genes humanos
“Genes explicariam
traição feminina”,
“Gene
do cabelo rebelde”
e “Gene
que determina a
preferência sexual”.
Estas são algumas das manchetes produzidas pela grande
mídia
e que traduzem a supervalorização que os genes
adquiriram, principalmente depois que os projetos genomas
ampliaram-se, atingindo novas espécies de plantas, animais,
bactérias e ao homem. Se, num primeiro momento, o
seqüenciamento do genoma pretendia “desvendar os
códigos
da vida” e seqüenciar em humanos cerca de 100 mil
genes, sua
conclusão até desmistificou a superioridade
humana
frente aos outros organismos, ao revelar que nosso genoma (com cerca
de 30 mil genes) difere pouco da planta Arabidopsis
thaliana e que 99% dos genes têm
equivalência
em camundongos. Ficou exposta, assim, à opinião
pública, uma gigantesca complexidade interconectada que
produziu novas investidas, como no caso dos projetos proteoma e
transcriptoma. E que promete outras tantas, como a Iniciativa de
Biologia Sistêmica e o
Projeto do
Epigenoma Humano.
A
busca pela compreensão do funcionamento da vida e o desejo
de
prolongá-la, sanar as doenças e garantir a
manipulação
da natureza é de longa data. Quando Gregor Mendel
(1822-1884)
demonstrou, em 1865, que as características dos descendentes
eram herdadas de gerações anteriores, contribuiu
para
que as influências biológicas se infiltrassem,
cada vez
mais, nas explicações culturais. A estrutura em
dupla-hélice do DNA, descrita por James Watson
(1928– ) e
Francis Crick (1916–2004), em 1953, materializou, no
imaginário
popular, a força de uma molécula enquanto manual
de
funcionamento da vida, sendo que seus trechos, os genes, passaram a
ser considerados seqüências que codificam um produto
funcional. As explicações científicas
deram
margem para o chamado determinismo genético, ou seja, os
genes
determinariam nossas características, que não
poderiam
ser alteradas. Esta explicação, no caso humano,
ganhou
dimensão de doutrina ao inspirar experimentos
eugênicos nazistas e
o darwinismo social, que diz que o
status social é decorrente de aspectos biológicos
e,
portanto, imutável.
Segundo
o filósofo Isaiah Berlin (1909–1997), em seu livro
A
força das idéias
(Companhia das Letras, São
Paulo, 2005), a doutrina do determinismo humano se mantém
por
dois motivos. Primeiro, seria absurdo crer que o homem é
isento das leis naturais. Segundo, o determinismo nos livra de
responsabilidade sobre nossas ações. E
é
exatamente a questão da responsabilidade social que
Inmaculada
de Melo-Martín, do Departamento de Filosofia da
Universidade de Santo Antonio (EUA), discute em seu artigo Biological
explanations and social responsability (Stud.
Hist. Phil.
& Biomed. Sci. 34, 2003). A pesquisadora afirma que o
determinismo genético dá muito poder à
biologia
e muito pouco aos nossos valores e arranjos sociais e, desse modo, o
biológico é responsabilizado pelas
injustiças
sociais.
Felizmente,
o conhecimento genético caminha no sentido de apontar uma
complexidade que vai muito além dessa
correspondência
direta entre genes e características. Genes podem dar origem
a
produtos diferentes; diversos fragmentos do DNA podem ser
responsáveis pela produção de um mesmo
composto;
os mesmos genes se comportam diferentemente em células de
tecidos distintos e podem ser ativados ou desativados; e outras
estruturas, além do DNA, desempenham papéis
fundamentais na regulação de
reações de
síntese de proteínas, como os RNAs –
que são
modificados ao longo da vida e não são
transmitidos
hereditariamente.
Direções
atuais e futuras
Atualmente,
toma força a “biologia
sistêmica”, abordagem que
considera que listar os genes de um organismo não equivale a
compreender a complexidade do sistema como um todo. Ao
contrário,
é preciso entender como eles se encaixam e interagem entre
si.
Essa abordagem surgiu como conseqüência do Projeto
Genoma
Humano, pois o seqüenciamento do genoma levou a uma vertente
exploratória em estudos genéticos. No entanto,
Charbel
El-Hani, pesquisador em ensino e filosofia da ciência do
Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
adverte que há a desconfiança de que a biologia
sistêmica não passe de reducionismo em larga
escala,
“uma tentativa de caracterizar partes de sistemas e suas
interações”. Já Evelyn Fox
Keller, autora do
livro O século
do gene (Crisálida,
Belo Horizonte, 2002), lembra que trata-se de um termo guarda-chuva,
ainda indefinido, mas que permite inúmeros tratamentos, que
não eram disponíveis durante o período
em que os
genes eram o único foco de atenção.
A
Iniciativa de Biologia
Sistêmica
(SBI, na sigla em inglês) é um exemplo das novas
investidas na genética. O projeto pretende catalogar
inúmeros
níveis de interações existentes em um
organismo
através de “análises quantitativas nas
quais
componentes de um sistema biológico interagem funcionalmente
ao longo do tempo”. Sistemas estes que são
formados por
grupos de elementos independentes, mas interligados que funcionam
juntos para compor um todo unificado.
Enquanto
a biologia sistêmica lida com o genoma como um todo, outra
nova
disciplina, a epigenética, busca apreender as
interações
entre genes e ambiente. Cláudia Rainho, do Departamento de
Genética da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de
Botucatu, lembra que o prefixo “epi” tem origem
grega e significa
“em adição a”. “O
termo epigenética
refere-se a um conjunto de fatores que atuam em conjunto com a
seqüência do DNA na
determinação da função
dos genomas em eucariotos”, explica. De acordo com a
pesquisadora,
as alterações epigenéticas geram um
“epigenoma”,
que pode ser específico para um indivíduo, um
tecido ou
até mesmo uma doença. O principal mecanismo
é a
metilação, processo químico que
“liga” ou
“desliga” os genes. Rainho acredita que o estudo da
epigenética
institui “um novo paradigma, onde a unidade
hereditária não
seria apenas a seqüência de DNA do gene, mas ele em
associação com suas
modificações
covalentes e com as modificações da cromatina
(estrutura
formada pelo DNA e proteínas que compõe os
cromossomos) que empacota o gene”.
Efeitos
epigenéticos estão sendo cada vez mais estudados,
pois
acredita-se que representem uma força evolutiva importante.
Os
mecanismos não estão de todo esclarecidos, mas
já
foi comprovado que os efeitos de alguns hábitos dos
indivíduos
durante a vida – não os hábitos em si -
podem ser
transmitidos a seus descendentes. A herança
epigenética
seria um mecanismo marcante de como fatores internos e externos
interagem para determinar efeitos nos indivíduos.
Assim,
a epigenética acabou trazendo à tona uma antiga
teoria,
há muito ridicularizada pelos biólogos, do Uso e
do
Desuso, de Jean-Baptiste Lamarck (1744–1829),
que afirmava que características adquiridas durante a vida
podem ser transmitidas para as próximas
gerações.
O exemplo clássico de Lamarck, que diz que o
pescoço de
uma girafa se estica ao longo da vida como
conseqüência de
tentar alcançar folhas no alto de árvores,
continua
desacreditado pelo conhecimento científico atual. Numa
escala
molecular, no entanto, o mecanismo de funcionamento da teoria de
Lamarck alude parece ganhar eco.
Em
dezembro do ano passado, Frank Rauscher, editor do periódico
Cancer Research
(65: 24),
comentou sobre a necessidade de iniciar um Projeto do Epigenoma
Humano (HEP, na sigla em inglês), a exemplo dos
internacionais
e gigantescos genomas. “O HEP procura definir as marcas
epigenéticas com alta resolução no
genoma,
definir suas interações e
interdependências e
determinar como alterações
não-aleatórias
do código epigenético ocorrem nas
doenças”,
explica.
O
Projeto Genoma, mais do que um fim, representou um recomeço
da
investigação sobre o complexo funcionamento de
organismos vivos. Após estudar o conjunto de nossa
informação
genética, ficou claro que, mais do que genes, somos
também
nosso ambiente, nossa sociedade, nossas decisões.
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