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Editorial
Tecnociências da esperança
Por Carlos Vogt
10/02/2016
No livro O rato, a mosca e o homem, François Jacob termina suas análises e reflexões com uma avaliação importante e uma inquieta profecia. A avaliação é sobre o século XX, que terminou; a inquietação, sobre o século XXI, que agora se desenrola. Diz ele: “Somos uma temível mistura de ácidos nucléicos e lembranças, de desejos e de proteínas. O século que termina ocupou-se muito de ácidos nucléicos e de proteínas. O seguinte vai concentrar-se sobre as lembranças e os desejos. Saberá ele resolver essas questões?”. É cedo para responder, mas provavelmente não. O que não quer dizer que não se continuará a buscar respostas e que o conhecimento deixará de caminhar em sofisticação e entendimento do homem, do mundo e das intrincadas e complexas relações entre eles.

Muitos apontam, no século XX, três grandes marcos do avanço do conhecimento científico e tecnológico: o Projeto Manhattan que produziu também a bomba atômica, o programa espacial que, em 1969, levou o homem à lua, embora parcela significativa da população do planeta continue a duvidar do feito e, mais recentemente, o Projeto Genoma Humano, além dos que se seguiram sobre outros seres vivos, animais e vegetais, do genoma do câncer e de outras patologias que afligem a humanidade.

A tecnologia do sequenciamento de genes foi aperfeiçoada e seus resultados acelerados graças a outra tecnologia contemporânea, a da informação, que permitiu, pela agregação de conhecimento de diferentes áreas, entre elas a da biologia molecular, o desenvolvimento da bioinformática. De outro lado, esse ponto de relevo dos estudos biológicos encontra respaldo numa história um pouco mais antiga, que remonta, no século XVIII a Pierre-Louis de Maupertuis e, no século XIX, a Darwin, com a publicação de A origem das espécies, e a Gregor Mendel, considerado o pai da genética, que publica Experiências sobre hibridação de plantas, seus estudos fundadores sobre a transmissão de características de ervilhas de uma geração para a outra, dando, assim, nascimento à formulação de leis gerais da hereditariedade.

Em 1953, só para citar outra data de referência importante para as pesquisas genéticas e para os futuros estudos da genômica, Watson e Crick realizam a descoberta do DNA e a dupla hélice da representação de sua estrutura passa a girar e a gerar a dinâmica dos estudos da vida, traçando para a biologia o caminho de seu ingresso no universo das chamadas ciências pesadas, que lidam com a quantificação do conhecimento e, para tanto, necessitam da materialidade conceitual e metodológica de seu objeto. A materialização dos genes, nesse sentido, é um passo fundamental não só para a multiplicidade de campos de atuação da genética, para as áreas de fronteira abertas com o seu desenvolvimento, como também para a ambição de estabelecer leis gerais determinantes do comportamento animal e do comportamento humano assentadas sobre bases naturais mais do que culturais, tendendo, em alguns casos, a ver a própria cultura como determinação da natureza biológica do ser vivo.

De certo modo, isso é o que caracteriza a sociobiologia nascida nos anos 1970 com os trabalhos de Wilson e os estudos comparados do comportamento humano na área de etologia, realizados por Konrad Lorenz, que serviram de inspiração a Wilson e nos quais apresenta a evolução do homem em termos de tendências inatas submetidas à seleção por influência do meio ambiente.

Quando se fala em comportamento humano, no caso da sociobiologia, não se quer referir apenas aos que dizem respeito às funções vitais de reprodução, mas também àqueles que dizem respeito à política, à ética, à estética e assim por diante, abrangendo todos os domínios das relações e dos relacionamentos sociais do indivíduo. A sociobiologia, com todos os problemas científicos com que se apresenta e as dificuldades daí decorrentes para seu reconhecimento no mundo da ciência, além das resistências culturais e ideológicas que provocou e que continua provocando, é a expressão concreta da tendência que, no conhecimento, busca, se assim se pode dizer, a naturalização da cultura ou do que, tradicionalmente, é visto como cultural.

Nas palavras de Wilson:

As principais teses da sociobiologia são fundadas no estudo de uma miríade de espécies animais e resultam de centenas de investigações em diversas disciplinas biológicas. Foi, assim, possível, pelos métodos tradicionais dos postulados e de dedução da ciência teórica, derivar proposições e testar muitas delas por meio de estudos quantitativos.

Contudo, como bem observa Jacques G. Ruelland, no livro O império dos genes,

Os estudos quantitativos de que fala Wilson não provam a existência de genes. A sociobiologia passa arbitrariamente da ordem dos dados matemáticos para a da homologia entre as estruturas de organização social dos insetos e as dos humanos, supondo que efeitos similares têm necessariamente uma única e mesma causa: a presença de genes comuns aos animais e aos humanos. Os sociobiologistas buscaram esse procedimento nos etólogos.

O fato é que o surgimento da genética, termo cunhado em 1905 por William Bateson, consolida a tendência dominante no século XX da formação de novas áreas do conhecimento por agregação de áreas existentes e não pela particularização e fragmentação de antigos domínios teóricos da ciência tal como ocorreu de maneira significativa ao longo de todo o século XIX. E tal como ocorreu, epistemologicamente, para a constituição da genética, continuou a ocorrer com seu desenvolvimento e com a formação subsequente de vários novos domínios fronteiriços e multidisciplinares do conhecimento, entre eles aquele do campo complexo e fascinante das neurociências ou o da própria sociobiologia, ainda que com suas dificuldades teóricas e metodológicas que acabam de ser mencionadas.

Os genes estão por toda parte na ciência, na cultura, no imaginário, na arte, na ficção. Prometem e ameaçam, empurram e provocam a psicanálise, acenam com a cura, com a longevidade, com a perenidade do prazer da vida; brandem, ao mesmo tempo, a perfeição, como uma clava doce e terrível de mesmice e desprazer com a existência. À fascinação, com a busca dos determinismos biológicos de nossos comportamentos sociais, opõe-se o medo da manipulação genética do código da vida. Entre as duas pontas, a distância deve ser medida pelo alcance de nossa curiosidade e pelo limite de nosso alcance.

Ao sentido da vida, ao destino do homem, a poesia, a religião, a metafísica têm algo a dizer, mesmo que nelas nada se encontre da materialidade com que é investido o gene em seu protagonismo científico contemporâneo. Como diz Jacob, “nenhuma ciência pode trazer respostas a tais perguntas”. O que não quer dizer que a ciência não deva continuar perguntando, de forma sistemática, o que pode responder e que está ao alcance dos limites do conhecimento científico, que estão longe de serem atingidos, como prova a grande revolução causada pelos estudos genéticos de Mendel quase um século e meio atrás e os cenários “ilimitados e periódicos”, como da biblioteca de Babel, de Borges, que continuam a se descortinar para o conhecimento científico da vida e seus semelhantes.

Parece um contrassenso de redundância falar em utopias virtuais como se alguma forma de utopia pudesse ser real, já que o termo designa, pelo significado etimológico, um lugar que não existe e que, por não existir, nos atrai com o fascínio de promessas impossíveis de serem, na realidade, realizadas.

Na contemporaneidade, fomos nos habituando com um conjunto de novas expressões, todas procurando apreender e comunicar as características mais marcantes do mundo que emergiu da globalização total da economia, cujos últimos obstáculos ruíram com o Muro de Berlim, em 1989, e de cuja ruína nasceu prematuramente o século XXI. Assim, sociedade da informação, sociedade global da informação, economia do conhecimento, sociedade do conhecimento, são expressões que se equivalem, pertencem ao mesmo paradigma, e se não recobrem exatamente os mesmos significados, têm, em comum, contudo, a aspiração retórica da igualdade social, agora articulada na figura do igualitarismo do acesso à informação.

De que é feita essa retórica? Entre outras, de expressões como: novo paradigma tecnoeconômico, resgatar a dívida social, alavancar o desenvolvimento, constituir uma nova ordem social, excluir a exclusão, economia baseada na informação, no conhecimento e no aprendizado, onda de destruição criadora, evitar que se crie classe de infoexcluídos, alfabetização digital, fluência em tecnologias de informação e comunicação (TICS), aprender a aprender, inclusão social como prioridade absoluta, democratização dos processos sociais pelas TICS, vencer a clivagem social entre o formal e o informal, agregar valor, redes de conteúdos que farão a sociedade se mover para a sociedade da informação, igualdade de oportunidades de acesso às novas tecnologias, condição indispensável para a coesão social no Brasil ...

Há mais, mas o que aí está ilustra essa retórica da virtualidade igualitária que vai tecendo a cultura em que florescem as utopias virtuais, uma cultura da qual a juventude se apropria, transforma em território de ocupação. As utopias virtuais não são tristes, nem são alegres. Tendem antes a ser chatas e aborrecidas com seus mantras de autoajuda e de ajuda autômata, tentando compensar pelo virtual uma igualdade meio abstrata, meio de artifício, que não se dá na realidade.

Um dos maiores feitos do mundo informatizado foi o de tornar-se difuso, porque difundido, oferecendo as condições técnicas e tecnológicas para que dele se desenvolvesse, em nós, uma percepção feita de simultaneidade pura, abolindo as distâncias dos acontecimentos, no tempo e no espaço, reduzindo e amplificando a dimensão do simbólico, de modo a confundir a coisa representada com sua representação coisificada em simulacro, agora independente do próprio ato de representar.

Uma das características marcantes da globalização torna-se efetivamente realizável pelo desenvolvimento das TICS e consiste da livre circulação do capital financeiro, capaz de migrar com mobilidade incrível de uma praça de mercado para outra, num piscar de olhos, em busca de condições sempre mais favoráveis a seu ganho e a sua multiplicação, o que, em contrapartida, possibilita também que condições desfavoráveis, sobretudo em países centrais, logo reflitam crítica e, às vezes, catastroficamente, na periferia.

Por isso, o bater das asas da borboleta nos Estados Unidos pode provocar terremotos econômicos no mundo ou, ao menos, abalos sísmicos, no equilíbrio econômico do planeta. Se a borboleta bater as asas na China, podemos estar certos de que hoje a Terra treme também. E, dependendo de baterem por júbilo ou desespero, viveremos todos, mesmo estando do outro lado dos oceanos, a euforia ou a disforia dos acontecimentos distantes, às vezes numa ciclotimia de estados antagônicos capaz de pôr as sociedades planetárias em ritmo de psicopatologia bipolar.

O mundo globalizado, conectado, ligado na, e pela teia, de informação e comunicação tecida pela internet é, assim, quando não aborrecido e chato, um mundo ágil e instantâneo que se oferece sob a forma da alegria fugaz e da fugacidade alegre da percepção do tempo e do espaço como só presente, numa geografia de aproximações na qual o viajante não se move, mas, no entanto, viaja, sem sair do lugar. A esse mundo planificado, no sentido de tornado plano e no sentido de planejado ao extremo, é preciso oferecer conteúdos que adensem a superficialidade das imagens penduradas em si mesmas e quebrem o ritmo monótono de ordenamento de mesmice e desencanto.

As facilidades de comunicação e de circulação da informação oferecidas pela rede global de computadores abre possibilidades reais de programas e projetos culturais e de educação antes não imaginados e sequer vislumbrados. Poder pensar na oferta de educação formal pública e gratuita, com e pela utilização intensiva das TICS, põe-nos diante de uma nova concepção da escola, com uma nova geografia estendida, alargada, socialmente distribuída e que, dessa maneira, permite, com propriedade, falar de uma boa utopia virtual com os pés na realidade.


 Este texto, com exceção do título, constitui a parte VI do ensaio “A quem pertence o conhecimento?”, do livro A utilidade do conhecimento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015. Foi, originalmente, publicado aqui, na ComCiência, n. 64, abril, 2005.

 JACOB, François. O rato, a mosca e o homem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 E.O. Wilson, Academic Vigilantism and the Political Significance of Sociobiology, em A.L. Caplan (ed.), The sociobiology debate, p. 291-303.

 J.G. Ruelland, L’Empire des genes, p. 36.

 F. Jacob, op. cit., p. 151.