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Editorial
Geografia do país da infância
Por Carlos Vogt
10/12/2005
Geografia do país da infância

A infância é um país que não existe, de onde fomos exilados e para onde todos queremos voltar.

É mais ou menos isso o que escreve Cesare Pavese (1908-1950) sobre essa utopia regressiva, como são todas as utopias, situada entre a realidade cronológica de nossa existência e a fantasia cíclica de nosso imaginário e de nossas recordações.

Nesse sentido, penso que os países, e, mais que os países, as nações, que são feitas das pessoas, da educação e da cultura que nelas e com elas vivem e convivem, de sua humanidade e de seu humanitarismo, enfim, penso, pois, que esses territórios de vida material e espiritual têm também infância e desejos de retorno.

Na infância do Brasil há um traço persistente de nossa identidade cultural e um chamamento constante ao seu uso e menção para a individuação do caráter nacional.

Trata-se do famoso jeitinho brasileiro já tão escondido e tão cantado em prosa e verso e hoje, ao menos em parte das elites tecno-progressistas que por aqui gorgeiam como lá, um tanto malvisto e excerado em textos assépticos de puro “globalês”, ainda que escritos em português e, no mais das vezes, em porto-inglês.

Esse traço liga-se a um outro, também de forte presença na expressão da matriz genética de nosso modo de ser: a cordialidade. Apontada por Sérgio Buarque de Holanda no seu papel distintivo do ser brasileiro, a cordialidade passou também, com os anos, por um processo de desconstrução qualificada, ou de desqualificação construtiva de tal maneira que hoje, mesmo entre intelectuais e estudiosos da brasilidade, o homem cordial anda desprestigiado e sem jeito.

A esses dois traços soma-se um terceiro o da malandragem e com os três pode-se dizer que se obtém uma célula do embrião da infância de nossa identidade, às vezes confundida com a identificação de nossa infantilidade.

O jeitinho está ligado à nossa proverbial criatividade e à busca de soluções rápidas de problemas de várias ordens. Contrapõe a eficácia do atalho e do desvio à morosidade do estabelecido e do burocrático. É no limite, um expediente ingênuo para resolver uma complicação problemática. Ao menos na infância da persona social que ele ajuda a configurar.

Durante muito tempo, esse traço teve, pois, um sinal positivo de distinção. Correspondia, àquele outro predicado de nossa identidade, já referido acima, o da malandragem.

Assim como a malandragem, até certo ponto romântica e estruturada na tensão da dialética da ordem e da desordem, como mostra Antonio Cândido na análise seminal de Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antonio de Almeida, evoluiu para o banditismo na nova ordem global, o jeitinho, também por injunções econômico-político-sociais, evoluem para o “por fora”, para a corrupção.

Ambos os traços perderam a aura. Mantiveram ou mesmo aumentaram sua eficácia mas já sem o apelo ético da convivenciabilidade social dos atores nos jogos de antagonismos que eles põem em funcionamento.

Desfez-se também a regra constitutiva desses jogos de convivência: a cordialidade que remetia à caracterização de comportamentos emocionais, impulsivos, para o bem e para o mal, passou a ser entendida como marca de pieguismo e característica, agora, de comportamentos só emocionados.

Desse modo, a paixão, presente na cordialidade ancestral, ou na infância de nossa ancestralidade cultural, cede lugar ao sentimentalismo vulgar da bondade boba e retórica, cuja facilidade expõe o seu formalismo e a frieza das relações que estabelece. Penso também que o ideário da auto-ajuda tem a ver com essa transformação da paixão da cordialidade na cordialidade desapaixonada e complacente da esperteza como expediente de exacerbação da competitividade individualista em suas características mais locais, dentro do processo de globalização.

Como nesse sentido metafórico a infância é utópica, acredito também que é preciso recuperar o ponto de ruptura desses valores e redirecionar esses predicados para a sua positividade, importância e distinção na identidade e na cultura brasileiras: visitar a infância da terra não como turista da simples curiosidade, mas como viajante de si mesmo no estranhamento constante da descoberta do outro.