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Artigo
Traços de singularidades
Por Antonio Carlos Amorim
10/10/2007

Neste artigo, aprecio a exposição “Monstros e heróis, na trilha das identidades”, projeto coordenado por mim e que foi desenvolvido entre os anos de 2003 e 2004 no Espaço Ciência e Escola do Museu Dinâmico de Ciências de Campinas (MDCC). A exposição foi inaugurada no dia 22/11/2004 e teve seu encerramento no dia 17/12/2004 compreendendo, antes de mais um fechamento em 2005, a última ação educativa desse espaço público de educação e cultura da cidade de Campinas, que ao longo de 20 anos é de responsabilidade administrativa da Unicamp e da Prefeitura Municipal de Campinas.

A exposição, derivada de projetos de pesquisa e formação continuada de professores, pretendeu explorar o potencial de personagens das histórias em quadrinhos, como monstros e super heróis, com os quais tomamos contato pelas produções cinematográficas, de desenhos animados e na literatura, e que educam crianças, por exemplo, a respeito de valores, de moralidades e de posturas éticas, em íntima associação com práticas científicas contemporâneas, participando dos processos de identificação.

Após passados quase três anos, é por três fotografias que expresso esta escrita-percepção; elas foram significadas à época como registros do acontecido, fruto de organização de Heloísa Helena Saviani, diretora do MDCC naquele momento. São, no presente da escrita deste texto, relações entre palavras e imagens, percepções que atualizam um conjunto de acontecimentos, incorpóreos nas minhas lembranças.

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Fotos:
Heloisa Helena Saviani

Cor de rosa e amarelo

Capas cor-de-rosa esvoaçam por entre vidrarias e computadores grafitados numa parede de fundo amarelo, bem forte, da cor de faixas de sinalização de trânsito, em que se lança a escrita-linguagem-história dos gibis. Projeção de realidade numa superfície que imita, simula, simulacra a ciência por alguns de seus ícones, e assume-se como sua dobra constituinte de ficção e imaginação. Gire para a direita e para a esquerda e perceberá arranha-céus, foguetes, prédios e outros objetos tecnológicos traçados em linhas negras, adensamento do grafitismo no fundo amarelo. Cenários das cidades, laboratórios, cavernas. Luminosidade intensa, quase nos cega quando encontramos o intenso amarelo. Sensação de estar dentro de um gibi, com suas cores, cenários e personagens; no qual, as passagens de um quadro a outro – em geral enquadradas por linhas (uni)(dis)formes que indicam um tempo entre as “cenas” – ejetam-se deste plano de superfície e ganham versões mais labirínticas com os grandes banners no estilo de festas de crianças que povoam o Hall de Entrada do Museu Dinâmico de Ciências de Campinas. Este espaço imagético da exposição “Monstros e heróis, na trilha das identidades” aproxima as crianças de 06 a 10 anos, público privilegiado da exposição, com o imaginário do universo dos heróis, dos vilões, assumindo que ambos têm identidades próximas aos monstros. Com dois grandes banners na entrada que apresentam variadas tipologias dos monstros e heróis, e doze outros espalhados pelo hall, suspensos a partir do teto, as crianças podem admirar detalhes das imagens desses personagens, vê-los pelo seu avesso (e tatear pensamentos sobre as relações entre humano e não humano), e entrar em um corredor em que tanto suas sombras quanto as dos personagens se misturam, por efeito de jogos de luz.

Linhas de escrita que atualizam o desejo de essa exposição provocar nos visitantes a sensação de que cotidianamente constituímos processos de subjetivação, nas diferentes relações que estabelecemos com pessoas, objetos, coisas, imagens, discursos, conhecimentos. Tendo como pano de fundo para sua estruturação a pós-modernidade, nessa exposição os conhecimentos e práticas de áreas científicas distintas procuram fragmentar a identidade por forças que vêm de estudos do cinema e das histórias em quadrinhos (com seus cyborgs, mutantes, super-heróis, monstros).

Se aceitamos que as inscrições identitárias monstros-heróis-vilões e infância estendem-se nas superfícies das peles cobertas pelas capas, pela tinta amarela, pelo negro do grafite e pelo colorido das pinturas nos banners de pano é, possivelmente, nos movimentos trilhados pelos visitantes e nos espaços vazios do labirinto e o convite a nele se perder, que quase acontecem as ações educativas dessa exposição; quase porque é brincadeira, caótica e desordenada. Quase porque é educação com desejo de esvaziar, deixar livre espaço para o agir criativo de um diagrama que insiste em colocar homens e mulheres em projeções de ser, pensar, existir e igualar-se. Quase-acontecimento que libera diferenças. Está-se monstro e, num giro da capa, está-se herói, e em outro giro, está-se laboratório, e num outro giro, está-se luz, cor e sombra.

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Velcro e contorno

Nessa investigação, percebemos que as crianças entram em um mundo de imaginação em que se tornam esses personagens, assumem suas características e ainda recriam outros heróis com as características e habilidades que mais lhes agradam. Enquanto assistiam aos desenhos, reconhecemos que elas entendem as tramas e enredos das histórias e dentro disso, dialogam com muitos conceitos de ciências e tecnologias presentes nesses desenhos animados e filmes sobre os personagens de quadrinhos, como genética, clonagem, evolução, mutação, entre outros. Além de aspectos mais abstratos como amizade, companheirismo, poder e ambição, loucura, bem e mal.. (Extrato de Relatório de Iniciação Científica de Letícia Feix de Abreu, 2004)

Achamos que houve um investimento na quantidade de roupas para vestir os bonecos, mas não se pensou na expectativa dos visitantes, que buscam sempre as verdadeiras roupas dos heróis. Isso frustra o visitante. Em contrapartida as capas e as máscaras vêm abrir o campo da interação entre as crianças num contexto divertido e alegre. Uma séria falha nas discussões da equipe foi não ter previsto que este assunto suscita idéias de violência, que se podem resolver problemas através da força bruta. (Extrato da avaliação da exposição realizada por três professores da equipe do MDCC)

As discussões sobre a relação entre os heróis e a ciência com o público foram válidas, apesar de que em alguns aspectos, como o fato de a ciência estar ligada ao cotidiano do público, foram tratados de maneira superficial talvez deixando em segundo plano a ciência em si. (Extrato da avaliação da exposição realizada pela bolsista trabalho SAE/Unicamp Cíntia Helena Genari)

O espaço é redondo, amplo, como escape do labirinto em que se encontra o monstro, nas linhas das imagens. Passa-se uma porta e a tônica são brincadeiras, leituras de gibis, interação entre as crianças e doze grandes bonecos de madeira que devem ser “montados” pelas crianças ao estilo dos monstros: super-heróis e vilões. Há bonecos que são homens e outros, mulheres. A proposta é que as crianças possam fabricar seus próprios personagens e, por meio de brincadeiras interagir imaginativamente com outro universo de dez cenas pintadas nas paredes (muitas delas arremessando para o papel das ciências na fabricação dos monstros e heróis) que contornam o espaço redondo.

Contorno das paredes pintadas, contorno dos bonecos de madeira com suas roupas coladas por velcros, contorno da violência que o monstro sugere e a docilidade da educação assombra; contorno que faz a ciência desaparecer e virar traço.

Contorno de um plano que se o público não participa, não é feita a colagem, o barulho do velcro, descontínuo, ruidoso e violento do monstro. Eis uma contradição inesperada: não fosse a violência do desejo de montar o monstro, nem que seja para destruí-lo e com ele entrar no embate, a reflexão – incluindo os traços das ciências e tecnologias nas paredes – só encontra a identidade, e nela conformaria sua disposição de experimentar o outro como igual. O monstro (violência, desidentificação e anormalidade) é potência de pensar pedagogias da ausência, de singularidades puras e experienciar a fuga do controle de existir na realidade, similarmente a alguns estilos de escrita literária com personagens que querem fazer o leitor se desencontrar.

O conceito de interatividade trabalhado na exposição está intimamente relacionado a outra reflexividade. A relação entre identidade fixa em um personagem e a sua subjetivação em ações práticas das crianças é o plano conceitual (não explícito, é claro) que orienta a organização espacial desta parte da exposição.

Talvez se as roupas fossem iguais às dos monstros e às dos heróis, se fossem enfatizados os valores e moralidades que tais personagens ensinam às crianças e elas já sabem dizer, se a exposição fosse constituindo-se em contornos mais e mais visíveis, mais sérios e menos divertidos, poder-se-ia imaginar uma instalação em que as crianças se grudassem a si mesmas nos velcros dos bonecos, transformando-se em suas roupas, rostos e superfície. E desapareceriam, violentamente, nessas identidades como um grito transborda em cores e intensidades na pintura de Francis Bacon.

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Espelho, olhar com lágrimas nos olhos

Uma fotografia do instante, sua eternidade temporal e morte daquele exato momento, é duração da imagem refletida no espelho e o desencontro daquele que se vê e se reconhece naquela imagem. Reconhece-se, no mínimo, duplo. Tal relação entre fotografia e espelho é deveras realista, interessada, inclusive, nos jogos de identificação que povoam os universos das histórias em quadrinhos, desenhos animados e produções cinematográficas destinadas às crianças. No duplo, as crianças sabem se olhar e se reconhecer. No espaço entre este duplo, no embaçado das subjetividades, as crianças choram, e os monstros são seus olhos com lágrimas que imaginam o mundo.

E o mundo está cheio de clichês, de pegadinhas, de armadilhas da significação. Você é, Eu sou, Nós somos. O monstro é a possibilidade da singularidade sem indivíduo, sem sujeito da ação, e a ação propositiva da frase: Venta, chove, chora.

Monstrar. É uma sensação que toma o corpo de surpresa, é inevitável o acontecimento. E tem o espelho, esse objeto que nos espia e com o qual nos desconhecemos. A instalação da parede de espelhos dentro do espaço Redondo rompe com a circularidade, com uma trilha que vai e volta ao mesmo. Passar em frente ao espelho, vestido com capa e com máscara, é entrar nos olhos do monstro. Hibridização crianças-personagens.

O monstro é câmera filmadora, fotográfica, de circuito fechado, webcam. Os olhos do monstro são de um corpo fragmentado que nunca se junta, a não ser em cada um que se depara com ele em frente ao espelho, embaçado pela umidade das lágrimas. Imaginem um olho, vórtex e aquoso, sedutor, doce e apaixonante como a erupção de um choro que quer um abraço.

O espelho, alegoria do olho do monstro neste texto, é a imagem mais próxima do plano que não se fez, daquilo que é a exposição em devir...

A sensação de olhos com lágrimas, imagem-monstro da lembrança, fotografa o texto a seguir e o lança em passado que não acontecerá.

Ao entrar nos corredores, e por todo o caminho, a composição de músicas, imagens, ruídos sonoros, fantasias e objetos permitirão que as crianças já entrem “no clima” dos personagens do cinema e que escolham o que dos personagens irá utilizar para se vestir e se transformar. Haverá, também nesta caminhada pelo corredor, um momento em que as crianças entrarão em um espaço similar a um laboratório de ciências (cenário pintado por artista plástico e com objetos de plástico que imitam os aparatos tecnológicos, entremeados de cenas de filmes em que a transformação dos personagens se passa em um laboratório). Após a passagem por este corredor, as crianças chegam até o teatro, espaço comum, no qual irão brincar, inventar estórias a partir dos personagens que são. Neste espaço, haverá várias possibilidades de brincadeiras (como túneis, rampas, “muros para escaladas”, prédios pintados e possibilidades de deslocar de um lado para o outro, etc.). Essas brincadeiras serão filmadas por câmeras localizadas em locais distintos deste espaço que registrarão o filme que está se desenrolando em um telão, do lado de fora da instalação. Do lado de dentro, algumas paredes serão pintadas com tinta especial e, de tempos em tempos, faremos uma parada das atividades para as crianças se verem em sombras momentaneamente fixas nas paredes. (Trecho do plano de organização da exposição escrito em 2003).


Antonio Carlos Amorim
é professor da Faculdade de Educação da Unicamp.

Para saber mais:

Amorim, A. C. R.; Abreu, Letícia Feix de. “Ciências e culturas”, entrelaces de experiências. Rua. Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp, Campinas, v. 1, n. 11, p. 27-51, 2005.
Dias, S. “Heróis e monstros, híbridos que perturbam”. Cienc. Cult. online. jan./mar. 2005, vol.57, no.1 citado 02 Outubro 2007, p.59-59. Disponível em:. ISSN 0009-6725.

Ficha técnica:

Exposição: Monstros e heróis, na trilha das identidades
Concepção e coordenação geral: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim – FE/UNICAMP
Design artístico: Flávio Cossa
Produção de imagens em grafite: Fernando César
Bolsista de Iniciação Científica (Pibic/SAE/Unicamp): Letícia Feix de Abreu
Equipe do Espaço Ciência e Escola do Museu Dinâmico de Ciências de Campinas
Diretora: Heloísa Helena Saviani – SME/PMC

Professores – SME/PMC:

Ana Lúcia Ribeiro
Ana Lúcia P. C. Pícoli
Andréa Carla Fissore
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Leila Adriane C. Revoredo
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Maria Ângela B. V. Tristão
Maria da Conceição dos Santos
Maria Rita Ferreira Neves
Onorfa Cardoso de Líbano
Silvia Fernandes de Oliveira
Tanea Regina Pereira

Bolsistas – S.A.E. / UNICAMP:

Lucimário Miranda Tenório
Silas Martins Marques

Financiamento:

FAEPEX/Unicamp (Processo 1347/04) e Secretaria Municipal de Educação de Campinas