Em entrevista à BBC News, no início deste ano, o biólogo Hamilton Smith, que trabalha no Instituto J. Craig Venter – o laboratório que sintetizou o genoma da bactéria Mycoplasma genitalium –, fez questão de distinguir as expressões “vida sintética” e “vida artificial”: “Com a vida sintética, nós redesenhamos os cromossomos celulares; nós não criamos todo um novo sistema de vida artificial ”. Para o campo da biologia sintética, a essência da vida estaria na molécula de DNA. Partindo dela, mas embaralhando sua composição, os cientistas pretendem criar seres nunca vistos, sem equivalentes na natureza. Já a área de vida artificial, como analisa Nina Velasco e Cruz, em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, busca “simular os sistemas vivos por meio de algoritmos computacionais, a partir do pressuposto de que a essência da vida não está no material de que é constituída, mas sim no seu processo lógico singular”.
Embora por caminhos distintos, tanto o campo da vida sintética quanto o da vida artificial buscam reproduzir sistemas vivos. Ricardo Ribeiro Gudwin, engenheiro da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp, conta que as pesquisas atuais em vida artificial buscam replicar habilidades mais sofisticadas de animais e seres humanos. Ele destaca três linhas de pesquisa promissoras: a memória episódica, que envolve pesquisas sobre a capacidade que os humanos têm de lembrar do que fizeram, estabelecendo uma linha do tempo e selecionando elementos considerados mais ou menos importantes; a linguagem, em que se explora a capacidade de comunicação dos humanos e se tenta, por exemplo, reproduzir a aprendizagem de línguas em criaturas artificiais; e a terceira, a da consciência, que visa o desenvolvimento de criaturas artificiais conscientes.
Para Gudwin, é importante ressaltar que os estudos sobre essas “características humanas” têm sido feitos com base em pesquisas no campo da psicologia, lingüística, antropologia, filosofia, etc. O modelo explicativo da psicologia cognitiva do neurocientista Bernard Baars, por exemplo, tem inspirado as investigações do pesquisador Stan Franklin, da Universidade de Memphis, que escreveu Artificial mind e criou o primeiro sistema cognitivo artificial “com consciência segundo Baars”. “Não quer dizer que Baars esteja correto ou errado sobre o que seja a consciência, seu funcionamento, mas que a proposta dele de consciência é possível de ser feita num sistema de vida artificial”, argumenta. Chalmers, da área de filosofia da mente, é um dos críticos da teoria de Baars (leia “A teoria da consciência de David Chalmers”, de João de Fernandes Teixeira, do Instituto de Estudos Avançados da USP).
As pesquisas em vida sintética e artificial se utilizam dos estudos sobre os organismos já existentes como base para criação dos modelos, numa aposta na substância da vida, naquilo que seria essencial aos seres vivos, que os diferenciaria dos não-vivos, para desenvolver sistemas, sejam artificiais ou sintéticos. A arte como reflexão sobre a ciência também se vale disso. Mimetizar os sistemas vivos, utilizando as possibilidades de vida artificial, tem sido a escolha do artista e pesquisador da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, Ken Rinaldo. Em Autotelematic Spider Bots, ele criou dez esculturas-robôs-aranha que estão constantemente à procura de interação com o homem. Movimento, interação, resposta a estímulos e evolução dentro do sistema seriam características “próprias” de sistemas vivos que o artista elegeu. As aranhas foram programadas para balançar as antenas para frente e para trás, e, ao encontrar pessoas, modificar seus comportamentos, que se manifestam de imediato ou ao longo do tempo, de acordo com o modo como o sistema evolui. A aposta do pesquisador, entretanto, não é apenas de imitar os sistemas vivos, mas criar uma espécie de simbiose entre eles. As aranhas de Rinaldo são híbridas de vários animais: comem e encontram comida como formigas, vêem como morcegos e emitem sons como pássaros.
Autotelematic Spider Bots de Ken Rinaldo
Disponível em: kenrinaldo.com
Arte, ciência e vida
Não apenas as ciências, mas também as artes, têm se constituído em espaços de experimentação de idéias, conceitos e vida com as novas tecnologias. Moléculas e algoritmos tornam-se objetos tanto de cientistas como de artistas e questões como “O que é arte?”, “Qual o papel da arte?”, “O que a diferencia da ciência e da indústria?” têm mobilizado muitas discussões.
Nina Cruz, que atualmente é pesquisadora do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, analisou o trabalho do artista brasileiro Eduardo Kac e dos artistas Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, ambos da Universidade de Arte e Designer, em Linz, na Áustria. Kac expressa em Gênesis a intrincada relação entre biologia, sistemas de crença, tecnologia da informação, interação dialógica, ética e internet. Cria um genoma sintético, que não existe na natureza, a partir da tradução de uma frase do livro bíblico em código morse, convertido depois em bases do DNA que são inseridas em bactérias. Em placas de petri – recipientes cilíndricos de vidro ou plástico utilizados para a cultura de microrganismos – as bactérias estavam expostas à luz ultravioleta, e uma câmera permitia aos espectadores intervir no sistema pela internet, provocando mutações na colônia de bactérias, ou seja, no texto contido em seus corpos.
Já Sommerer e Mignonneau desenvolvem seres virtuais, através de programas de vida artificial, fazendo com que a interatividade aconteça por meio de interfaces imersivas para comunicação homem-máquina, nas quais a interação com as obras não se dá apenas por observação. Em Life Spacies II, as pessoas podiam interagir com o sistema pela web, enviando mensagens. Os artistas criaram algo similar ao código genético, em que as letras, a sintaxe e o seqüenciamento do texto era usado para codificar certos parâmetros na concepção das criaturas: forma, cor e textura. Os textos enviados não apenas davam origem às criaturas, mas também as “alimentavam”, mantendo-as vivas e permitindo o acasalamento e reprodução.
|
|
|
Life Spacies II de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau
Disponível em: www.lxxl.pt |
|
Gênesis de Eduardo Kac, obra criada com a frase “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra”
Disponível em: www.ekac.org |
Quando arte e ciência parecem se contaminar e se confundir com a própria vida, que novas questões se colocam? Para João Fernando Igansi Nunes, do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e pesquisador do Laboratório Paragraphe da Universidade Paris 8, a questão vital hoje é o que é criar. “Seja nas artes ou nas ciências, o que está em jogo é a criação”, afirma. Ele explica que Marcel Duchamp introduziu o ready made – o transporte de um elemento da vida cotidiana, a priori não reconhecido como artístico – para o campo das artes. A partir daí, com a possibilidade de mudar de contexto, transformar, hibridizar, simular e replicar, entrou em crise a noção de criação, de dar vida. Durante o 7#ART – encontro internacional de arte e tecnologia, que aconteceu no Museu Nacional em Brasília, na primeira semana de outubro de 2008, Nunes apresentou o problema que pulsa em sua pesquisa de doutorado, ao explorar em várias obras as apropriações de conceitos matemáticos para a lógica de programação: “Programar não é criar”, sentencia. (lei mais no artigo Estética da interface computacional).
As idéias de Daniel Hora, especialista em arte e crítica de arte pela Universidade Complutense de Madri, que apresentou no mesmo evento o artigo “CntrlAltDel: Controle, alternativas e delimitações na arte hacktivista”, vão na direção de apontar uma necessária quebra de códigos culturais para o reinício do jogo. Uma abertura arriscada e necessária à simbiose de culturas e possibilidades de entendimento do que seja vida, arte, ciência e política.
No livro Arte: espaço_tempo_imagem, também lançado no 7#ART, a artista e pesquisadora Suzete Venturelli, da Universidade de Brasília (UnB), dedica o último capítulo à arte e vida artificial. Para ela, os trabalhos artísticos que se interessam pela vida artificial buscam “cessar a discussão sobre dualidade entre imaginação e razão, pensamento simbólico e pensamento lógico, favorecer a modelagem de universos de ficção, de imaginários multiformes e multimodais associando imagens, sons, linguagens e gestos”.
Políticas futuras
Na exposição Biofacts – organismos do futuro (Biofakte – organismen der zukunft, em alemão), que ficou aberta até agosto de 2008 no Museum Alexander Koenig, na Alemanha, o artista Reiner Maria Matysik cria estranhas criaturas. Que formas de vida poderão existir no futuro? Que formas de vida as pessoas gostariam de ver no futuro? O que será considerado vivo no futuro? Robôs, andróides, inteligência artificial, vida artificial, seres sintéticos?
Biofakte – organismen der zukunft de Reiner Maria Matysik exposta no Museu de História Natural Alexander Koenig.
Disponível em: www.zfmk.de
Essas tecnologias parecem colocar em crise a noção de vida, e o conceito de futuro pós-humano aparece como sintoma dessa crise. Edgar Franco, da Universidade Federal de Goiás, no artigo “Será o pós-humano? Cyberart e perspectivas pós-biológicas”, destaca como a superação e transformação do humano marcam a noção de pós-humano e influenciam várias produções artísticas. Estaríamos construindo um mundo muito distinto do nosso e proliferam avaliações que ora enaltecem as tecnologias, definindo-as como libertárias em si mesmas, ora anunciam os perigos de controle e opressão das mesmas.
A grande narrativa da obsolescência do humano e do futuro pós-humano, para o sociólogo Laymert Garcia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é uma construção que tem funcionado colada à tecnociência e ao capitalismo. Em entrevista publicada na revista Novos Estudos, Garcia aposta num pensamento “que briga com a tendência dominante à construção da grande narrativa e que, ao mesmo tempo, não tenta segurar a ‘essência do humano', mesmo porque esse pensamento não a considera uma essência e nem que valha a pena segurá-la”. Garcia destaca os trabalhos de Ansell Pearson e Brian Massumi que, inspirados nos escritos dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, propõem um pensamento que desvia da busca pela essência de humanos e não-humanos e não propõem a salvaguarda de territórios que valorizem no humano o que ele teria de animal e natural.
Se a indústria, a ciência e arte de mãos enlaçadas parecem cada vez mais imbricadas, talvez precisemos observar o curso da vida como sugeria o poeta Fernando Pessoa: “Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos/ Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas/ (Enlaçemos as mãos)/ Depois pensemos, crianças adultas, que a vida/ Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa/ Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado/ Mais longe que os deuses/ Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos/ Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio/ Mais vale saber passar silenciosamente/ E sem desassossegos grandes”.
|