Na área da saúde, não é novidade que a ciência tem sido fundamental para garantir qualidade de vida e maior longevidade às pessoas. No decorrer dos últimos anos, avanços nas diversas modalidades da medicina, advindos de um maior conhecimento do funcionamento do corpo humano, do descobrimento de novas drogas e procedimentos, têm garantido tratamentos de antigas e novas doenças. Da mesma forma, a pesquisa básica em algumas áreas da biologia trazem potencial de futura aplicação para tratar doenças como a diabetes e o câncer, como é o caso das pesquisas com células-tronco. Até mesmo pesquisas em áreas como a física, aparentemente não relacionadas com a medicina, resultam em avanços nos diagnósticos e tratamentos, como os equipamentos de tomografia computadorizada e PET Scan (Tomografia por Emissão de Pósitrons, em português). Isso sem falar das nanotecnologias que, espera-se, ainda terão importante papel no desenvolvimento de drogas e tratamentos mais eficientes.
Entretanto, a melhora na qualidade de vida é mais do que a somatória dos avanços na área científica. Ela também é fruto dos progressos políticos, econômicos, sociais e ambientais que ocorreram no último século. Em muitos países, porém, tais melhoras não atingiram a população de forma homogênea. No Brasil, por exemplo, país de grande desigualdade social, a qualidade de vida da população com menor poder aquisitivo é muito diferente da oferecida para as camadas média e alta. E isso porque quando se fala de qualidade de vida em saúde, outros fatores como violência, alimentação, condições de trabalho, saneamento básico, doenças infecciosas relacionadas à infraestrutura e acesso ao atendimento médico-hospitalar, devem ser levadas em consideração. Como explica Paulo Marchiori Buss, em seu artigo “Promoção da Saúde e Qualidade de Vida”: “Particularmente em países como o Brasil e outros da América Latina, a péssima distribuição de renda, o analfabetismo e o baixo grau de escolaridade, assim como as condições precárias de habitação e ambiente têm um papel muito importante nas condições de vida e saúde”.
As diretrizes dos órgãos mundiais ligados à saúde procuram compreender as diferentes variáveis que integram a complexa malha que envolve saúde e qualidade de vida no planeta. Ainda em 1986, por ocasião da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, foi produzida a Carta de Ottawa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), referência para todas as conferências da área desde então. Este documento traz as ideias que servem como base para o entendimento do que é saúde, dentro dos valores atuais – dando seguimento ao movimento que foi se desenvolvendo desde o Informe Lalonde , produzido em 1974, no Canadá, e que foi o primeiro documento tratando a saúde pública de maneira abrangente. Entre as ideias desenvolvidas na Carta de Ottawa, Paulo Buss nos remete às noções de cinco campos centrais de ação: as políticas públicas saudáveis, reconhecendo que as políticas públicas, em qualquer nível de governo, podem ser favoráveis ou desfavoráveis à saúde; a criação de ambientes favoráveis à saúde, reconhecendo a importância do meio ambiente na saúde; o reforço da ação comunitária, que assinala o papel da informação e participação da comunidade no processo; o desenvolvimento de habilidades pessoais, que se baseia na importância, novamente, da informação, e das atitudes pessoais; e a reorientação do sistema de saúde, que pretende modificar o modelo centrado na doença como um fenômeno individual.
No Brasil, além das péssimas condições de saúde de pessoas vivendo em situações de pobreza e risco, a prevalência de grande desigualdade na sociedade é um fator que ameaça a qualidade de vida da população em seu conjunto, como argumenta Paulo Buss. Em relação a isso, ele adverte, em outro artigo, “Países com grandes iniquidades de renda, escassos níveis de coesão social e baixa participação política são os que menos investem em capital humano e em redes de apoio social, que são fundamentais para a promoção e proteção da saúde individual e coletiva”. Assim, segundo Buss, devido às iniquidades e à pobreza, o Brasil carrega um fardo duplo na busca de melhorar a qualidade de vida em saúde da sua população.
O SUS e a busca pela equidade em saúde
Em relação às políticas em saúde, o Brasil se coloca como um país que apoia a participação do Estado para garantir a saúde, como um direito, a seus cidadãos – garantido em sua Constituição. Desta forma, em 1988 foi criado o SUS, ou Sistema Único de Saúde. A ideia era conferir acesso à saúde a todos os brasileiros, de forma inclusiva, semelhante às premissas igualitárias do Estado de bem-estar social europeu, como explica o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Octávio Ocké-Reis. Entretanto, Ocké-Reis argumenta que apesar de seus mais de 20 anos de existência, o SUS encontra-se ainda em construção, ou seja, “o Estado enfrenta dificuldades para materializar o direito social constitucional do acesso universal e integral de atenção à saúde”. E isso se reflete na lógica de mercado que se instalou e pontua a relação do Estado com os planos de saúde privados e com o próprio SUS.
Segundo Ocké-Reis, existem muitas contradições dentro do SUS, e uma delas é o fato do sistema de saúde brasileiro ter como característica a concorrência entre o público e o privado. “Parte dos cidadãos pode ser coberta por planos privados de saúde e, ao mesmo tempo, utilizar os serviços do SUS, resultando na dupla cobertura para aqueles que podem pagar ou podem ser financiados pelos empregadores: trabalhadores de média e alta renda, executivos e funcionários públicos”, diz. Ocké-Reis ainda chama a atenção para a falta de democratização das instituições que regulamentam os médicos liberais e os prestadores de serviço de hospitais privados – além do patrocínio oferecido aos planos de saúde particulares, desde de 1968, através do financiamento público em forma de isenção fiscal. Para o pesquisador do Ipea, a escolha de um modelo semelhante ao modelo norte-americano na gestão da saúde acabou por aumentar sua segmentação e privatização, aumentando também a diferença no atendimento da população.
Ocké-Reis acredita que a forma de garantir o direito à saúde, presente na Constituição brasileira, deve passar pelo estancamento dos incentivos financeiros do Estado ao setor privado, em direção à democratização da saúde. Tal ação aumentaria a receita para o gasto público em saúde no Brasil. Nesse sentido, o pesquisador também recomenda a criação de uma fonte financeira estável para o setor da saúde, reforçando a importância da aprovação da regulamentação da Emenda 29 e a Contribuição Social da Saúde. Embora ele reconheça que a alíquota de 0,1% é insuficiente para resolver os problemas de financiamento do SUS.
Saúde, violência e envelhecimento
Assim como as desigualdades sociais e a pobreza influenciam o bem-estar da sociedade de forma abrangente, a questão da violência também é importante para a saúde e a qualidade de vida – e vem ganhando espaço nas discussões atuais sobre o tema. “ O Brasil ocupa hoje o quarto lugar no ranking da violência na América Latina, depois de Colômbia, El Salvador e Venezuela”, explica Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Além disso, como explica Minayo, no Brasil a violência é a terceira causa de mortalidade geral, e a primeira causa nas faixas etárias de 5 a 49 anos. “Nos casos que exigem internação, a violência, as lesões e os traumas ocupam o sexto lugar de importância, mas consomem mais recursos públicos que os tipos de hospitalização por enfermidades”, diz.
Segundo Minayo, por se tratar de um fenômeno sócio-histórico, a violência no Brasil não é tratada como uma questão de saúde pública ou da medicina. Mas, como alerta a pesquisadora, a violência afeta fortemente a saúde, e os fatores que ela enumera para justificar são: morte, lesões, traumas físicos e diversos agravos mentais, emocionais e espirituais; diminuição da qualidade de vida das pessoas e das coletividades; exigência de uma readequação da organização tradicional dos serviços de saúde; novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo – além de evidenciar a necessidade de uma atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, intersetorial e engajada do setor, visando às necessidades dos cidadãos. “ Nos últimos anos o setor saúde introduziu o tema em sua pauta, consciente de que pode contribuir para sua discussão, prevenção e cuidados”, diz.
Tendo-se em vista que o grupo que mais morre por violência no país são os jovens de 15 a 29 anos , um grupo que vem crescendo em relevância, conforme vem aumentado em número, é o da população idosa. Segundo Minayo, a população de idosos brasileiros já passa de 20 milhões de pessoas – e, de acordo com as previsões do IBGE, a tendência é de que continue a crescer. “ Os traumas e lesões que ocorrem nos transportes são a principal causa violenta de mortes nesse grupo etário (mais de 25%), e as quedas são a principal causa de internação (61% do número de internações provocadas por violências)”, diz a pesquisadora. Segundo ela, esses dados têm tido bastante repercussão nos setores de saúde e direitos humanos, uma vez que, em muitos casos, essas lesões são causadas por negligência familiar, do poder público ou dos cidadãos nos espaços públicos.
Outro fator que merece destaque é o bem-estar psicológico desse grupo social. “Hoje consideramos muito preocupante que as taxas de suicídio estejam crescendo na população masculina em geral e principalmente entre homens acima de 60 anos”, diz Minayo. Em relação isso, o documento “ Prevenção do Suicídio: um Manual para Profissionais da Saúde em Atenção Primária”, produzido pela OMS, reconhece que a taxa de suicídio tem dois picos: em jovens, de 15 a 35 anos, e em idosos, acima de 75 anos. Embora o manual ofereça maneiras de lidar com situações de risco de suicídio de uma forma geral, não existe nada específico voltado para a população idosa. Em outro documento citado pel a pesquisadora da Fiocruz, a Portaria No 1.876, de 14 de agosto de 2006 do Ministério da Saúde (MS), reconhecendo o suicídio como um grave problema de saúde pública, a população idosa não é nem mesmo citada. Minayo ressalva que nada existe especificamente em relação ao idoso, uma vez que esse problema nunca foi tratado como uma questão pública. “Do ponto de vista da saúde pública, no Brasil , pouco tem sido feito, inclusive pelo desconhecimento da dimensão do problema”, diz.
Para melhorar o atendimento ao idoso são necessárias leis que garantam que seus direitos sejam respeitados – e o Brasil possui leis para isso. A Política Nacional do Idoso foi estabelecida em 1994 (Lei 8.842), na sequência da Constituição de 1988. A Constituição de 1988 se preocupou em transformar o enfoque assistencialista obsoleto da atuação governamental, passando a ser mais centrada no conceito de cidadania e legitimando, portanto, essa parcela da população. A Lei de 1994 visa proteger não apenas os idosos, mas também quem vai ser idoso um dia, ou seja, boa parte da população brasileira. Uma das ideias da Política Nacional é a de gerar longevidade com qualidade de vida – e isso movimenta muitas áreas, não somente a médica, uma vez que deve compreender uma série de atividades, como participação no mercado de trabalho, convivência e atendimento especializado, além de estudo. E tudo isso, sem discriminação.
É interessante notar, em relação a isso, que Maria Inês Dolci, colunista da Folha de S. Paulo e coordenadora institucional da Pro Teste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), recentemente escreveu um artigo no qual critica os planos de saúde privados por discriminação ao idoso (Respeito ao Idoso, 01/06/2010, Folha de S. Paulo ). Segundo Dolci, há casos de contratos firmados antes da Lei do Estatuto do Idoso entrar em vigor, em 1 de janeiro de 2004, em que alguns planos de saúde insistem em reajustar os preços conforme a idade da pessoa vai avançando – muito embora a lei de não-discriminação nas cobranças deveria ser aplicada para todos, inclusive retroativamente. Ela alerta que para ter seus direitos respeitados pelos planos de saúde, muitos cidadãos idosos estão precisando entrar na Justiça.
A saúde das pessoas, independente de idade, sexo e condição social, está intimamente ligada com a qualidade de vida que elas experimentam. Tanto a saúde física quanto a emocional são resultado de uma série de fatores determinados por condições adequadas de vida e do acesso ao atendimento médico. As políticas públicas em saúde precisam, por seu lado, procurar promover esse acesso e diminuir as desigualdades e ambiguidades existentes nessa área – e, por isso mesmo, as pesquisas nesse setor são de grande importância social. Além dos fatores relacionados diretamente à saúde, fatores externos podem ter um grande impacto na qualidade de vida de uma sociedade, como é o caso da violência – uma questão que traz várias ramificações para a sociedade brasileira. E, assim como jovens e jovens adultos, que são o grupo mais exposto à violência, o aumento do número de idosos revela que essa discussão deve crescer nos próximos anos também para essa faixa etária. Por se tratar de um grupo menor e menos influente, embora esteja crescendo em número, os idosos parecem necessitar de esforço redobrado para ter suas reivindicações atendidas – mesmo em casos em que seus direitos estão cobertos por lei específica, como a da não-discriminação. É importante que os direitos desse grupo sejam garantidos pelo poder público e vigiados pela sociedade. A tendência é que tais questões também ganhem mais visibilidade nos próximos anos, conforme a população brasileira continuar envelhecendo.
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