Culturas e línguas próprias expressas sem o uso da grafia: eis a matriz do dilema que envolve a questão da alfabetização indígena no Brasil. Desde as primeiras ações missionárias em território brasileiro, os objetivos de catequização e inserção dos nativos na sociedade que se formava segundo os moldes europeus eram patentes. Uma das justificativas para a necessidade de um processo civilizatório era a ausência da escrita e dos fonemas (sons) /f/, /l/ e /r/ em língua indígena, o que os fazia sem fé, lei ou rei, conforme sugere, na segunda metade do século XVI, o cronista português Pero de Magalhães Gandavo. Na política, o Marquês de Pombal, em meados do século XVIII, põe fim às ações jesuíticas em terras brasileiras, proíbe o uso da disseminada língua geral ou tupinambá e declara o português a língua oficial na colônia do Novo Mundo.
Entre os trabalhos missionários mais recentes, a partir da década de 1960, estão os do Summer Institute of Linguistics (SIL), uma instituição norte-americana que trouxe a algumas comunidades indígenas a invenção de uma escrita própria, vislumbrando o chamado “bilinguismo de transição”, considerando que o aprendizado da língua materna facilita o aprendizado de uma nova língua, nesse caso, a portuguesa. Entre os povos que fizeram parte desSa atividade estão os Kaingang, da região Sul do Brasil. Através da aplicação dessa metodologia, uma geração inteira deixou de falar sua língua materna, esclarece o professor Wilmar da Rocha D’Angelis, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A possibilidade de desaparecimento das línguas indígenas tem sido alvo de ações governamentais, de pesquisa e de mobilização das próprias comunidades indígenas, com a intenção de mantê-las vivas, seja através de processos de alfabetização bilíngue, ou da manutenção das ocasiões em que a oralidade é mais utilizada.
Encontro com os professores indígenas no Centro de Ensino e Pesquisa Timbira Pënxwyj Hëmpejxà. Foto: Odair Giraldin
A pesquisadora Maria Elisa Martins Ladeira, do Centro de Trabalhos Indigenistas (CTI), que atua junto aos povos Timbira concentrados nas regiões dos estados do Maranhão e do Tocantins, partilha da ideia de que “o que garante a vitalidade de uma língua não é ela estar sendo escrita, ter uma grafia para ela, o que garante a vitalidade dessa língua é ela estar sendo falada”. Nesse contexto, a realização dos rituais, festas e atividades cotidianas indígenas são as ocasiões de uso dessas línguas: “Não adianta você só usar a língua indígena na sala de aula. É importante que ela seja usada na sala de aula. Mas, não basta somente isso, se aquela sala de aula ocupa todo o cotidiano de uma criança indígena”, alerta Ladeira.
Entre os Kaingangs do Sul, contudo, trabalhos recentes da comunidade em conjunto com pesquisadores – com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, e do Núcleo de Cultura, Educação, Etnodesenvolvimento e Ação Ambiental Kamuri – revitalizaram a língua nativa, a partir da formação de professores indígenas e de ações como a criação, pelos próprios indígenas, do portal Kanhgág Jógo (ou Teia Kaingang), todo escrito em língua indígena.
Para D’Angelis, que compõe o grupo de pesquisadores envolvidos no projeto Kaingang, a ação é um “estímulo e prestígio à escrita”; um recurso que não deve ser utilizado com a justificativa equivocada de “preservar da oralidade”, mas sim “para fortalecer uma língua”. Por esse motivo, completa o professor da Unicamp, a escrita indígena requer que sejam formados leitores indígenas, que a partir do hábito de pensar com base no que foi escrito em sua própria língua, farão com que essa prática não precise competir com a oral, uma vez que isso só acontece quando não se conhece a utilidade da escrita e as conquistas decorrentes do seu uso.
Uma das oficinas realizadas, nos meses de junho e julho, junto à comunidade Kaingang, no Rio Grande do Sul. Foto: Wilmar D’Angelis
A formação de educadores indígenas e a produção de materiais didáticos nas línguas indígenas é uma necessidade apontada pela maior parte dos pesquisadores e dos trabalhos realizados junto às comunidades. D’Angelis afirma que isso é uma condição primordial para se fazer da língua indígena uma língua de instrução, através da qual a comunidade possa aprender o português, caracterizando uma educação escolar bilíngue.
Porém, esse processo, que pressupõe a criação de uma grafia própria, deve disponibilizar aos profissionais de educação indígena uma assessoria adequada, principalmente, de linguistas e antropólogos, para que essa ação não leve ao risco “de simplificação que a escrita pode impor a conhecimentos e formas de transmissão extremamente complexos no plano da oralidade, mas que tendem a se simplificar quando são registrados pela escrita”, alerta Luis Donisete Benzi Grupioni, secretário executivo do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé).
O governo brasileiro, a partir da Constituição de 1988, afirma a igualdade entre os cidadãos brasileiros e a garantia de direitos, entre eles o acesso à educação formal. No caso dos cidadãos indígenas, o documento assegura o aprendizado da língua portuguesa e também de sua língua materna, além de abrir espaço, pelo menos teoricamente, para o desenvolvimento de processos de aprendizagem adequados às suas características socioculturais.
A fim de fazer valer essa garantia constitucional, é possível destacar a ação de órgãos governamentais como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que têm atuado junto às questões relativas aos povos indígenas brasileiros em diferentes frentes de trabalho.
Em 1991, “a responsabilidade pela educação escolar indígena sai do âmbito federal, das mãos da Funai, e passa a ser uma responsabilidade das secretarias de educação dos estados”, esclarece Ladeira, do CTI. Desde então, o problema reside no despreparo das secretarias estaduais, apesar do MEC emitir uma série de normas e leis a respeito e da parceria fundamental mantida com a Funai “na execução, na produção dos cursos de formação de professores, bem como nos acompanhamentos pedagógicos”, aponta a pesquisadora.
Já as ações do Iphan baseiam-se na questão do reconhecimento, valorização e preservação de bens imateriais, em programas compartilhados com a Unesco, como o “da arte gráfica e dos saberes associados a essa forma de expressão dos Wajãpi”, cujo “plano de salvaguarda contempla a produção de conhecimentos desse povo, em sua língua, para uso de sua comunidade”, exemplifica Grupioni, do Iepé.
As práticas de leitura e escrita entre Yanomamis. Foto: Luis Donisete Grupioni
Entre as providências mais recentes do MEC está o Decreto 6.861, do dia 27 de maio deste ano, que trata da questão da educação escolar indígena e estabelece a sua organização em “territórios etnoeducacionais”, a partir da familiaridade linguística entre os grupos indígenas abrangidos pelo traçado – ainda não determinado – de cada um desses espaços. Esse assunto faz parte da pauta de discussões da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, que acontece entre os dias 16 e 20 de novembro, no Distrito Federal.
A proposta governamental é importante porque reconhece os intercâmbios linguísticos e culturais existentes entre os grupos indígenas e que foram negados por muitas décadas, a exemplo da ação de linguistas que, por muito tempo, se apoiaram no uso grafia enquanto garantia da fala, explica Ladeira. Com essa medida, o governo destaca a importância de se escrever na língua, mas também provoca uma reflexão que pode ultrapassar as fronteiras do Brasil, em casos como os do Guarani-Kaiowa ou dos Wajãpi que também habitam territórios de outros países, como o Paraguai e a Guiana, respectivamente. Assim, conclui a pesquisadora, em conjunto com as comunidades, pode-se criar “uma grafia que ultrapasse fronteiras”, comparada ao que vem ocorrendo com a reforma ortográfica nos países de língua portuguesa.
O fato de reconhecer “que o atendimento educacional aos povos indígenas precisa de um novo arranjo, que supere a fragmentação imposta pela divisão das unidades federativas, dos estados”, torna a proposta interessante, na ótica de Grupioni, do Iepé. Para o pesquisador, porém, ela é “insuficiente, porque na prática mesmo não muda nada. Ou seja, o pacto federativo garante total autonomia para os sistemas de ensino e esse decreto não altera isso”. Grupioni também destaca a repercussão política negativa do lançamento do decreto, “atropelando totalmente a discussão que estava sendo realizada nas bases”, referindo-se à participação de representantes das comunidades indígenas nas Conferências Regionais de Educação Escolar Indígena, que acontecem desde 2008.
A organização dessas conferências regionais e nacional partiu de uma reivindicação do próprio movimento indígena, junto à Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), na intenção de que o MEC assumisse a responsabilidade pela realização das mesmas, assegura Ladeira, do CTI. Para ela, os povos que já vinham atuando de forma articulada na questão da educação escolar indígena compreenderam que “a publicação desse decreto antes do fim das conferências, antes de ter sido discutido na conferência nacional é uma forma do governo de enfraquecer a demanda por uma educação federalizada”, que é reivindicada por algumas representações indígenas, com base nas garantias constitucionais de que têm direito ao atendimento através de órgãos federais.
A professora indígena Andila Nivaghsõn Kaingang, em seu texto intitulado “Conferência regional de educação escolar indígena: territórios etno que?”, divulgado em data anterior à publicação do decreto, demonstra sua reação diante da introdução do conceito “território etnoeducional”: “Nos preocupou, na Conferência Regional de Educação Escolar Indígena, a insistência em inserir conceitos desconhecidos no texto da proposta, a exemplo da expressão “territórios etnoeducacionais”, pois não compreendemos sua abrangência e significado, ou como diria Daniel Munduruku: isso se come com farinha? Não temos necessidade de digerir novos conceitos, bastaria o cumprimento daqueles consagrados na legislação sobre direitos indígenas, pelos quais lutamos ao longo de décadas: autodeterminação, consentimento livre, prévio e informado, direito de consulta, participação ampla, plena e efetiva, respeito à multiculturalidade, às nossas organizações sociais, a implementação de uma educação escolar indígena que seja efetivamente bilíngue, específica, diferenciada e de qualidade: a implementação desses conceitos nos é cara! Nós os elaboramos, propusemos, defendemos e obtivemos sua aprovação!”.
Dessa forma, do ponto vista prático, ao se avaliar os mais de vinte anos subsequentes à redação constitucional, percebe-se que “o Brasil inovou muito no sentido de efetivar dispositivos legais que asseguram o direito a uma educação diferenciada aos povos indígenas. Mas essa inovação jurídica não foi acompanhada de políticas que concretizassem os direitos garantidos no papel. Há muito ainda a conquistar”, conclui Grupioni.
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