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Reportagem
Genes e a compreensão de ser humano
Por Germana Barata e Maria Guimarães
10/02/2006
genes humanos

“Genes explicariam traição feminina”, “Gene do cabelo rebelde e “Gene que determina a preferência sexual. Estas são algumas das manchetes produzidas pela grande mídia e que traduzem a supervalorização que os genes adquiriram, principalmente depois que os projetos genomas ampliaram-se, atingindo novas espécies de plantas, animais, bactérias e ao homem. Se, num primeiro momento, o seqüenciamento do genoma pretendia “desvendar os códigos da vida” e seqüenciar em humanos cerca de 100 mil genes, sua conclusão até desmistificou a superioridade humana frente aos outros organismos, ao revelar que nosso genoma (com cerca de 30 mil genes) difere pouco da planta Arabidopsis thaliana e que 99% dos genes têm equivalência em camundongos. Ficou exposta, assim, à opinião pública, uma gigantesca complexidade interconectada que produziu novas investidas, como no caso dos projetos proteoma e transcriptoma. E que promete outras tantas, como a Iniciativa de Biologia Sistêmica e o Projeto do Epigenoma Humano.

A busca pela compreensão do funcionamento da vida e o desejo de prolongá-la, sanar as doenças e garantir a manipulação da natureza é de longa data. Quando Gregor Mendel (1822-1884) demonstrou, em 1865, que as características dos descendentes eram herdadas de gerações anteriores, contribuiu para que as influências biológicas se infiltrassem, cada vez mais, nas explicações culturais. A estrutura em dupla-hélice do DNA, descrita por James Watson (1928– ) e Francis Crick (1916–2004), em 1953, materializou, no imaginário popular, a força de uma molécula enquanto manual de funcionamento da vida, sendo que seus trechos, os genes, passaram a ser considerados seqüências que codificam um produto funcional. As explicações científicas deram margem para o chamado determinismo genético, ou seja, os genes determinariam nossas características, que não poderiam ser alteradas. Esta explicação, no caso humano, ganhou dimensão de doutrina ao inspirar experimentos eugênicos nazistas e o darwinismo social, que diz que o status social é decorrente de aspectos biológicos e, portanto, imutável.

Segundo o filósofo Isaiah Berlin (1909–1997), em seu livro A força das idéias (Companhia das Letras, São Paulo, 2005), a doutrina do determinismo humano se mantém por dois motivos. Primeiro, seria absurdo crer que o homem é isento das leis naturais. Segundo, o determinismo nos livra de responsabilidade sobre nossas ações. E é exatamente a questão da responsabilidade social que Inmaculada de Melo-Martín, do Departamento de Filosofia da Universidade de Santo Antonio (EUA), discute em seu artigo Biological explanations and social responsability (Stud. Hist. Phil. & Biomed. Sci. 34, 2003). A pesquisadora afirma que o determinismo genético dá muito poder à biologia e muito pouco aos nossos valores e arranjos sociais e, desse modo, o biológico é responsabilizado pelas injustiças sociais.

Felizmente, o conhecimento genético caminha no sentido de apontar uma complexidade que vai muito além dessa correspondência direta entre genes e características. Genes podem dar origem a produtos diferentes; diversos fragmentos do DNA podem ser responsáveis pela produção de um mesmo composto; os mesmos genes se comportam diferentemente em células de tecidos distintos e podem ser ativados ou desativados; e outras estruturas, além do DNA, desempenham papéis fundamentais na regulação de reações de síntese de proteínas, como os RNAs – que são modificados ao longo da vida e não são transmitidos hereditariamente.


Direções atuais e futuras

Atualmente, toma força a “biologia sistêmica”, abordagem que considera que listar os genes de um organismo não equivale a compreender a complexidade do sistema como um todo. Ao contrário, é preciso entender como eles se encaixam e interagem entre si. Essa abordagem surgiu como conseqüência do Projeto Genoma Humano, pois o seqüenciamento do genoma levou a uma vertente exploratória em estudos genéticos. No entanto, Charbel El-Hani, pesquisador em ensino e filosofia da ciência do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), adverte que há a desconfiança de que a biologia sistêmica não passe de reducionismo em larga escala, “uma tentativa de caracterizar partes de sistemas e suas interações”. Já Evelyn Fox Keller, autora do livro O século do gene (Crisálida, Belo Horizonte, 2002), lembra que trata-se de um termo guarda-chuva, ainda indefinido, mas que permite inúmeros tratamentos, que não eram disponíveis durante o período em que os genes eram o único foco de atenção.

A Iniciativa de Biologia Sistêmica (SBI, na sigla em inglês) é um exemplo das novas investidas na genética. O projeto pretende catalogar inúmeros níveis de interações existentes em um organismo através de “análises quantitativas nas quais componentes de um sistema biológico interagem funcionalmente ao longo do tempo”. Sistemas estes que são formados por grupos de elementos independentes, mas interligados que funcionam juntos para compor um todo unificado.

Enquanto a biologia sistêmica lida com o genoma como um todo, outra nova disciplina, a epigenética, busca apreender as interações entre genes e ambiente. Cláudia Rainho, do Departamento de Genética da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, lembra que o prefixo “epi” tem origem grega e significa “em adição a”. “O termo epigenética refere-se a um conjunto de fatores que atuam em conjunto com a seqüência do DNA na determinação da função dos genomas em eucariotos”, explica. De acordo com a pesquisadora, as alterações epigenéticas geram um “epigenoma”, que pode ser específico para um indivíduo, um tecido ou até mesmo uma doença. O principal mecanismo é a metilação, processo químico que “liga” ou “desliga” os genes. Rainho acredita que o estudo da epigenética institui “um novo paradigma, onde a unidade hereditária não seria apenas a seqüência de DNA do gene, mas ele em associação com suas modificações covalentes e com as modificações da cromatina (estrutura formada pelo DNA e proteínas que compõe os cromossomos) que empacota o gene”.

Efeitos epigenéticos estão sendo cada vez mais estudados, pois acredita-se que representem uma força evolutiva importante. Os mecanismos não estão de todo esclarecidos, mas já foi comprovado que os efeitos de alguns hábitos dos indivíduos durante a vida – não os hábitos em si - podem ser transmitidos a seus descendentes. A herança epigenética seria um mecanismo marcante de como fatores internos e externos interagem para determinar efeitos nos indivíduos.

Assim, a epigenética acabou trazendo à tona uma antiga teoria, há muito ridicularizada pelos biólogos, do Uso e do Desuso, de Jean-Baptiste Lamarck (1744–1829), que afirmava que características adquiridas durante a vida podem ser transmitidas para as próximas gerações. O exemplo clássico de Lamarck, que diz que o pescoço de uma girafa se estica ao longo da vida como conseqüência de tentar alcançar folhas no alto de árvores, continua desacreditado pelo conhecimento científico atual. Numa escala molecular, no entanto, o mecanismo de funcionamento da teoria de Lamarck alude parece ganhar eco.

Em dezembro do ano passado, Frank Rauscher, editor do periódico Cancer Research (65: 24), comentou sobre a necessidade de iniciar um Projeto do Epigenoma Humano (HEP, na sigla em inglês), a exemplo dos internacionais e gigantescos genomas. “O HEP procura definir as marcas epigenéticas com alta resolução no genoma, definir suas interações e interdependências e determinar como alterações não-aleatórias do código epigenético ocorrem nas doenças”, explica.

O Projeto Genoma, mais do que um fim, representou um recomeço da investigação sobre o complexo funcionamento de organismos vivos. Após estudar o conjunto de nossa informação genética, ficou claro que, mais do que genes, somos também nosso ambiente, nossa sociedade, nossas decisões.