A complexidade dos problemas e riscos enfrentados pela sociedade, geralmente caracterizados por fatos incertos, controvérsias, decisões urgentes e apostas elevadas, e as incertezas científicas inerentes ao conhecimento científico, às substâncias químicas e às questões ambientais têm levado pesquisadores, governantes e representantes de órgãos governamentais a refletirem sobre a necessidade de colocar em prática uma nova abordagem no enfrentamento dos riscos.
Essa nova abordagem deve levar em conta que o risco vai além de uma situação ou evento onde algo de valor humano (inclusive a vida humana) está em jogo e onde o resultado é incerto. Como é observado e mensurado dentro de um contexto, o risco e a respostas a uma situação de risco devem ser entendidos como construções sociais, já que interagem com processos psicológicos, sociais, institucionais e culturais. Os riscos são parte da experiência cotidiana e, por isso mesmo, todos os atores envolvidos podem reivindicar legitimamente a sua autoridade na definição e solução dos problemas identificados. É preciso, assim, prever a necessidade do diálogo com aquelas pessoas que vivenciam de fato os riscos que favoreça a sua participação e influência na definição dos assuntos a serem discutidos e nas decisões a serem tomadas.
Esse diálogo tem de ser permeado pela premissa de que o conhecimento leigo não é irracional e que julgamentos de valor e influências subjetivas estão presentes em todas as fases do processo de gestão de riscos, dividindo também os peritos. É preciso lembrar que para problemas complexos – como aqueles que caracterizam as situações de risco – há mais de uma solução técnica e que a opção entre elas, longe de ser exclusivamente técnica, é também política, social, cultural ou econômica.
O desafio lançado, como propõe a socióloga Júlia Guivant, está diretamente relacionado com a percepção de que as controvérsias sociotécnicas, comuns em situações de risco, devem ser vistas como oportunidades para explorar alternativas possíveis e que o interesse coletivo é produto de negociações, conflitos sociais e alianças. Está relacionado também com a prática de uma comunicação de risco que não se limite ao modelo do déficit de conhecimento, no qual os peritos comunicam os conhecimentos e suas “verdades científicas” para os leigos para evitar que estes permaneçam na ignorância e irracionalidade. Ao contrário, o enfrentamento dos riscos exige um exercício de comunicação que envolva orientações e ferramentas estratégicas para que cientistas, governantes, técnicos e comunicadores saibam como construir uma atmosfera de confiança com todos os atores sociais envolvidos.
O interesse pela comunicação de risco vem crescendo nos últimos anos e é resultado do debate que tem ocorrido nas sociedades sobre abertura do processo decisório, justiça, confiança, participação pública e democracia; temas que têm tido papel central no desenvolvimento das agendas de pesquisa e política. É resultado também da consciência de que é possível lidar de forma mais eficaz com as respostas públicas dadas ao risco se, às pessoas afetadas pelas decisões sobre riscos, é dada a oportunidade de participarem efetivamente do processo decisório, ensejando assim um processo analítico e deliberativo, no qual os efeitos da amplificação do risco são incluídos como um elemento importante nas decisões que são discutidas e tomadas. Entende-se por amplificação social do risco o fenômeno pelo qual os processos de informação, as estruturas institucionais, o comportamento do grupo social e as respostas individuais dão forma à experiência social do risco, contribuindo para suas conseqüências.
A comunicação de risco ganhou força e passou a ser considerada como algo importante na avaliação e gerenciamento do risco com o acidente de Chernobyl, ocorrido em 1986 na Ucrânia. O acidente evidenciou o despreparo das autoridades e organizações responsáveis pela segurança no enfrentamento de situações de risco e a dificuldade que os pesquisadores, sobretudo, têm em comunicar informação técnica sobre riscos ou sobre falhas nas estimativas de riscos e de abrir um diálogo com o chamado público leigo.
Entre os principais objetivos da comunicação de risco é possível destacar a promoção de um diálogo sensível às necessidades da comunidade que vivencia situações de riscos, o estabelecimento de uma relação de confiança entre comunidade, pesquisadores e autoridades e a integração do público no processo de gerenciamento do risco (promovendo, assim, a chamada governança do risco).
Apesar do avanço no debate e do reconhecimento da importância desse processo comunicativo, o tema ainda é pouco abordado em estudos científicos. Na prática, o enfrentamento dos riscos ambientais, tecnológicos e de saúde mostra que as autoridades responsáveis enfrentam dificuldades no que concerne à comunicação, haja vista as situações de catástrofes naturais recentes, como o tsunami registrado no continente asiático em 2005; os impactos advindos com as mudanças climáticas, retratados no último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no primeiro semestre de 2007; e os casos de doenças infecciosas, como a recente gripe aviária, que tem demandado maior atenção dos órgãos responsáveis pela vigilância sanitária. São situações que evidenciam a falta de estratégias para lidar com os riscos que se apresentam, a ausência de um planejamento sobre como comunicar as informações para a comunidade local e para a mídia e o uso de uma abordagem de gerenciamento de risco ainda muito técnica, desconsiderando a necessidade de obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões.
Mesmo em situações nas quais a comunicação de risco tem sido considerada como parte integrante do processo de avaliação e gestão do risco, os esforços não têm obtido grande sucesso porque falham em considerar e relacionar os diversos fatores psicológicos, sociais e políticos que estão envolvidos nas percepções e atitudes das pessoas. Esses fatores – familiaridade, controle, potencial catastrófico, equidade, nível de conhecimento, cultura, crenças, justiça, moral, participação dos interessados, legitimidade das instituições – são determinantes na superestimação ou subestimação de determinados riscos, assim como a forma como os meios de comunicação divulgam determinados riscos.
Considerar, assim, a dimensão social e a questão da subjetividade no gerenciamento do risco é fundamental para a abertura do diálogo e para a conquista da participação pública no processo decisório. O paradigma clássico da avaliação e gestão do risco ambiental – que inclui estimativas numéricas que relacionam a intensidade da poluição a potenciais riscos e medidas para reduzir as ameaças de risco à vida, à propriedade e ao ambiente – apresenta diversas deficiências. A principal delas é não levar em conta como as populações percebem e convivem com tais riscos.
Governança de risco
A discussão sobre comunicação de risco enseja a abordagem de um outro tema – governança do risco. Entende-se por governança um novo arranjo institucional no qual o processo decisório é coletivo, envolvendo atores governamentais e não governamentais. Na governança do risco, a forma como as informações são coletadas, analisadas e comunicadas estão no centro da atenção, assim como a idéia de que o conhecimento leigo não é irracional e de que os julgamentos de valor estão presentes em todas as fases do processo de avaliação e gestão de risco, por parte dos especialistas e do público.
Apesar das críticas quanto ao emprego da palavra governança (com diferentes significados e usada para diferentes situações), o termo governança do risco é adotado com base na idéia de um processo decisório democrático e participativo relacionado ao gerenciamento do risco, entendendo participação como o compartilhamento do poder decisório do Estado em relação às questões de interesse público e como condição necessária para assegurar que as instituições governamentais atuem de forma responsável perante seus cidadãos, criando possibilidades para que indivíduos e grupos influenciem as decisões que os afetam (promovendo assim competência e capacidade para isso) e contribuindo para a estabilidade do sistema democrático.
Em situações de risco, a prática de um processo decisório mais aberto e participativo, que inclua de fato as percepções, necessidades e interesses das comunidades afetadas, tem-se mostrado cada vez mais relevante. As justificativas estão embasadas na premissa de que, quanto mais envolvida estiver uma comunidade no processo decisório, maior será a possibilidade de preservação do ambiente local, maior é a possibilidade de induzir o público geral a agir individualmente ou coletivamente para reduzir o risco e maiores serão as chances de evitar que uma determinada comunidade ou local sejam estigmatizados em decorrência dos riscos que enfrenta. Os pesquisadores James Flynn e Paul Paul, autores do artigo “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos” (referência abaixo), reconhecem que, no nível prático, o envolvimento do público pode melhorar a relevância e a qualidade das análises técnicas e, sobretudo, pode aumentar a legitimidade e a aceitação pública das decisões finais.
A participação de uma comunidade na discussão dos seus problemas e na elaboração de possíveis ações também tem implicação direta no desenvolvimento de potenciais democráticos. Mesmo que os desejos e aspirações dessa comunidade não sejam plenamente alcançados no enfrentamento do risco, o fato de algumas pessoas se envolverem, participarem do debate e se unirem em modelos associativos a partir de um projeto político em comum, por si só, já é um ganho. Representa a chance de desenvolver, naquela comunidade, capacidades pessoais de análise e argumentação, o exercício de deliberação, a tolerância e a solidariedade.
Essa participação pode acontecer através de exercícios de consulta aos cidadãos (consulta pública, debate público e uso de grupos focais para definição de políticas públicas), avaliação participativa de tecnologias (com as conferências de consenso ou de cidadãos, fóruns de discussão e júri de cidadãos), desenvolvimento participativo de tecnologias, investigação participativa, entre outros. Essas formas de participação, como observa o pesquisador português Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, podem aparecer em versões que reforcem os modos hegemônicos de conhecimento e de exercício do poder político, organizadas de “cima para baixo”. Mas podem surgir também sob formas contra-hegemônicas, organizadas de “baixo para cima” com critérios mais amplos de inclusão. De todo modo, para que o enfrentamento do risco seja participativo e democrático é importante que os grupos cujos interesses são afetados e estão em pauta estejam bem representados nos processos decisórios.
No enfrentamento dos riscos, a participação dos cidadãos mais do que um direito é uma necessidade. Como são agentes conhecedores (porque convivem com os riscos e enfrentam as diversas conseqüências advindas deles), esses indivíduos são capazes de discutir os problemas e de lutar para que o poder de pensamento e ação para definir o que será feito para resolver ou mitigar os problemas que vivenciam não fique apenas nas mãos dos stakeholders da ciência, da política e da economia. Para isso, a prática de uma comunicação de risco que, de fato, considere os elementos sociais, culturais e econômicos envolvidos, parta do pressuposto de que aquelas pessoas afetadas pelas decisões devem estar envolvidas no processo de sugestões e escolhas de alternativas e instaure uma estratégia aberta e coletiva de produção de conhecimento é fundamental. É preciso, como lembra o pesquisador Boaventura de Souza Santos, construir uma rede de intervenção, na qual todas as formas de conhecimento – técnico, leigo, tradicional, local – possam construtivamente participar em função da sua relevância para a situação em causa.
Breve comentário sobre a experiência internacional no tema
Nos Estados Unidos, em situações de risco relacionadas à contaminação ambiental e exposição humana a substâncias perigosas, a prática da comunicação de risco é motivada e, geralmente, ocorre como resultado das leis e regulamentações existentes. Exemplo disso é a lei federal conhecida como Cercla (abreviatura em inglês de Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act), que criou a taxa do Superfund para ser usada para investigar e limpar sítios com resíduos perigosos abandonados ou sem controle. A lei requer, dentro dos procedimentos de avaliação de risco, que as relações com a comunidade sejam levadas em conta. Na prática, há a necessidade de haver um plano de relações com a comunidade que incorpore a obtenção de informação sobre o lugar, os interesses dos moradores em relação às ações de remediação, suas crenças e preocupações sobre o local onde vivem e métodos de comunicação que serão usados para envolver o público no processo de recuperação da área.
Na Europa, embora os países respondam de maneira particular aos diversos aspectos e gestão de áreas contaminadas, há uma concordância em alguns princípios fundamentais, como o princípio do poluidor pagador, e há também um direcionamento para a promoção de um debate mais aberto que, de fato, dê maior atenção aos conhecimentos tidos como tradicionais e às experiências locais. Países como o Reino Unido e a França já contam com legislação que estabelece como necessária a obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões em áreas de incertezas.
O Brasil, entretanto, apesar de possuir uma ampla legislação em aspectos ambientais, esta, muita vezes, não é levada a termo. Sobre áreas contaminadas especificamente, o país não tem desenvolvido uma legislação específica, recorrendo a normas legais que indiretamente estão regulando a gestão de sítios contaminados por resíduos perigosos. No caso de resíduos perigosos à saúde humana, o Ministério da Saúde aplica, desde 2002, a metodologia de avaliação de risco da Agência de Registro de Substâncias Tóxicas e Controle de Doenças (ATSDR, na sigla em inglês).
A metodologia da ATSDR inclui avaliação da informação do local, respostas às preocupações da comunidade, seleção dos contaminantes de interesse, identificação e avaliação das rotas de exposição, caracterização das implicações para a saúde e conclusões e recomendações. Segundo documento do Ministério da Saúde, ao término do estudo de avaliação de risco a equipe de investigadores, seguindo a metodologia, deve fazer uma reunião com a população, com o objetivo de transmitir todo o conteúdo dos estudos.
No caso da avaliação de risco de contaminantes ambientais, a referência no Brasil são os procedimentos adotados e divulgados pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) do estado de São Paulo. A Cetesb foi o primeiro órgão ambiental a introduzir o tema da avaliação de riscos em nível nacional e o primeiro a criar uma unidade específica para tratar do assunto. O interesse pela avaliação de risco foi motivado pelo acidente em Cubatão, em 1984. A partir daí, a Cetesb passou a incorporar estudos de análise de riscos no processo de licenciamento ambiental, visando a prevenção de grandes acidentes e, em 1990, editou o Manual de Orientação para Elaboração de Estudos de Análise de Riscos, que passou por duas revisões, em 1994 e em 2000. Apesar da relevância das orientações da Cetesb quanto à prática da avaliação e gerenciamento de risco, observa-se que no Brasil a discussão sobre comunicação de risco e sobre a necessidade de envolver a comunidade, em situações de risco ambiental, ainda é escassa.
Gabriela Marques Di Giulio é jornalista e mestre em política científica e tecnológica e é doutoranda em ambiente e sociedade, ambos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Bernardino Ribeiro Figueiredo é geólogo e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
Lúcia da Costa Ferreira é ecóloga, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Nepam.
Para saber mais:
-Brasil. 2006. Diretrizes para elaboração de estudo de avaliação de risco à saúde humana por exposição a contaminantes químicos. http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/diretrizes_%20avaliacao_%20de_%20risco.pdf - Flynn, J. & Slovic, P. 2000. “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos”. In: Gonçalves, M.E. (org). Cultura científica e participação pública. Celta Editora, Oeiras, p. 109-128. - Guivant, J.S. 2004. A governança dos riscos e os desafios para a redefinição da arena pública do Brasil. In: Ciência, tecnologia + sociedade. Novos modelos de governança. Brasília, 06 a 11 de dezembro. http://www.nisra.ufsc.br/pdf/A%20governa%5B1%5D...pdf - Kasperson, R. et al. 2005. “The social amplification of risk: a conceptual framework”. In: Kasperson, J. & Kasperson, R.. The social contours of risk: publics, risk communication and the social amplification of risk. London: Earthscan. p. 99-114. - Santos, B.S.(org). 2005. Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
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