Quando se ouve a palavra “caatinga”, acredito que, para a maioria das pessoas que não a conhecem, as primeiras imagens que vêm à mente são tristes cenas de seca, de esqueletos e carcaças de gado ardendo ao sol, de açudes sem água e de um povo pobre, sofrido e faminto.
Sim, essas cenas ocorrem, uma vez que a caatinga se situa em uma região semiárida, onde chove pouco (média pluviométrica anual varia de 240 a 1.500 mm, com 50% da região recebendo menos que 750 mm e em algumas áreas centrais, menos que 500 mm) e o regime de chuvas não é regular, havendo longos períodos de estiagem, às vezes por mais de um ano, o que castiga as populações locais.
No entanto, conhecendo um pouco mais a caatinga, se descobre que há o outro lado da moeda: bastam as primeiras chuvas, no início do período chuvoso, que a paisagem se transforma radicalmente, ficando, então, difícil imaginar que toda a exuberância verde da vegetação desse período, preenchida pela intensa movimentação e sons dos animais que ali vivem, possa um dia desaparecer com a seca, que chegará, invariavelmente, nos próximos meses. Caatinga do Parque Estadual de Morro do Chapéu, durante a estação seca e na estação chuvosa Fotos: Caio Graco Machado
É bem comum, ainda na escola, aprendermos que a palavra “caatinga” vem do tupi e quer dizer “mata branca”. Isto está relacionado ao fato de que, durante a estiagem, com praticamente todas as espécies de plantas desfolhadas ou secas, o aspecto da vegetação é esbranquiçado – daí o nome “caatinga”. No entanto, é importante sabermos que há duas diferentes definições para a palavra caatinga: a “Caatinga” e a “caatinga”.
A Caatinga, iniciada com letra maiúscula, se refere ao bioma, que é a região semiárida, que se estende por todos os estados do nordeste brasileiro até o norte de Minas Gerais. A Caatinga é o quarto maior bioma do Brasil, ocupando cerca de 10% de seu território e, dentre todos os biomas brasileiros (há outros cinco: Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal), é o único endêmico do Brasil, uma vez que os demais também se estendem aos países vizinhos.
No bioma Caatinga ocorrem diversos tipos vegetacionais, incluindo áreas de cerrado, de campos rupestres, vários encraves de mata atlântica; porém o tipo de vegetação predominante, que dá o nome ao bioma, é a caatinga. Desta forma, a caatinga (escrita com letra minúscula) é um tipo de vegetação, que é primariamente florestal, apesar de também possuir formações mais abertas, campestres, e que é bastante adaptada aos acentuados períodos de estiagem ocorrentes no semiárido brasileiro.
Em meio à extrema variação sazonal, há uma rica fauna, ainda subestimada por ser pouco conhecida em sua totalidade e pelas grandes lacunas de conhecimento sobre sua distribuição, adaptações e interações ecológicas. Com as aves esta situação não é diferente – de todos os biomas brasileiros, a Caatinga ainda é a que tem sua avifauna menos estudada. Até o início da década passada, 510 espécies foram reportadas em todo o bioma, das quais cerca de 350 ocorrem na vegetação de caatinga. No entanto, uma investigação mais recente, a partir de novos estudos e registros, resultou em uma riqueza de 596 espécies de aves apenas na porção baiana do bioma Caatinga!
Apesar de ainda não haver um consenso, se estima que existam cerca de 15 espécies de aves endêmicas desse bioma; dentre elas, duas araras baianas: a arara-azul-de-lear, restrita à região do Raso da Catarina, e a ararinha-azul, considerada extinta na natureza desde 2000 – ainda existem indivíduos vivos em cativeiro, a maioria fora do Brasil. Entretanto, há várias espécies de aves que, apesar de ocorrerem também em outros biomas, são considerados muito típicas da Caatinga, como o carcará, a pomba asa-branca e o assum-preto – o primeiro imortalizado na canção de João do Vale e as outras duas nas canções de Luiz Gonzaga; no entanto, é considerada a “voz da caatinga” a gralha-cancã, devido à vocalização forte e inconfundível, sempre comum.
Assum Preto (Gnorimopsar chopi), Foto:Caio Graco Machado
Arara Azul de Lear (Anodorhynchus leari), Foto:Fábio Nunes Asa Branca(Patagionas picazuro), Foto:Marcel Lemos
A avifauna da Caatinga foi historicamente selecionada para poder ser capaz de superar os longos períodos de estiagem. Muitas espécies realizam deslocamentos populacionais durante os períodos de aridez, deixando as áreas secas em busca de recursos em áreas mais úmidas.
Muitas outras espécies, por outro lado, não apresentam esses deslocamentos populacionais, permanecendo sempre na mesma área. Dentre elas, são comuns as espécies de aves que se alimentam de grãos e sementes caídas junto ao solo. A pomba asa-branca, exemplo de uma dessas espécies, é citada na canção de Luiz Gonzaga que, ao narrar um episódio de seca extremamente intensa, diz que “até mesmo a asa-branca bateu asas do sertão”.
Também são encontradas mesmo durante a seca as espécies que se alimentam de insetos, as espécies necrófagas que se valem de cadáveres de animais que sucumbem à seca, e as espécies generalistas, onívoras, que possuem uma grande capacidade de explorar e de se alimentar de diversos tipos de alimento, quer sejam insetos, frutos, grãos ou mesmo pequenos animais.
Recentes avaliações promovidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) identificaram 16 espécies da Caatinga categorizadas em algum grau de ameaça de extinção: duas consideradas criticamente ameaçadas de extinção (a tiriba-de-peito-cinza e o soldadinho-do-araripe), nove em perigo e cinco vulneráveis. Para reverter esse quadro, foram elaborados três planos nacionais de ação para a conservação de espécies ameaçadas de extinção (PAN), sendo um exclusivo para o soldadinho-do-araripe, no Ceará, outro para a arara-azul-de-lear, na Bahia, e o terceiro voltado para o conjunto das demais 14 espécies ameaçadas, em todo o bioma.
Dentre as ações desses PANs há a identificação e a minimização (ou mesmo a erradicação) das principais ameaças que colocam em risco essas espécies. Para as aves da Caatinga, há vários tipos de ameaças, sendo algumas geograficamente mais pontuais ou restritas a algumas espécies, porém, duas ameaças são comuns a todo o bioma: a perda de habitat e a caça.
A perda de habitat é um fenômeno histórico de ocupação humana da Caatinga e decorre de diversos tipos de atividades: a agricultura – tanto a pequena e familiar quanto as grandes frentes agrícolas mecanizadas e irrigadas; a pecuária extensiva; as atividades de mineração; e as atividades relacionadas à produção de energia, tanto pelos distúrbios decorrentes do corte seletivo de vegetação para retirada de madeira para abastecer carvoarias e para a instalação de parques eólicos, quanto pela supressão total da vegetação para a formação de represas hidroelétricas.
A caça de subsistência, para obtenção de alimentos, de modo geral tem decrescido, porém ainda é intensa a captura de aves para suprir os mercados ilegais ligados ao tráfico de animais, que é a terceira atividade ilegal que mais movimenta dinheiro no mundo. A captura para o tráfico foi a causa principal da recente extinção da ararinha-azul da natureza.
A avifauna da Caatinga não é um elemento isolado, uma vez que as diversas espécies de aves se inter-relacionam de maneira muito complexa com outros animais e com a flora. Assim, a conservação das espécies de aves da Caatinga está intrinsecamente ligada à conservação do bioma como um todo, o que é indispensável para o desenvolvimento sustentável necessário às populações humanas. Os termos “conservação” e “sustentabilidade” devem deixar de ser as palavras de ordem do momento para se tornarem ações de ordem prioritária e permanente.
Caio Graco Machado é professor pleno do curso de
ciências Biológicas da Universidade Estadual de
Feira de Santana, Bahia. Contato: caiogracomachado@gmail.com
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