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Reportagem
Entre o clássico e o contemporâneo: as teorias seculares e as crises globais
Por Cristiane Paião
10/07/2010

Em 2008 o mundo viveu uma grave crise econômica causada, entre outros fatores, pela progressiva desregulamentação dos mercados financeiros pela qual muitos países vinham passando. Clímax de uma superexpansão do mercado imobiliário americano que ocorreu nos últimos 60 anos, a crise trouxe consigo uma espécie de efeito dominó de alto calibre que ainda surte efeitos nas mentalidades do mundo contemporâneo. Na medida em que grandes instituições financeiras do mundo todo quebraram, e trouxeram consigo graves consequências, não apenas para a economia, mas também para o bem-estar social dos indivíduos, o papel do Estado como regulador dos mercados financeiros entrou novamente para a agenda de discussões e passou, assim, a ser analisado sob uma nova ótica: se antes já não se falava mais na intervenção do Estado na economia, esta agora passou a ser uma questão fundamental.

Toda crise é um período rico de análise, de revisão de pensamentos e práticas anteriores, uma espécie de pontapé inicial para que se possa analisar o passado, observar o presente, e projetar o futuro, e é nesse sentido que as ideias de clássicos da teoria econômica, como Adam Smith, Karl Marx e John Keynes, continuam importantes para se pensar a economia atual. Ao apresentar teorias que buscavam interpretar o mundo econômico de seu tempo, esses três grandes pensadores deram origem a aprofundamentos diversos que sustentam até hoje as ideias de economistas do mundo todo e, assim, firmaram conceitos e análises que serão sempre úteis para o entendimento da dinâmica da economia mundial.

De acordo com Maria de Lourdes Mollo, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisa Econômica e Social (Cepes), da Universidade de Brasília (UnB), “entender tais teorias e confrontá-las permite perceber por que os economistas divergem sobre várias questões ainda hoje. O mundo econômico em que vivemos evoluiu, é diferente do vivido por eles, mas suas teorias inspiraram e continuam inspirando os economistas que analisam o mundo atual, teorias essas que também evoluíram, mas que preservam fundamentos importantes dos escritos deles”.

Com Adam Smith (1723-1790), surge a economia como ramo do conhecimento, e a proposição de uma nova política econômica, o liberalismo. Seu principal livro, A riqueza das nações, foi lançado em 1776, mesmo ano da Guerra de Independência dos Estados Unidos, e alguns anos antes da Revolução Francesa, num contexto de crescente contestação do Estado absolutista, cenário em que as condições necessárias para a implantação de uma revolução burguesa, em que haveria a destruição do domínio político da aristocracia, já estavam instauradas, permitindo, assim, que suas ideias tivessem grande penetração. “Antes de Smith, a economia não era vista como um campo autônomo do conhecimento, assim como as questões econômicas não eram vistas como regidas por leis próprias. É com Smith, Hume, e Laqueneur que a economia alcança o status de ramo autônomo do conhecimento em que as leis econômicas teriam sua validade independentemente da filosofia e da política”, explica José Luís da Costa Oreiro, também da UnB e integrante da Associação Keynesiana Brasileira.

O liberalismo de Smith trouxe a ideia de que apenas a “liberdade” seria capaz de trazer bem-estar para a sociedade. De acordo com esse economista, os indivíduos deveriam ser “livres” para fazer o que bem entendessem, todas as amarras e entraves ao funcionamento do mercado deveriam ser removidos, e os monopólios e a intervenção do Estado, ditando impostos e regras para a produção, por exemplo, não deveriam mais ser admitidos.

“Em Smith está a ideia da importância da divisão e da especialização do trabalho como fator fundamental para o aumento da produtividade e da produção. Esse economista escocês defendeu também a ideia da existência de uma 'mão invisível' do mercado, segundo a qual a busca do interesse privado (leia-se lucros) é a base do sistema capitalista, e sua soma (dos interesses privados) resultaria em um bem-estar coletivo, em termos de produção de bens para a coletividade”, explica Luiz Fernando de Paula, professor de economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente da Associação Keynesiana Brasileira.

Da mesma forma, Karl Marx (1818-1883) também se destaca de seus contemporâneos, ao fundar uma nova forma do pensamento e ao introduzir conceitos que influenciariam pensadores das mais diversas áreas do conhecimento. Autor de importantes obras, entre elas O capital e Manifesto comunista (este em co-autoria com Engels), suas ideias têm como pano de fundo o contexto econômico da Revolução Industrial, e trazem os preceitos de uma distribuição de renda mais justa e equilibrada para a sociedade. Oreiro explica que há, nesse momento, um forte êxodo rural. “Os camponeses perdem suas terras e se vêem forçados a migrar para as cidades, onde vão encontrar condições de vida e trabalho muito precárias. Naquele momento, século XIX, a semana de trabalho era de sete dias por semana, 12 horas por dia, e era absolutamente normal crianças trabalharem nas fábricas. Não havia férias, não havia folga, não havia legislação de salário mínimo, ou seja, a condição da classe trabalhadora era muito precária. As ideias de Marx surgiram nesse contexto, como uma espécie de resposta da sociedade contra a miséria do proletariado”, diz.

“Marx e Keynes, de modos diferentes, criticavam a visão liberal de Smith. Marx via a questão sob outro prisma: a dinâmica do sistema capitalista está baseada na exploração de mão-de-obra, que se torna assalariada, daí o caráter de se tornar uma mercadoria, um trabalho abstrato”, explica Luiz Fenando de Paula. Segundo o pesquisador, duas questões são importantes e permanentes na análise de Marx: “primeiro, o capitalista não produz mercadorias para obter mais mercadorias e sim para obter mais capital-dinheiro ao final do processo produtivo. Por isso, o que importa é o comando do capital-dinheiro; segundo, é possível haver um processo no qual o capital se valoriza (capital fictício) puramente na esfera financeira, o que pode resultar a longo prazo em crises”.

Segundo Oreiro, a contribuição de Keynes se dá na medida em que ele coloca, em termos do espectro político, o centro do capitalismo entre duas filosofias políticas extremistas: “de um lado, o liberalismo clássico smithiano, em que o Estado não deve intervir em nada; do outro, o socialismo real, que prega a destruição do capitalismo, e o fim da sociedade de classes. O keynesianismo coloca, assim, um meio termo entre esses dois extremos, dizendo que sim, a economia de mercado é boa, tem uma série de qualidades; no entanto, para que possamos preservá-la, é necessário reformas, e entre essas reformas, é necessário uma maior intervenção do Estado para melhorar o funcionamento do sistema de mercado”, ressalta.

Assim como Smith e Marx, as ideias de John Maynard Keynes (1883-1946) também se deram em um contexto de crise. Keynes nasceu no mesmo ano em que Marx morreu. Entretanto, ao contrário de Marx, Keynes era um reformador do capitalismo. Para ele, o capitalismo era o melhor sistema que a humanidade já havia pensado, compatível com a liberdade individual, mas que precisava de reformas para continuar existindo. “Keynes atingiu sua grande maturidade intelectual durante a década de 1930, a época da grande depressão de 1929, a maior crise da história do capitalismo. De 1929 a 1933, o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos caiu 50%, e números similares foram alcançados em Alemanha e Inglaterra; a taxa desemprego subiu a 25% da força de trabalho nesses países. Foram anos em que a democracia liberal quase foi posta em xeque pelos governos autoritários da Alemanha e da Itália, ou seja, foi o momento do surgimento das filosofias totalitárias do nazismo e do fascismo”, explica Oreiro.

De acordo com o economista, “foram anos muito difíceis, e Keynes vai argumentar, a nível teórico, que o capitalismo tem falhas, não consegue produzir um Estado permanente de pleno emprego da força de trabalho, e não consegue fazer uma distribuição equitativa de renda. Para lidar com esses dois problemas, Keynes fala que é necessário uma intervenção maior do Estado na economia. Mas essa intervenção não deveria ser vista como algo que reduz a liberdade dos indivíduos. Pelo contrário, como algo que garante a continuidade da liberdade dos indivíduos, na medida em que impede o surgimento de regimes totalitários, seja de direita, como o nazi-fascismo, seja de esquerda, como o socialismo real”.

Que tais teóricos são de grande valia para se pensar o funcionamento da economia, não há dúvidas. Mas seria possível explicar a crise econômica mundial que ocorreu em 2008 – e que ainda produz impactos e receios de que a situação volte a piorar – a partir das ideias desses três grandes economistas (Smith, Marx, Keynes)? Se sim, quais seriam os principais conceitos para explicá-la?

De acordo com de Paula, da Associação Keynesiana Brasileira, a teoria econômica convencional de Smith, baseada em modelos de equilíbrio geral e na visão do livre mercado, não é capaz de explicar a economia atual, mas uma teoria heterodoxa, tendo por base Marx, Keynes, Schumpeter (outro grande economista do século XX), entre outros, é muito mais capaz de entender a dinâmica das economias capitalistas, inclusive no que se refere ao papel do Estado na economia.

Para Mollo, da UnB, embora não seja possível utilizar as concepções de Smith para explicar uma crise generalizada como a que vivemos, Marx e Keynes fornecem várias ideias importantes para entender a crise atual e inspiraram outros economistas a também fazê-lo, na medida em que analisaram a instabilidade e a crise como algo inerente ao funcionamento do capitalismo. “Entender essa inerência é importante ao enfrentar a crise e suas consequências”, destaca. De acordo com a economista, a crise atual pode ser explicada do ponto de vista de Marx por meio do conceito de capital fictício. “O objetivo do sistema capitalista é o lucro, e o lucro máximo, e o crédito tende a se desenvolver nele para potencializar a obtenção de lucro, ampliando os limites da acumulação. Com recursos de terceiros, é possível antecipar a compra de meios de produção e força de trabalho, sem esperar o acúmulo de lucros para fazê-lo com recursos próprios. Isso amplia o ritmo e a escala da produção e aumenta a mais-valia gerada, de onde saem os lucros”, explica.

Marx dizia que o crédito permite e estimula também o crescimento do capital fictício, o qual, sem adquirir meios de produção e força de trabalho, valoriza-se por meio de venda a preços maiores do que os de compra, como títulos e ações cuja valorização não se encontra relacionada com a produção de valores em termos de trabalho realizado, por exemplo. “Na crise atual, o que vimos foi uma liberalização dos mercados de capitais que ligou os mercados de crédito da maior parte dos países. A crise aparece porque enquanto o capital fictício se valorizava, menos recursos fluíam para a produção sob a forma de investimentos em meios de produção e força de trabalho. A produção crescia menos do que as finanças, até que escassearam as rendas provenientes da produção (lucros e salários altos) para comprarem as ações e títulos, o que desencadeou a crise, na medida em que desvalorizou alguns títulos e diminuiu a valorização de outros, estimulando seus proprietários a vendê-los e fazendo cair ainda mais os preços dos títulos e ações na chamada espiral deflacionária que caracteriza a crise”, assinala Mollo.

Da mesma forma, para de Paula, fica claro que na leitura de Marx e Keynes, o capitalismo é dinâmico mas instável, sujeito a crises, que podem se dar por forças puramente financeiras, geradas por um mercado livre e desregulamentado. “É exatamente o que vimos na crise financeira mundial de 2008. De Keynes, em particular, fica a necessidade de uma maior regulamentação do sistema financeiro e também a necessidade de uma ação estabilizadora e profunda do Estado para evitar o aprofundamento da crise econômica. A crise de 2007-2008 foi tão ou mais aguda do que a crise de 1929. O que mudou foi a ação do Estado”, conclui de Paula. “Eu não tenho dúvidas de que o papel do Estado nos próximos 20 anos vai ser muito maior do que foi nos últimos 20, essa é a tendência. A economia vive de ciclos, nós encerramos um ciclo liberal, e vamos ter um ciclo que será muito mais dominado pelas ideias keynesianas daqui para a frente”, confirma Oreiro.

“Temos um ciclo político iniciado em 1980, cujo marco é a eleição de Ronald Reegan nos Estados Unidos e de Margaret Tatcher como primeira ministra do Reino Unido. Nesse sentido, você tem um predomínio crescente das ideias liberais, de que o Estado não deve intervir na economia, particularmente nos mercados financeiros. Então, todo o arcabouço institucional que foi criado, à esteira das ideias keynesianas nos anos 1930, foi sendo progressivamente desmontado nos anos 1980 e 1990. Essa desmontagem do arcabouço de desregulamentação financeira foi aumentando a fragilidade das economias capitalistas. Se por um lado houve períodos de prosperidade (e, evidentemente, houve), o fato é que o número de crises e a virulência das crises foi aumentando”, relata.

Mollo explica que para os keynesianos, a especulação aumentou com os empréstimos e as inovações financeiras cada vez mais arriscadas na economia liberalizada, justamente por falta de regulamentação estatal, dada a dominação neoliberal. “Quando os bancos deixaram de refinanciar as operações, a crise se instalou. Isso não significa que o Estado se reduziu ou desapareceu, porque a própria liberalização dos mercados contou com o aval e o estímulo dos Estados, e eles próprios venderam títulos das dívidas públicas, ampliando, assim, o capital fictício. O que se reduziu foi o papel fiscalizador, regulamentador e interventor do Estado, com o domínio do pensamento neoliberal, que acha que os mercados são os melhores reguladores econômicos”, explica.

Para os economistas, Smith, Marx e Keynes continuam ditando as grandes tendências contemporâneas em termos de pensamento econômico e político no Ocidente e, no cenário de perspectivas e especulações para o período pós-crise, sempre com o receio de que uma nova crise se instaure, suas teorias ainda são de grande valia para se pensar o futuro.

“Se como os asiáticos dizem 'crise é oportunidade', acho que é o momento do mundo pensar quais instituições devem ser adotadas para um novo período de prosperidade com inclusão social. Esse é o grande desafio dos tempos atuais”, projeta de Paula. “Se é verdade que a queda do Muro de Berlim marcou o fim, ainda que temporário, das ideias socialistas, 2008 marcou o fim do liberalismo, pelo menos na nossa geração. Eu diria que o consenso, não necessariamente explícito, que existe hoje no Ocidente é de reformas do sistema, principalmente depois da crise. Houve, de 1980 a 2008, um predomínio de ideias liberais, principalmente depois da queda do Muro de Berlim, mas depois da crise de 2008, o consenso é reformista keynesiano, ou seja, é a ideia de que sim, as economias de mercado falham; sim, é necessário reformas; sim, é necessário intervenção do Estado. Então, eu acho que o que temos são longos ciclos de alternância entre essas três grandes teorias, esses três grandes marcos filosóficos em termos de economia: liberalismo, socialismo e keynesianismo. Minha aposta é a de que os próximos 20 anos serão keynesianos, no sentido de que é preciso reformas do sistema e intervenção do Estado, e em que você vai ter as posições políticas convergindo muito mais para o centro do espectro político”, aponta Oreiro.

“Não sou muito otimista com a situação atual. Acho que a crise não acabou”, pondera Mollo. “Uma vez desencadeada a crise financeira, ela se transmite à produção, porque os recursos perdidos na bolsa e no crédito não pago funcionam no sentido de reduzir a demanda de uma maneira geral, e isso gera desemprego em massa, queda ainda maior da renda, afetando várias etapas e processos de produção. Essa é a crise real, mais importante do que a crise financeira inicial, porque pune quem dos ganhos financeiros não se beneficiou e os cidadãos comuns, que irão sofrer com o desemprego, queda de salários, redução de previdência e de conquistas sociais anteriores. Apesar de a crise se relacionar com o desenvolvimento do neoliberalismo, a posição neoliberal ainda é dominante e isso tende a dificultar a situação, porque as soluções aceitas implicam ainda pequeno papel interventor do Estado e pequena crença na demanda como forma de estimular a produção. A solução de mero retorno ao papel regulamentador do Estado esbarrará nos mesmos problemas que levaram ao neoliberalismo, ou seja, à pressão pela liberalização para garantir crescimento dos lucros. Portanto, não vejo solução maior a curto ou a médio prazo. É preciso lutar por modificações maiores e transformações mais profundas nas nossas sociedades”, conclui.