Os debates acadêmicos e científicos sobre dor têm se tornado mais comuns nos últimos anos, em especial nas áreas de medicina, farmácia bioquímica, enfermagem, psicanálise e psicologia. Apesar disso, em todas elas a definição de dor não é algo simples, porque é entendida tanto como algo orgânico ou físico, quanto como emocional e subjetivo. Neste caso, também associada à idéia de sofrimento.
Em seu sentido orgânico, concorda-se que dor é uma sensação desagradável, uma reação que cada indivíduo apreende desde a infância, ou seja, algo que se incorpora a partir de acontecimentos dolorosos. A parte física da dor resulta de estimulações nervosas, tem variações de intensidade e, muitas vezes, é relacionada a um processo de danificação dos tecidos do corpo. No entanto, estresse, depressão ou ansiedade podem ser somatizados no corpo, ou seja motivos psicológicos podem manifestar dor orgânica com idêntico sofrimento.
Apesar da compreensão atual, em Histoire de la douleur, a historiadora da ciência Roselyne Rey afirma que na Grécia Antiga a dor era entendida como um ser que se alimentava de uma vítima. Rey procura demonstrar, em seu livro, que fazer uma história da dor faz emergir novos objetos de pesquisa histórica, assim como novas categorias de análise e novos sistemas de representação. Na opinião dela, a dor é uma construção social e cultural, que não tem o mesmo significado em todas as épocas, ou em todas as civilizações, e até mesmo no interior da cultura ocidental há variações. Ela afirma ainda que as modificações do sentido da dor importam menos do que as conseqüências dessa transformação sobre a experiência individual da dor, que modificam as percepções que os sujeitos têm.
A médica anestesiologista da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Claudia Regina Fernandes, também afirma que o conceito de dor e sua percepção, assim como as formas de aliviá-la, variaram na história, em diferentes épocas e lugares. Segundo Fernandes, na cultura ocidental o conceito de dor pode ter surgido como algo advindo de um Deus justo relacionado ao cristianismo ou ter raízes mais antigas. Ela explica que a palavra poiné, do grego antigo, tinha dois significados: pagar e punir e é desta palavra que deriva o termo pain do inglês, que tem os significados de dor e punição. Também o termo pena, em português, deriva do latim poena, e tem o mesmo duplo sentido.
A historiadora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conta que o historiador George Duby tratou dessa questão, afirmando que até o século XII não se deu atenção à dor no Ocidente medieval, apesar de sua presença cotidiana. “Quando figurava, o sofrimento era visto como castigo ou associado aos considerados fracos, como as mulheres, as crianças, os velhos e os doentes. Com a desclericalização e a vulgarização da cultura e o crescimento da religiosidade cristocêntrica, a dor, segundo Duby, passou a ser progressivamente percebida”, afirma Silva. Ela faz tal afirmação para discutir que em textos hagiográficos (estudos sobre a biografia de santos) escritos pelo clérigo Gonzalo de Berceo, na primeira metade do século XIII, apresenta-se uma nova compreensão do sofrimento, não mais considerado como fraqueza ou castigo, mas como uma dádiva dada aos mais fracos visando a sua salvação eterna. Essa nova compreensão pode ser explicada por múltiplas razões, incluindo as apontadas por Duby. Mas, também, dentre outros fatores, pela retomada dos textos médicos antigos e a tradução e entrada, no Ocidente, de textos de medicina muçulmanos ou pela valorização do corpo, dentre outros fatores.
Intensidade e dimensão da dor
Apesar das variações históricas, sociais ou culturais da idéia de dor, desde de meados da década de 1970 tem se buscado formas de medir e definir dor, para que seja possível lidar com ela no cotidiano dos hospitais. De acordo com a médica Neusa Júlia Pansardi Pavani, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), constituiu em 1976, uma Subcomissão de Taxonomia da Dor, formada por vários profissionais da área de saúde. A partir de então, a dor passou a ser definida pela IASP como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada com lesão tecidual real ou potencial ou descrita em termos de tal lesão”. Pavani explica que estabeleceu-se definitivamente a existência de estímulo gerador de dor (estímulo aferente, sensitivo ou nociceptivo), em uma ou mais parte do corpo, associado com lesão tecidual real ou potencial, sempre desagradável, ruim, aversivo, negativo, que traz sofrimento, portanto com caráter emocional e com conseqüente reação ou resposta à dor (comportamento reacional).
Esta conotação na opinião de Pavani faz da dor uma experiência subjetiva e individualizada, sem que se possa estabelecer uma relação causal direta entre lesão e reação. A percepção da dor ao nível dos mecanismos cerebrais frente a um mesmo estímulo sensitivo produz, de maneira diferenciada, manifestações individualizadas de maior ou menor sofrimento. “Motivos psicológicos, por exemplo, são
capazes de somatizar-se e produzir dor com idêntico sofrimento àquele produzido por outra causa orgânica”. Ainda segundo Pavani, a intensidade da dor e a expressão de sofrimento variam de indivíduo para indivíduo, pois devem ser incluídos numerosos fatores individuais e ambientais, como aspectos sociais, culturais, religiosos, filosóficos, de experiências pregressas e do estado mental de atenção/distração de cada um.
A consideração da dor como um quinto sinal vital que pode ser medido, além de outros sinais como temperatura, pressão arterial, pulso e respiração, tem se relacionado ao combate da dor nos hospitais e à humanização dos tratamentos médicos. Na opinião do médico Jaime Olavo Marquez, ao estabelecer o conceito de quinto sinal vital, a dor passa a ser tratada como uma emergência médica, e as pessoas que recorrem aos hospitais passam a sofrer menos com a dor.
Fátima Faleiros, da Faculdade de Enfermagem da USP (campus de Ribeirão Preto), afirma que a despeito das dificuldades de se mensurar a dor, isso é importante no ambiente clínico pois fornece a medida sobre a qual basear um tratamento ou conduta terapêutica. Faleiros explica que vários métodos têm sido utilizados para mensurar a sensação ou percepção da dor. Alguns métodos consideram-na como única e unidimensional, ou seja, que varia apenas de intensidade, e outros, como uma experiência muldimensional, isto é, que também tem em sua composição fatores afetivos ou emocionais.
Segundo Faleiros, os instrumentos unidimensionais usados para quantificar a intensidade da dor são escalas de categoria numérica/verbal ou analógica/visual, a partir das quais os pacientes relatam e atribuem valor à dor que sentem. No caso analógico visual, por exemplo, o paciente marca numa folha de papel um ponto que represente sua dor, sendo que do lado esquerdo da folha a dor é ausente e do lado direito do papel a dor é extrema. No verso da folha, há uma escala variando de 0 a 100. O médico saberá, dependendo de onde o paciente marcar o ponto, se a dor é leve, moderada ou intensa. De acordo com uma tabela da Organização Mundial de Saúde (OMS), a dor moderada equivale aos graus de 04 a 07, na escala numérica ou escala visual analógica; e a dor intensa/muito intensa, aos graus de 08 a 10 dessas mesmas escalas. Esse é considerado um instrumento para obter informações de forma rápida e não invasiva sobre a dor.
Já os instrumentos muldimensionais avaliam diferentes dimensões da dor a partir de indicadores de respostas e suas interações. Fátima Faleiros esclarece que as principais dimensões avaliadas são a sensorial, a afetiva e avaliativa. As escalas multidimensionais incluem indicadores fisiológicos, comportamentais, contextuais e também auto-registros por parte do paciente. Exemplos desses instrumentos são a escala de descritores verbais diferenciais e o Questionário McGill.
De acordo com a Revista Brasileira de Cancerologia o Questionário é um inventário composto por 78 palavras que descrevem a dor do paciente, o qual deve escolher quais se aplicam melhor a sua sensação. As palavras estão organizadas em 4 grupos e 20 subgrupos. Os grupos referem-se aos seguintes componentes da dor: sensorial-discriminativo, afetivo-motivacional e avaliativo. A qualidade sensorial da dor é aquela referente às propriedades mecânicas, térmicas e espaciais da sensibilidade. A dimensão afetiva compreende a tensão, o medo e os aspectos neurovegetativos. Já os termos da classe avaliativa permitem fazer avaliação global da experiência. Cada subgrupo é composto por um grupo de palavras qualitativamente similares, mas com nuances que as tornam diferentes em termos de magnitude. Assim, para cada descritor corresponde um número que indica a sua intensidade. A partir do questionário de McGill, pode-se chegar ao número de descritores escolhidos e ao índice de dor. O número de descritores escolhidos corresponde às palavras que o doente selecionou para explicar a sua dor.
O Hospital Universitário da USP realizou, em 2005, um estudo com 95 pacientes visando a avaliação da sensação de dor em pacientes adultos internados após procedimento cirúrgico. O fato de dois terços deles apresentarem alguma intensidade de dor em pós-operatório imediato levou o hospital a implantar o quinto parâmetro de sinal vital como norma na instituição. Segundo o Ministério da Saúde, toda instituição deve registrar e medir a intensidade da dor como o quinto fator no gráfico de sinais vitais através de escalas e incluir na folha de registro. O estudo da USP acompanhou a evolução de dor para quantificar e qualificar a sensação dolorosa dos pacientes e registrou o alívio de dor em relação ao analgésico. A partir disso, os profissionais de saúde desenvolveram um parâmetro de dor e escalas de avaliação para facilitar a comunicação entre paciente e enfermeiros.
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