10/04/2011
Formada em filosofia hispânica pela
Universidade de Salamanca, Margarita Becedas começou a atuar como bibliotecária
em 1986, quando entrou para o quadro de bibliotecários do Estado. Atualmente é
responsável pelos Sistemas Bibliotecários das Universidades de Valladolid e
Salamanca, e desde 1997, é diretora da Biblioteca de História Geral da
Universidade de Salamanca (Usal). Ela é autora dos livros Tesoros de la antigua librería de la Universidad de Salamanca (2002),
e Las bibliotecas históricas de Castilla
y León (2007). Em 2008, publicou
com dois colegas de profissão um manual de catalogação de acervos antigos
intitulado Los libros impresos antiguos:
análisis y aplicacion de La ISBD(A). Becedas é também autora de uma dezena
de artigos em revistas e de monografias coletivas, a maior parte sobre
patrimônio histórico, bibliotecas históricas ou publicações impressas. Dentre esses,
destaca-se o artigo dedicado à história da Biblioteca Central, escrito em
colaboração com Oscar Lilao e publicado em 2006, no volume III de História da Universidade de Salamanca.
Por fazer parte do Grupo de Trabalho de Patrimônio Bibliográfico da Rede
Espanhola de Bibliotecas Universitárias (Rebiun) e trabalhar em uma biblioteca
histórica, Becedas tem ainda, necessariamente, que publicar catálogos de
exposições e guias dos acervos. Nesta entrevista à ComCiência, Becedas fala sobre a Biblioteca Antiga da Universidade
de Salamanca, que abriga um grande acervo de obras raras em um espaço que
remete o visitante a uma viagem entre personalidades que constituem a história
da ciência, como Aristóteles, Darwin e Vesalius, entre outros.
ComCiência – A Biblioteca
Antiga da Universidade de Salamanca foi criada junto com a universidade, em
1218, ou foi constituída posteriormente?
Margarita Becedas – As primeiras notícias sobre a origem de uma biblioteca
no Estudio Salamantino (posteriormente Universidade de Salamanca) são de
1254, através do documento de reorganização do Centro de Estudos, escrito pelo
rei Alfonso X, chamado “O Sábio”. O primeiro espaço
documentado para uso
da biblioteca data de meados do
século XV. Ficava na parte alta da atual capela do
prédio das Escuelas Mayores (onde ficavam os cursos das grandes faculdades como a de direito e de teologia) e tinha o teto pintado com motivos astrológicos.
Atualmente, algumas dessas pinturas podem ser vistas em uma sala do pátio das Escuelas Menores e são conhecidas como “O céu de
Salamanca”. O espaço atual também se encontra na Escuela Mayor e foi construído no
início do século XVI. Após
uma demolição ocorrida no século XVII, foi reconstruído
em meados do século XVIII, em grande parte, tal como nós
o conhecemos agora. Junto com o
grande salão barroco, que contém livros impressos, há um
pequeno cofre com armários e pinturas do século
XVII, que abriga os
manuscritos e incunábulos, ou
seja, obras impressas desde o nascimento da impressão com tipos móveis, em
meados do século XV até 1501.
ComCiência – Quantos títulos
são encontrados hoje na Biblioteca Antiga da Universidade de Salamanca?
Margarita Becedas – O tipo
de acervos da Biblioteca de História Geral, que pertencem à Biblioteca Antiga,
são: acervo histórico – manuscritos, incunábulos e materiais impressos até
1830; acervo relacionado com Salamanca – publicações salamantinas anteriores ao
Depósito Legal; o Depósito Legal (1958-1982), com publicações da Universidade
de Salamanca (desde 1943), obras de valor histórico para Salamanca ou para a universidade;
legados e doações; acervos multidisciplinares universitários desde 1830; acervo
moderno de apoio à investigação. Ainda a respeito do acervo histórico, na sala
anexa à Biblioteca Antiga se encontram 2805 manuscritos e 485 incunábulos. Há
cerca de 60 mil livros impressos até 1830, dos quais 38.937
estão instalados na Biblioteca Antiga e o resto em depósitos no interior da
biblioteca.
ComCiência – Todos esses
títulos recebem a classificação de obra rara?
Margarita
Becedas – Os manuscritos são, por sua própria natureza, exemplares únicos. O texto
que eles contêm, por
vezes, é encontrado em outros trabalhos, incluindo impressos, mas de um ponto de vista bibliográfico, um manuscrito é sempre único. Temos muitos
manuscritos inéditos cujo texto é raro. Há
também muitos com preciosas iluminuras, ouro e pergaminhos finíssimos.
ComCiência – Quais obras da
biblioteca a senhora destaca como principais e por qual motivo?
Margarita
Becedas – É difícil
escolher apenas algumas, mas devo mencionar uma das
mais antigas, o Liber
canticorum horarum, livro de orações em latim escrito no século XI,
para a rainha Sancha de Castela e Leão.
Também gostaria de citar o nosso exemplar do Livro de bom amor, do século XIV, um
dos primeiros da literatura em língua castelhana, ou seja, em
vernáculo e não em latim. O Códice calixtino, que trata da vida do
apóstolo São Tiago e das peregrinações do caminho jacobeo (de Santiago de Compostela
a Finisterra). A lista é muito grande: bíblias em finíssima pele de vitela e repleta de iniciais
pintadas com ouro do século XIII, elegantes exemplares humanistas, livros
científicos, jurídicos, de textos clássicos gregos e latinos... Quanto aos incunábulos, nossa
coleção é bastante extensa. Há magníficos exemplares alemães e venezianos, mas eu,
particularmente, gosto de incunábulos impressos em Salamanca.
São mais rudimentares
do que muitos europeus. Entre eles estão,
por exemplo, as primeiras constituições impressas da universidade, uma boa parte das obras de Antonio de Nebrija, alguns incunábulos
científicos com ilustrações xilográficas e até mesmo um
livro sobre o
jogo de xadrez com ilustrações de
execuções. Finalmente, entre os livros impressos desde o século
XVI, existem verdadeiras jóias e
muitas primeiras edições ou itens exclusivos.
ComCiência – Há registro de
obras importantes que foram perdidas ou que não resistiram ao tempo? Quais os
principais motivos de perdas?
Margarita
Becedas – Ao longo de sua
história, exceto por
alguns momentos ruins
(a destruição do
século XVII ou a guerra
contra Napoleão Bonaparte
no início do século XIX), a biblioteca tem ganhado muito mais acervos do que perdido. Além de compras e
doações, herdou os
livros do Real Colégio da
Companhia de Jesus de Salamanca, das bibliotecas das escolas antigas
de Salamanca e
até dos mosteiros e conventos da província. Desde então, em
todas as épocas, desapareceram algumas obras e os antigos inventários
reconhecem alguns livros que não estão mais, mas não nos consta nenhum que se
possa considerar fundamental. Talvez a falta no arquivo de algum documento de
fundação, na biblioteca, as primeiras constituições manuscritas, que em algum
momento tiveram que estar ali. Entre os
manuscritos das escolas, que foram levados para Madri
no final do século XVIII e voltaram em 1954, foram detectados erros graves,
mas uma boa parte foram apropriações indevidas dos franceses ou presentes do
rei Fernando VII, no início do século XIX, a seu aliado, o duque
de Wellington. Alguns
deles foram posteriormente
recuperados. Também é sabido que muitos livros de mosteiros desapareceram antes de chegarem à biblioteca,
durante o confisco
no século XIX, principalmente porque eles foram
vendidos. Infelizmente, é difícil evitar o roubo ou a destruição, mas
agora temos um
controle muito rigoroso
das consultas e até mesmo livros já digitalizados
que, muitas vezes, nem mesmo estão disponíveis nas salas.
ComCiência – Das doações
recebidas, quais poderiam ser apontadas como mais relevantes?
Margarita
Becedas – Junto com os livros comprados e produzidos para e pela universidade, nossa biblioteca tem se beneficiado de diversas doações legais (expulsão dos jesuítas e o fechamento de
escolas no século XVIII, o confisco dos bens da Igreja no século XIX). Mas a biblioteca é muito
admirada pelos professores antigos e ex-alunos da universidade, de modo que
recebeu grandes doações particulares em todas as épocas (a primeira realmente
importante ocorreu no século XV). Doações de grande porte são escassas agora;
no entanto, o século XX trouxe-nos algumas bibliotecas privadas muito
ricas e doações de livros avulsos de grande categoria. Lembro-me de um par de
exemplares do grande impressor italiano Bodoni ou a primeira edição de Emile,
de Rousseau, ou a Crítica da razão pura, de Kant, para citar apenas as
doações nos últimos anos.
ComCiência – Há alguma área
do conhecimento que seja mais destacada na biblioteca, como filosofia,
medicina, teologia ou direito? Esses eram os principais focos de ensino na universidade, não?
Margarita Becedas – Por ser
uma biblioteca de caráter universitário e ser herdeira de centros
universitários e religiosos, estão faltando,
por exemplo, as
primeiras edições da literatura espanhola,
que antes não eram objeto de estudo na universidade. Mas
há uma série de
importantes obras teológicas e jurídicas, que tradicionalmente têm sido as faculdades mais importantes de Salamanca. As coleções de filosofia, ciências e medicina antigas, e de geografia e astrologia
são também excelentes.
ComCiência – Houve um
período em que foi dada maior atenção para esta biblioteca?
Margarita
Becedas – Embora a biblioteca
tenha nascido no século XIII e sido construída no século XVI – a Idade de Ouro da Universidade de Salamanca –, o grande renascimento da biblioteca ocorreu no século XVIII, após a reconstrução
da sala. Nesse século,
triplicaram os acervos bibliográficos, com a chegada dos livros dos jesuítas e
das escolas, além de terem sido comprados muitos livros para os estudantes. Foi também o momento em
que os bibliotecários começaram
a ser contratados, trabalharam duro e bem e, assim, foram lançadas as bases do que é a atual
Biblioteca. Eu acho que no século XVIII, a biblioteca recebeu um forte e definitivo impulso, na realidade, superior a qualquer outro
momento da sua história.
ComCiência
– Nos últimos anos, que projetos têm sido desenvolvidos
para dar mais visibilidade ao acervo que a Biblioteca Antiga dispõe?
Margarita
Becedas – Em meados do século XX, a
biblioteca foi consideravelmente ampliada, com novos espaços e com os
manuscritos de colégios antigos que estavam em Madri. No final do século XX e
começo do século XXI, foi dado um grande salto catalográfico e tecnológico, com
o catálogo on-line e a criação da biblioteca digital, que permitem consultar o
texto completo através do catálogo ou do repositório institucional “Gredos”,
uma grande parte dos manuscritos, impressos antigos e publicações periódicas
salamantinas históricas. Também tem havido, nos últimos
anos, como em todas as bibliotecas, uma
“revolução” em atendimento ao
usuário. Até poucos anos atrás,
as bibliotecas históricas se ocupavam, fundamentalmente, da conservação. Agora temos que conciliar
a preservação com a promoção
e a visibilidade dos
acervos.
ComCiência – O trabalho de catalogação do acervo
realizado recentemente segue nessa direção? Em que medida ele tem facilitado a
pesquisa sobre o acervo?
Margarita
Becedas – Entre 2001 e 2007, tivemos uma equipe de catalogação e digitalização
financiada pela Fundação Marcelino
Botín, ligada ao Banco Santander. Mas o projeto
acabou, e a catalogação dos livros não foi concluída.
Agora avançamos, pouco a pouco. Este projeto de análise exaustiva dos livros e
de catalogação on-line tem feito com que se conheça melhor os acervos. Foram identificados dois incunábulos novos, que não sabíamos que tínhamos, e
descobrimos edições e variações de edições muito raras... Em
suma, podemos agora falar da riqueza de nossos
recursos com muito mais propriedade do que antes. Logicamente, a catalogação na
internet tem impulsionado o número de pesquisadores que nos pedem informações e
cópias por email, sem a necessidade de vir à biblioteca, e temos notado também
que os pedidos de empréstimos para exposições (colaboramos com uma média de quatro
exposições ao ano, na Espanha e fora dela) são mais variadas. Antes eram
conhecidos apenas alguns livros nossos muito famosos que eram pedidos sempre e
agora se conhecem muitos outros.
ComCiência – Como é o
trabalho de conservação e recuperação dos livros, mapas e documentos da
biblioteca?
Margarita
Becedas – Felizmente, o
tipo de clima de
Salamanca é bom para
a conservação dos livros. Mesmo assim, todos
nós nos preocupamos em fazer medições semanais da
temperatura e umidade e ter bons cuidados de manuseio dos livros. É claro que existem muitos livros que
necessitam de uma intervenção, mas isso é um processo longo e caro. Temos
um pequeno laboratório de restauração e
encadernação, em que trabalha uma restauradora. De vez em quando (uma ou duas vezes por ano), enviamos
para restaurar algum livro ou publicação periódica antiga para uma
empresa privada em Salamanca.
Mas, principalmente, nós trabalhamos
com dois centros públicos de restauração:
um pertence ao Estado e outro à Junta de Castela e Leão. Por exemplo, nos últimos dois anos,
temos sido capazes de restaurar todas as esferas celestes e terrestres
da biblioteca (os
livros redondos e gordos)
e um grande coro
manuscrito do século XVI. Todos estão agora disponíveis ao público.
ComCiência – Quem pode visitar
a biblioteca e qual é a visitação anual?
Margarita Becedas – Por razões de segurança e preservação,
não temos a Antiga Biblioteca aberta ao público e nem temos um horário para
visitação. As visitas que nos chegam são sempre do tipo institucional , previamente
autorizadas, de professores com alunos universitários. Nós
também temos regras rígidas de que não se devem entrar simultaneamente mais de 20 ou 25
pessoas ou que um grupo com mais de oito pessoas não pode entrar em uma sala
pequena de manuscritos. Apesar de todas essas limitações, temos um número
grande de visitas por ano. Por exemplo, no ano passado,
tivemos 315 visitas que reuniram 1.373 pessoas;
junto a isso, tivemos oito seminários com alunos e seis gravações de meios de
comunicação. Para os visitantes do prédio da universidade e turistas que não
podem entrar na biblioteca, em 1995 foi colocada uma porta de vidro, que
permite uma vista panorâmica completa da sala.
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