ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 1968.

2. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: (DSM). 3rd ed. Washington, DC: American Psychiatric Association,1980.

3. Kirk, Stuart; Kutchins, Herb. Aimez -vous le DSM? le triomphe de la psychiatrie américaine. Tradução O. R. Gille. Le Plessis-Robinson: Institut Synthélabo, 1998.

4. Shorter, Edward. Uma história da psiquiatria: da era do manincômio à idade do Prozac. Tradução F. Andersen. Lisboa: Climepsi, 2001.

5. Kramer, Peter D. Ouvindo o Prozac: uma abordagem profunda e esclarecedora da “Pílula da Felicidade”. Tradução G. Hirata. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994.

6. Cosgrovea, Lisa; Krimsky, Sheldon; Vijayaraghavana, Manisha e Schneidera, Lisa. “Financial Ties between DSM IV Panel Members and the Pharmaceutical Industry”, Psychotherapy and Psychosomatics, 2006, v.75, pp.154-160.

7. Healy, David. The antidepressant era. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

8. Siqueira, Leandro A. de P. “O (in)divíduo compulsivo: uma genealogia na fronteira entre a disciplina e o controle”. 294 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.

9. Foucault, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). Tradução E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

______. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

10. Rabinow, Paul. “Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à bio-sociabilidade”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 1991,v. 31, pp. 79-93.