Em maio último, participei, na USP, da banca de doutorado do professor Marcelo Tápia que, poeta e tradutor de poesia, é diretor da Casa Guilherme de Almeida.
Sua tese ─ Diferentes percursos de tradução da épica homérica como paradigmas metodológicos da recriação poética - Um estudo propositivo sobre linguagem, poesia e tradução ─, além de fundamentos teóricos da linguagem e da literatura, como pressupostos para uma teoria e uma prática da tradução da épica de Homero, traz um belo, criativo e didático exercício de tradução de fragmentos da Ilíada confrontados, principalmente, com as traduções de Odorico Mendes, no século XIX, de Carlos Alberto Nunes, nos anos 1960 e, mais recentemente, com a de Haroldo de Campos, em fins do século XX.
Na análise crítica dessas propostas, o autor organiza as tendências contemporâneas da tradução poética em três grandes blocos, que eu, por abuso de liberdade, chamo: dos “literalistas”, dos “criativistas” e dos “desconstrucionistas”,
Para os primeiros, os “literalistas” cujo nome é, como disse, não só um abuso pessoal de liberdade linguística, como também um contrassenso poético e um paradoxo verbal, já que o poema só é literal metaforicamente, para os “literalistas”, então, tudo que há para traduzir está no texto de partida e o texto de chegada deve ser o espelho dessa explicação de sentido e conteúdo. Traduzir é ser fiel à intenção de significar do autor do texto transpondo as marcas formais dessa intenção na língua original para a língua do texto traduzido.
Os “criativistas” relativizam esse rigor do explícito e, baseados, de um lado, no construcionismo estruturalista da linguística e, de outro, no funcionalismo poético da linguagem, por inspiração de Jakobson, concordam que é impossível traduzir um texto de uma língua para outra, mas que é possível e desejável, sobretudo em se tratando de poesia, transpô-lo criativamente, como propunha Jakobson, ou transcriá-lo, na expressão adotada por Haroldo de Campos.
Os “desconstrucionistas” caminham no extremo da oposição aos primeiros e também em posição contrária aos “criativistas”.
Quando se opõem aos “literalistas” o fazem pela negação de princípio de que haja um sentido básico, literal do signo, marcado estruturalmente como fundamental, a partir do qual se derivam as demais significações produzidas pelo emprego do signo em seus diversos contextos de uso.
Opõem-se também aos “criativistas” não porque adotem uma teoria referencial do signo ─ o que não fazem ─ mas porque defendem a noção de sentido do signo como construção do sistema linguístico a que este pertence, combinando, no processo de significação da linguagem, invariantes universais do sistema com variáveis sistemáticas das diferentes línguas de sua expressão.
Desse modo, os “criativistas” são, ao mesmo tempo, universalistas e culturalistas, enquanto que a tendência dos “desconstrucionistas” é a afirmação do relativismo tal que, no limite, poderá haver tantas traduções quanto forem as leituras e as interpretações do texto de partida, ele próprio, na verdade, uma leitura entre as miríades de leituras possíveis que o reescrevem, mesmo que sendo o mesmo, já outro pelas variações pragmáticas das circunstâncias de suas variadas leituras. Movimento intelectual para a qual o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luís Borges, constitui como que uma epígrafe, um selo de identificação, um ex-libris do leitor.
Do ponto de vista das teorias do signo, da semiótica, o “desconstrucionismo” acompanha o desenvolvimento dos estudos em pragmática, de inspiração peirciana, acrescentando à lógica da relação entre sentido e referência, a dinâmica da relação do signo com o interpretante para formar um novo signo e assim, sucessivamente, numa cadeia de significados em que a relação do signo com o seu usuário, isto é, com os sujeitos de sua enunciação e de sua interlocução, é tão determinante de seu valor semântico quanto as relações do signo com o signo segundo as regras de combinação morfossintáticas no interior de um dado sistema lingüístico. Wittgenstein, Foucault, Derrida, Lyotard, entre outros, cada um a seu modo, integram o panteão dos reverenciados nessa linha de atuação.
A poesia, do ponto de vista linguístico e literário, quer dizer do ponto de vista da teoria da linguagem e da teoria da literatura, ao menos na ótica construtivista, é um novo objeto situado entre a materialidade do signo e a imaterialidade do sentido, dando concretude a este e evanescência ao primeiro.
A intenção de significar a que antes aludimos, deve ser entendida, mais do que como um fenômeno psicológico, como um fenômeno linguístico literário que, além de representar estados de coisas no mundo, apresenta, formalmente marcados no enunciados, os modos da relação dessas representações com o autor e com o leitor.
Entre esses modos de apresentação estão os jogos dos modos enunciativos e narrativos que tanto linguistas como Benveniste, filósofos como Austin e Strawson e, antes deles, o egiptólogo e teórico da linguagem Alan Gardiner, e romancistas como Henry James apontaram em oposições marcantes para a análise dos mecanismos de funcionamento dos atos de linguagem. As distinções entre história e discurso, dizer e mostrar, mostrar e contar permitem um entendimento mais claro das complexas relações entre o explícito e o implícito de um enunciado e a formulação de explicações teóricas e metodologicamente consistentes acerca das relações entre aquilo que se diz e o ato de comunicação que faz com que o que é dito seja compreendido na forma da intenção de dizê-lo, como uma afirmação, uma advertência, uma promessa, uma ameaça, uma ordem, uma pergunta, um comentário etc.
É o que Austin chamou de uptake : aquilo que no enunciado não faz parte propriamente da formulação do conteúdo que se quer dizer mas da indicação da forma pela qual o locutor deseja que o conteúdo seja comunicado e entendido.
O que equivale a dizer, na terminologia de Gardiner, que um enunciado descreve, diz alguma coisa sobre alguma coisa e mostra, indica a forma na qual deve se dar a comunicação desse conteúdo.
Assim todo enunciado, além dos elementos linguísticos que se articulam na relação sujeito e predicado para a expressão de um dado conteúdo, traz também marcas, ─ que podem ser, em alguns casos, as mesmas ─, que mostram a relação desse enunciado com o contexto pragmático de sua enunciação.
Um enunciado do tipo “O dia está chuvoso” descreve um estado de coisas e o faz sob a forma de uma afirmação. O indicativo presente é, ao mesmo tempo, a marca linguística do predicado atributivo dito do sujeito ─ “O dia” ─ como também a indicação de que essa atribuição se dá na forma de uma afirmação.
Do ponto de vista pragmático, isso significa pelo menos quatro coisas: o locutor se apresenta como dizendo a verdade do que diz, o locutor acredita na verdade do que diz, o locutor tem provas da verdade do que diz e o que ele diz é apresentado como de interesse informativo para o interlocutor. São as regras implícitas que constituem uma afirmação como afirmação e que estabelecem indicações de cota para o desenvolvimento do diálogo entre os interlocutores. São as marcas linguísticas de sua expressão, como que sinais de trânsito a indicar o sentido, o futuro das rotas a serem seguidas no fluxo discursivo da comunicação.
A função poética da linguagem se dá no interior da ampla e disseminada função comunicativa que caracteriza todos os atos de fala.
Assim, é poesia o que se lê como poesia, ou o que se lê como poesia é poesia? Onde e quais as marcas da intenção poética do enunciador e quais as formas de enredamento do leitor no jogo dessa sedução em que o poema ─ essa hesitação prolongada entre o som e o sentido, como escreveu Valéry ─ resiste à vertigem ontológica da linguagem de negar-se e referir o mundo para afirmar-se como referente e signo de novas formas e conteúdos novos de comunicação?
Traduzir ─ e no caso da tradução poética mais do que em qualquer outro caso ─ é, assim, alcançar na língua de chegada a complexidade das relações entre enunciação e enunciado presentes no texto da linha de partida, transpondo-as tão criativamente que o leitor do texto traduzido tenha a sensação de que está lendo um original com a certeza do estranhamento que os vários fingimentos aí contidos provocam na leitura de quem lê o lido como se original não sendo, tivesse lido.
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