Sempre ouço de minha esposa uma provocação quando ela está cuidando de minhas unhas: se reclamo de suas estocadas em meus pobres dedos ela diz que todos os homens são muito moles e que eles são assim porque foram mimados por suas mães. Ela aproveita também para lembrar que as mulheres foram selecionadas pela evolução para enfrentarem a terrível dor do parto e que por isso elas suportam muito mais outros tipos de dor que nós homens. Seria isso verdade ou apenas mais um mito?
Bem, vamos inicialmente estabelecer o que é especificamente a dor e quais são os propósitos dessa manifestação no mínimo incômoda de nosso sistema nervoso.
O que é a dor
A palavra dor originou-se a partir do termo latino poena que significa punição. Nas sociedades antigas, a dor, se não fosse ocasionada por algum motivo aparente, como uma queda, por exemplo, era atribuída à invasão do corpo por maus espíritos como punição dos deuses por algo que algum incauto antepassado nosso tivesse feito. Acreditava-se que o coração e os vasos sangüíneos seriam, além dos locais onde sentíssemos o amor e a paixão, também o destino das sensações dolorosas. Talvez, por isso tenha surgido a expressão “coração partido” para definir as dores de amores não correspondidos.
A conceituação moderna da dor foi empreendida, em 1986, pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (Iasp) como uma “experiência sensorial e emocional desagradável que é associada a lesões reais ou potenciais ou descrita em termos de tais lesões".
A dor é uma resposta do nosso sistema nervoso periférico a estímulos nocivos provenientes do meio externo e/ou interno. É um sinal de alerta e um meio de preservamos o nosso bem-estar. Esses estímulos indicam ao nosso corpo que algo está errado e que providências devem ser tomadas para se evitar risco para o nosso organismo.
Terminações nervosas nociceptivas (relacionadas com a percepção de sensações nocivas ou dolorosas) distribuídas por todo o nosso organismo mediam as respostas a sensações de risco. Essas terminações nervosas possuem receptores que são ativados por estímulos mecânicos, térmicos e químicos liberados por células danificadas e atacadas por patógenos ou ainda liberados por células de defesa como neutrófilos, macrófagos etc.
A estimulação desses receptores gera uma onda de descarga elétrica conhecida como potencial de ação que se propaga ao longo da membrana plasmática dos prolongamentos celulares (denominados axônios) desses neurônios sensitivos ou aferentes até alcançar os centros de processamento da informação recebida no Sistema Nervoso Central (SNC). Nesses locais irá ocorrer o processamento e análise da informação recebida e poderá ser reenviado de volta um sinal através de outro grupo de neurônios, conhecidos como motores, para que providências sejam tomadas. Entre as medidas adotadas poderão estar, por exemplo, a movimentação consciente ou não de grupos musculares específicos ou a modulação da ação de algumas células.
Há dois caminhos para o transporte das informações coletadas pelos neurônios sensitivos. Uma via rápida, surgida mais recentemente em nossa história evolutiva, que utiliza neurônios (conhecidos como fibras A-Delta) com axônios de grande diâmetro envoltos em mielina. Esses prolongamentos nervosos são capazes de gerar potenciais de ação rápidos (cerca de 12-30 m/s) após serem submetidos a estímulos mecânicos ou térmicos. Esses axônios sensitivos geram sensações de dor aguda e bem localizada. Quando, portanto, minha esposa inadvertidamente perfura meu dedo com o seu alicate de unhas, os receptores de dor desse local em uma fração de segundo informam ao meu cérebro dos “perigos” que minhas extremidades andam correndo e rapidamente movo o meu pé para longe do alicate e grito desesperado!
Mesmo animais primitivos como as medusas e anêmonas (Filo Cnidaria), onde pela primeira vez foi verificado o surgimento de um sistema nervoso primitivo e difuso, respondem a perturbações rapidamente através da fuga ou do disparo de células urticantes em seu agressor. Porém, desconhecemos ainda se animais sentem dor ou não.
Estímulos químicos, por outro lado, são propagados por via lenta (0,5-2 m/s) através de neurônios (fibras C) cujos axônios não estão envolvidos por mielina. Essa forma de condução mais primitiva evolutivamente possui fibras que conduzem impulsos sentidos como uma dor mal localizada, difusa e contínua.
Substâncias conhecidas como algogênicas produzidas por tipos celulares presentes no local afetado ou a nível dos centros nervosos são responsáveis pela modulação da sensação dolorosa produzida a nível neuronal. Dentre as moléculas algogênicas estão a acetilcolina, as prostaglandinas, a histamina, os leucotrienos, a somatostatina, as encefalinas e os íons potássio. Dores crônicas são mais comumente sentidas que sensações dolorosas agudas. No Brasil problemas locomotores são os principais motivos de queixas de dor, sendo as lombalgias citadas por cerca de 70% das pessoas como causa de dores freqüentes. Cefaléias, enxaquecas, traumatismos, dores abdominais e artrite são também comumente citadas pela população e há, claro, um aumento das queixas com o avanço da idade. Estima-se que 80% a 85% dos indivíduos com mais de 65 anos apresentem pelo menos um problema significativo de saúde que os predisponha a apresentar dor.
Sentindo dores de forma diferente
A eficácia dos procedimentos de combate a dor (denominados de analgesia) depende de vários fatores relacionados com o próprio paciente (experiências pregressas com o mesmo tipo de sensação dolorosa, o estado de humor, o apoio de familiares etc.), com as características da droga utilizada e com a natureza do próprio estímulo doloroso.
Diferenças entre homens e mulheres em relação à sensibilidade a dor também são citadas, porém não há consenso em relação a essas disparidades. Não há dúvidas de que homens e mulheres possuem experiências diferentes em relação à dor. Pesquisas conduzidas pela equipe do psicólogo Ed Keogh da Universidade de Bath, na Inglaterra, têm mostrado que mulheres reportam um maior número de eventos relacionados com sensações dolorosas do que homens. Comparadas conosco, as mulheres sentem dores em um número maior de regiões de seus corpos, além disso, elas padecem dessas sensações por períodos de tempo mais prolongados.
Segundo esse ponto de vista, haveria, portanto, certo sentido na afirmação de minha esposa (embora eu não queria admitir isso para ela!) de que como muitas mulheres padecem, além das dores agudas do parto, de dores periódicas de origens diversas (causadas, por exemplo, por cólicas menstruais), elas teriam uma maior capacidade de resistir a estímulos dolorosos.
Contudo, em outro experimento conduzido pelo grupo de Keogh, após ter-se solicitado que mulheres e homens permanecem com os braços submersos em água gelada, observou-se que elas apresentaram limiar de dor baixo e menor tolerância à dor do que homens. Nesse experimento também foi observado que há uma grande sobreposição entre as áreas que são ativadas em reposta a dor e ao estresse em ambos os sexos. Porém, os centros límbicos femininos, responsável pelas emoções, se tornam ativos além dessas áreas sugerindo que as mulheres têm maior probabilidade de ter respostas emocionais à dor e estresse. Algo que talvez esteja associado com o papel tradicional das mulheres de cuidar de outras pessoas.
Outro estudo, coordenado por Frédéric Aubrun do Hospital Pitie-Salpetriere da Universidade Pierre e Marie Curie em Paris (França), também reforça os dados obtidos pela equipe de Keogh. Nesse experimento, que amostrou cerca de 4 mil pacientes, foi observado que mulheres necessitam de doses maiores de anestésicos após procedimentos cirúrgicos do que homens.
A Equipe de Aubrun também notou em seu estudo que essa necessidade de analgesia, inicialmente bastante diferente entre os sexos, torna-se menor entre homens e mulheres idosos.
Acredita-se que parte da percepção da dor seja dependente de diferenças genéticas e bioquímicas entre os sexos. Segundo Keogh, a presença de hormônios sexuais femininos e masculinos afeta a forma como as pessoas sentem a dor. Mulheres freqüentemente apresentam repostas distintas a estímulos dolorosos em fases diferentes de seu ciclo menstrual. Grávidas que possuem níveis elevados de progesterona apresentam uma maior resistência à dor.
Fatores psicológicos, culturais e sociais não podem ser ignorados quando se analisa a resistência à dor. Enquanto que as mulheres normalmente irão apresentar uma resposta emocional negativa quando submetidas a sensações estressantes como a dor, os homens irão focar sua atenção apenas na sensação. Isso, portanto, explicaria a maior resistência do sexo masculino à dor.
A herança genética, apesar de preterida por estudos fisiológicos, se constitui em uma ferramenta útil para se definir diferenças individuais quanto à sensibilidade a estímulos dolorosos. Recentemente, por exemplo, foi descrita por pesquisadores da Universidade de Cambridge (Inglaterra). Esses pesquisadores liderados por Geoff Woods descobriram, após estudos em uma família indiana, que uma mutação no gene SCN9A abolia totalmente a ocorrência de sensações dolorosas em seus portadores. O SCN9A produz um tipo de canal de sódio, fundamental para a transmissão de informações de dor entre neurônios.
Está bem estabelecido pela ciência que tanto o limiar quanto a intensidade na qual sentimos dor variam de uma pessoa para outra. Há relatos de que alguns pacientes necessitam de doses maiores do que o normal para aplacar as suas dores enquanto que outros indivíduos conseguem uma analgesia utilizando apenas placebo.
Durante seus trabalhos para definir a dor, os especialistas da Iasp fizeram questão de deixar claro que a dor é sempre subjetiva e que cada um de nós utiliza esse termo através de suas experiências próprias. Segundo esse conceito não haveria, portanto uma relação direta entre lesão tecidual e dor que seria experimentada em decorrência da vivência de cada indivíduo.
É provável que tenhamos dentro da população homens pouco sensíveis a dor e mulheres muito resistentes aos sofrimentos causados pelas sensações dolorosas. Tudo dependeria da história de cada um e das características da vida da pessoa no momento em que foi submetida aos estímulos dolorosos.
Assim, poderei falar para a minha esposa que nós homens somos em geral mais resistentes à dor do que as mulheres e se reclamo de suas incursões em meus dedos é apenas porque temo sofrer uma hemorragia devido a sua inabilidade como manicure!
Jerry Borges é professor da Universidade Estadual de Minas Gerais.
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