O estado de bem-estar social norte-americano teve sua
base amputada. O progressismo, nascido logo após a I Guerra Mundial,
criara a renda mínima, o auxílio à habitação e à alimentação para
famílias carentes e um sistema de proteção social para aposentados e
deficientes. Durante os últimos trinta anos, muitas dessas verbas foram
eliminadas ou substancialmente reduzidas. O auxílio social agora só é
concedido por um prazo de cinco anos; os bônus de alimentação já não
permitem comprar tanto quanto antes; a assistência judiciária foi
decapitada.
Nos últimos tempos, a “habitação popular” – expressão
pela qual se subentende os imóveis administrados pelas autoridades
públicas e os auxílios-moradia – vem passando por uma profunda
reviravolta. Iniciado no governo de Ronald Reagan e concluído sob as
presidências de William Clinton e George W. Bush, este remanejamento da
política pública de auxílio à moradia suscita poucas reações políticas.
Por todo o país, as cidades procedem à demolição de amplos conjuntos de
torres e imóveis habitacionais que antes abrigavam centenas milhares de
famílias pobres. A quase totalidade destes terrenos são vendidos, em
seguida, a incorporadoras privadas que ali constroem moradias
oferecidas a preços de mercado aos norte-americanos das camadas média e
alta (subvencionadas, portanto, pelos contribuintes).
“Cidades de chocolate, subúrbios de baunilha”
Para justificar esta política, invoca-se a necessidade
de limpar os bairros insalubres, onde famílias carentes vivem isoladas
do resto da cidade. Demolindo os conjuntos habitacionais populares,
obriga-se os pobres a mudarem para bairros novos, onde as pessoas
“trabalham e respeitam a lei”. Um imperativo acompanha esse moralismo:
devido à desindustrialização, as cidades norte-americanas perderam uma
grande fonte de renda. À procura de recursos, reabilitam os antigos
bairros pobres para famílias ricas que, teoricamente, trarão dinheiro
para a cidade, em vez de custos. Mas para onde vão os pobres que foram
expulsos?
O programa federal de habitação é executado pelo
Departamento de Habitação e Urbanismo (Department of Housing and Urban
Development, HUD), que os presidentes Reagan, Clinton e Bush tentaram
desmantelar, reduzindo o pessoal, interrompendo a construção de novas
moradias populares e diminuindo o auxílio às pessoas. Durante o século
XX, o desenvolvimento urbano norte-americano seguiu, principalmente, um
esquema de separação clássica: os pobres moravam na cidade intra muros,
isto é, nos bairros vizinhos do centro da cidade, enquanto as classes
média e alta preferiam os subúrbios. Estas trabalhavam e se distraíam
nas cidades graças às redes de transporte implantadas com recursos
públicos. Quase todos estes “suburbanos” são brancos. Vítimas de
discriminação em matéria de auxílio financeiro e empréstimos, os negros
e latinos não podem sair do centro1 . É assim que se explica a expressão “cidades de chocolate, subúrbios de baunilha”.
A teoria do “vidro quebrado”
Nos últimos dez anos, essa situação mudou de modo
espetacular. Como as cidades já não podem viver da indústria, as
prefeituras privilegiam a “economia da informação” e procuram atrair os
“colarinhos brancos”. Os prefeitos de Nova York, Chicago, Baltimore,
Cleveland e São Francisco esboçam uma nova filosofia urbana:
transformar os amplos espaços antes ocupados pelas fábricas em zonas
residenciais dotadas de parques, bares, lofts2
e condomínios, destinadas aos novos ricos. Programa-se, portanto, a
conversão dos cortiços e bairros devastados, onde moravam os negros e
latinos pobres, em bairros aburguesados que acolherão os novos
salvadores, brancos, da cidade.
As primeiras salvas dessa guerra de classes e de raças
são dadas com a cobertura de estratégias de “lei e ordem”. Em todo o
país, as cidades recorreram a decretos “anti-gangue”, a medidas
“anti-vagabundagem” e a toque de recolher. É preciso impedir a “classe
criminosa” – os jovens pertencentes às minorias – de ficar nas
esquinas, nos parques e nos centros comerciais. Em nome da teoria do
“vidro quebrado” – segundo a qual se reduz a grande violência criminal
reprimindo a pequena delinqüência e os comportamentos incivis, que
seriam os sinais anunciadores da desordem social, os prefeitos de Nova
York e Chicago, Rudolph Giuliani e Richard M. Daley, fecharam abrigos
para os sem-teto e albergues para os pobres, eliminaram lojas de vídeo
para “adultos” e cinemas pornográficos, reprimiram moradores de rua e
prostitutas e pediram penas severas contra vândalos e ladrões. Em todo
o país, as autoridades municipais aplaudiram a “filosofia de Bratton”,
nome do ex-chefe de polícia de Nova York, autor desta política, que
oferece hoje serviços de consultoria a seus colegas da África do Sul,
da Venezuela e da Europa3.
Trabalhar para pagar aluguel
Algumas famílias negras e latinas pertencem à nova
burguesia que se instala nos antigos conjuntos populares reabilitados,
mas ela é majoritariamente composta por brancos, mais ricos e que
apresentam melhores garantias financeiras. Pobres ou não, os negros e
latinos têm quase sempre de continuar morando onde a pobreza é grande e
os serviços municipais medíocres. Os negros norte-americanos vivem em
bairros onde a renda média representa de 50 a 55% da renda dos brancos.
A diferença até se aprofundou a partir de 1990. A situação nada tem de
melhor no caso dos latinos4 .
As minorias que conseguem morar num bairro “bom” nem
por isso escapam dos problemas de seus colegas mais pobres no que se
refere à paridade da alocação dos recursos públicos – o aluno negro ou
latino médio, por exemplo, freqüenta uma escola onde mais de 65% dos
alunos são pobres, enquanto essa taxa é de apenas 31% quando se trata
de um aluno branco.
Esta renovação urbana implica uma escassez de
habitações baratas para alugar. Afeta as famílias de trabalhadores de
todas as etnias. Segundo um relatório do HUD, “uma família contando com
um trabalhador em tempo integral que ganhe um salário mínimo, não pode
se permitir alugar um apartamento de dois quartos pelo preço imposto em
qualquer lugar dos Estados Unidos5
”. Quase 20% das famílias destinam a metade de sua renda mensal ao
aluguel, quando essa despesa não deveria representar mais de um terço.
O problema decorre, em parte, do setor imobiliário privado.
Os bairros do “primeiro círculo”
Na década de 90, por exemplo, 1,4 milhão de
apartamentos em pequenos prédios – que abrigavam de duas a quatro
famílias, tradicionalmente operárias – foram destruídos ou reabilitados
para famílias mais ricas. Muitas famílias operárias figuram nas listas
de espera, de dois anos, por um auxílio-moradia – mais de 40 mil em
Chicago e em Nova York. O Estado também contribui para reduzir a oferta
de moradias baratas para alugar. Não somente procede à demolição de
milhares de habitações, como destina os recursos públicos à
“reabilitação” de moradias. Todo mês, por exemplo, 2 mil apartamentos
deste tipo são “postos no mercado” pelas incorporadoras, com um aluguel
acrescido de 45%, em média.
Para onde vão aqueles que o “aburguesamento” e as
mudanças econômicas expulsam de seus lares? Alguns vão para outros
bairros do centro, onde reinam a pobreza e a marginalidade, e onde as
moradias baratas para alugar estão acabando. Mas outros vão para os
subúrbios, que antes abrigavam brancos e algumas minorias
privilegiadas. Agora, vêm sendo povoados por minorias operárias e
pobres: a presença dos negros ali aumentou em quase 40% e a dos
latinos, em 72% desde 19906 .
Mas os negros e os latinos que deixam as cidades não
vão para os bairros nobres dos subúrbios. Instalam-se nos bairros do
“primeiro círculo”, amplas áreas que abrigam lares pobres e operários.
Os brancos endinheirados dos subúrbios ficam entre eles, enquanto os
negros e latinos vivem juntos, e ao lado dos novos imigrantes
asiáticos. Isolados, num local em que falta o dinheiro e a moradia está
caindo aos pedaços, não têm acesso aos bairros onde as escolas, a
polícia e os serviços sociais recebem maior apoio financeiro.
Administrações incompetentes e corruptasBrancos e ricos no centro, minorias e pobres na
periferia! Uma das principais causas deste fenômeno é a demolição das
antigas concentrações de habitações populares. No começo da década de
90, os dirigentes do HUD obrigaram os organismos locais a constatar o
estado de “séria degradação” em que se encontravam as moradias baratas
que eles administravam. Explicou-se que a habitação popular era em
parte responsável pela miséria das minorias norte-americanas, que as
famílias que vivem nas habitações populares tinham perdido a ética do
trabalho e se acomodado numa cultura de crime e dependência.
Washington tinha motivos para se preocupar. Em 1990,
sete das zonas mais pobres do país eram conjuntos habitacionais
populares, três dos quais na cidade de Chicago. Freqüentemente, os
bairros onde ficam as habitações populares, degradados, tornaram-se o
centro de atividades de bandos de delinqüentes. Quase sempre eram
habitados por negros. Mas foi um erro responsabilizá-los pela
segregação, pela criminalidade e pela pobreza reinantes. Na década de
80, o presidente Reagan reduziu em 87% o orçamento para a habitação
popular, o que não permitiu continuar com a manutenção. A presença
policial era insignificante (em Chicago, o chefe de polícia declarou
que os conjuntos populares eram muito perigosos para que a polícia se
aventurasse a ir lá) e as administrações locais responsáveis pela
habitação popular, incompetentes e corruptas.
Um tipo inédito de pobreza urbana
Em 1992, uma lei (“Hope VI”) obrigou todos os serviços
locais responsáveis pela habitação popular a determinar se ficava mais
barato demolir os prédios e dar auxílio-moradia às famílias para
tentarem conseguir pelo mercado privado, ou restaurar e cuidar dos
prédios. A lei era suficientemente vaga para permitir que as
incorporadoras e aos responsáveis pela habitação privada procedessem à
destruição rápida das habitações populares sem se preocuparem demais
com a segurança ou o bem-estar das famílias pobres que ali viviam. A
legislação não especificava que medidas deveriam ser tomadas para que
as famílias fossem realojadas rapidamente. Anunciava apenas que era
preciso derrubar os prédios e incentivar as pessoas a “suprirem suas
necessidades”. Ou seja, os serviços de habitação popular, que já não
eram capazes de consertar um banheiro ou impedir os ratos de infestar
os prédios, deveriam, a partir de então, desalojar fisicamente os
pobres do gueto e fazer deles, na mesma hora, cidadãos independentes e
responsáveis.
Os 4,5 bilhões de dólares de verbas federais investidos
até aqui serviram para demolir mais de 50 mil habitações populares. O
Estado admite que o programa foi mais eficaz para derrubar prédios do
que para construir novos, para realojar os pobres. Em Chicago, 80% das
famílias que desocupam as habitações populares vão para zonas
deserdadas, habitadas por minorias vítimas de segregação residencial,
para o centro das cidades e para a periferia delas7 . De 10 a 12% ficam sem abrigo8
. Esta política contribui para a formação de um tipo inédito de pobreza
urbana. Guetos verticais substituíram os guetos horizontais de
antigamente. Quanto às famílias pobres que moravam dentro das cidades,
foram empurradas para a periferia.
(Trad.: Maria Elisabeth de Almeida)
1 - Ler, de Serge Halimi, “L’université de Chicago, un
petit coin de paradis bien protégé” e, de Douglas Massey, “Regards sur
l’apartheid américain”, Le Monde diplomatique, abril de 1994 e fevereiro de 1995, respectivamente.
2 - N.T.: Antigos galpões de fábricas transformados em moradias.
3 - Cf. Loïc Wacquant, “Ce vent punitif qui vient d’Amérique” e “Sur quelques contes sécuritaires venus d’Amérique”, Le Monde diplomatique,
abril de 1999 e maio de 2002, respectivamente. A citada “filosofia de
Bratton” também é conhecida, na mídia, por “tolerância zero”.
4 - Ler “Separate and Unequal: Neighborhood Gap for Blacks and
Hispanics in Metropolitan Amarica,” publicado pelo Lewis Mumford Center
for Comparative Urban and Regional Research, Universidade de Albany,
2002.
5 - “Who Needs Affordable Housing?”, Housing and Urban Development, Washington, D.C., 2000.
6 - Ler, de John R. Logan, The New Ethnic Enclaves in America’s Suburbs, ed. Lewis Mumford Center for Comparative and Urban Regional Research, 2002.
7 - Ler, de Paul Fisher, Section 8 and the Public Housing Revolution: Where Will Families Go? , 1999.
8 - Ler, de Sudhir Alladi Venkatesh, Robert Taylor Relocation Study, 2001. Texto publicado originalmente em http://diplo.uol.com.br/2003-11,a794
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