Escritores modernistas como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, atentos à realidade brasileira e às suas transformações, preocupados em sincronizar a história do país com os apelos das vanguardas estéticas que proliferavam na Europa, não permaneceram indiferentes ao processo de imigração, inclusive daqueles que eram (são?) encarados como exóticos e estranhos. Mas, por conta de suas próprias ambivalências, as imagens que compuseram dos imigrantes nipônicos não poderiam deixar de ser, elas também, ambíguas e problemáticas, nem sempre tão “modernas” e vanguardistas quanto as formas estéticas empregadas. Talvez isso as torne mais interessantes, ou pelo menos dignas de análise e discussão.
Marco Zero
Os imigrantes japoneses constituem presença numerosa em Marco zero, obra de Oswald de Andrade composta de dois romances – A revolução melancólica e Chão. Iniciada em 1933, o autor concluiu o primeiro volume em 1942 e o segundo em 1944. Oswald (1974a, p. 280) define Marco zero como uma “tentativa de romance mural” que “tende ao afresco social”. Para ele, o gênero romanesco “participa da pintura, do cinema e do debate público” e “mais que da música que é silêncio, é recolhimento”.
A galeria dos personagens nipônicos inclui: a) Muraoka, comerciante e proprietário de terras; b) “Nhô Fusiko”, uma espécie de capataz; c) as crianças que frequentam o Grupo Escolar de Bartira (Kioto Nassura, Sakueto Sakuragi, Massao Moraoka etc.); d) Kana, motorista e piloto do conde Alberto de Melo; e) o bonzo de Porto Litoral; f) a mulher casada que diz ao Padre Beato que precisa ter doze filhos porque “governo japonês manda” (p. 109); g) Dr. Sakura, engenheiro que fixa os colonos trazidos pela Companhia de Imigração; h) os habitantes da cidade de Registro – “Registro-Gô, a capital amarela do Sul” (p. 112); i) a criadinha do deputado Pádua Lopes.
Classificá-los como personagens, no sentido mais estrito do termo, talvez seja um pouco abusivo. A maioria está mais próxima do estatuto de figurantes, em geral não sendo mais que objeto de uma enumeração pitoresca ou de uma citação passageira. Muito raramente o autor lhes confere a palavra para que exprimam seu caráter próprio, para que seu eu se manifeste. No mais das vezes, são caracterizados de fora, olhados e julgados pela visão do outro – seja ele um personagem, seja o próprio narrador.
Mais exato seria dizer que em Marco zero os imigrantes japoneses formam um personagem coletivo, resultante da fusão – e da desconsideração – das características individuais num grande clichê: são os “amarelos”, os “dissimulados”, os “indiferentes”, aqueles de cuja alma se pode “esperar tudo” (p. 67), gente “impassível” que vinha espiar, invadir e ocupar o Brasil, a serviço do Império do Sol Nascente, do imperialismo nipônico.
O perigo da ocupação do território brasileiro pelos japoneses é um dos leitmotive da obra, podendo ser ouvido tanto no discurso indireto livre do narrador quanto nas vozes de personagens como o comunista Leonardo Mesa e o mulato Lírio Rebouças do Vale Piratininga. “Espiões educados, outros transformados em pescadores ou em peritos de agricultura, penetravam nos escritórios e nas casas, levantavam mapas do litoral e do interior” (p. 18), pensa o primeiro, de codinome Rioja, que ao entrar no Brasil vê a alfândega deixar passar para a cidade de Registro “até aeroplanos desmontados e metralhadoras, como máquinas agrícolas” (p. 16).
Já o farmacêutico Lírio Piratininga escreve para a Voz de Jurema, jornal da cidade homônima:
No criado, no chofer, no lavrador, no jardineiro, no comerciante, no pescador ou no burocrata... ou no milionário, enfim em qualquer ramo em que se desenvolva sua aparente atividade, está o técnico, o militar, o sociólogo, o polígrafo, o informante e o repórter a estudar, a inquirir, a observar e a transmitir memórias, relatórios e estatísticas para a sede desse formidável quartel-general que, em Tóquio, prepara a maior guerra de conquista de que a história humana jamais teve idéia. (p. 7)
Por seu turno, a voz do japonês, quando soa, não produz um efeito de individualização. Ouçamos, por exemplo, Dr. Sakura tentando explicar os motivos da imigração de seus compatriotas:
Munto pobereza, Governo non dá saída de produção em mercado interno. ... Outro paíse melhor situação pobereza. Depois perecisa imigrá pra Burasil. Todas nação proíbe entrada de produto japoneis. Disque é dumping, mas não é porque pobereza precisa de comê, vende maise barato. (p. 109)
A reprodução da fala do imigrante, ao contrário do que se poderia esperar, não individualiza o falante. Na medida em que tal fala remete ao coletivo, por meio dos clichês da dicção atribuída ao grupo, o efeito que consegue é, no máximo, o do pitoresco, acabando por puxar o indivíduo para o tipo, ou mesmo o estereótipo.
No contexto do romance, as vozes nipônicas são um contraponto tímido ao leitmotiv da ocupação imperialista do Brasil pelos japoneses, mesmo quando (como no caso do Dr. Sakura) procuram dizer o contrário. A versão de que o imigrante é um espião-invasor acaba prevalecendo, à esquerda e à direita: a adesão de Kana à Revolução de 1932 (a Melancólica do título) e, posteriormente (em Chão), aos integralistas (Andrade, O. de, 1974b, p. 228-229), não lhe retira o caráter enigmático, exótico, sempre pouco digno de confiança.
Esse tipo de contradição não ganha relevo na obra. Na verdade, mal aparece como contradição: o fato de Kana, o japonês educado na Inglaterra, formar fileira com os revolucionários paulistas e colaborar com os ultranacionalistas liderados por Plínio Salgado não contradiz o diagnóstico do expansionismo nipônico; trata-se da exceção que confirma a regra. Por outro lado, se o autor de Marco zero parece às vezes mostrar simpatia pelo movimento de 32 ou, no mínimo, não esconde sua antipatia contra a ditadura getulista, ao mesmo tempo não deixa de incorporar a ideia que essa ditadura fazia do imigrante japonês – a de que este vinha ao Brasil para formar “seus quistos raciais” (Andrade, O. de, 1974a, p. 40).
A combinação do enigmático com o estereotipado resulta na ausência de interiorização dos personagens japoneses. No caso de outros, como caipiras e italianos, o estereótipo não chega a ser um obstáculo para que o autor franqueie ao leitor a vida interior dos personagens. O mesmo, porém, não acontece com os japoneses: estes são literalmente – literariamente – indevassáveis, e o fato de não se manifestar sua interioridade confirma e reforça seu caráter enigmático, estranho, exótico – algo que continuará fazendo fortuna na literatura brasileira.
Figuras planas, bidimensionais, os japoneses de Marco zero ganham do escritor um retrato que beira, quase sempre, o caricatural. Essa falta de profundidade não combina com a concepção de um romance mural caracterizado pela trama complexa das imagens e dos pontos de vista. Na díade oswaldiana, a complexidade é sacrificada à ideologia da antropofagia, que o escritor parece adotar como princípio de composição e montagem de seu mural e que é mais de uma vez citada e debatida em Chão, como na passagem (p. 202) em que o personagem Jack São Cristóvão disserta:
No meio do movimento modernista apareceu alguma coisa tão rica e fecunda que até hoje admite várias interpretações. Politicamente, a antropofagia pode ser considerada como a primeira reação consciente contra os imperialismos que ameaçam até hoje a nossa independência. ... As origens intelectuais da antropofagia estão em Montaigne, em Rousseau. É a exaltação do homem natural, com uma diferença, não o elogio do “bom selvagem”, mas do mau, do verdadeiro...
O muralismo que Oswald de Andrade toma por modelo não é o dos painéis épicos, mas o das pinturas de tons carregados, de caracteres altamente ideologizados: atravessados por olhares de Medusa, os dois romances acabam por exibir personagens petrificados, figuras que representam, antes de mais nada, a cristalização de um princípio ideológico. Como que obrigando-se a demonstrar a existência de sua concepção antropofágica – ou, melhor dizendo, antropófaga – no processo social, Oswald de Andrade exacerba e escancara as tensões sociais e raciais: os grupos figurados aparecem, uns aos olhos dos outros, sob as luzes e os ângulos mais desfavoráveis. À polifonia dos murais épicos, o autor prefere as dissonâncias da maledicência: em Marco zero, todos – incluindo o narrador – falam e pensam mal de todos. A obra soa folhetinesca, bombástica, circense.
Essa música de picadeiro, que – a despeito da classificação do autor – está longe de ser intimista e de produzir o senso de recolhimento, certamente paga tributo à época que o escritor quis retratar e àquela em que escreveu sua obra, mas parece dever muito mais à sua opção de estilo, em que observações acres e impiedosas mesclam-se com clichês melodramáticos, como o que se ouve em A revolução melancólica (p. 148), quando Eufrásia diz a Jango: “Toquei pela primeira vez a realidade, a realidade maravilhosa que você é. Agora sei o que é essa coisa insondável, o amor...”
Amar, verbo intransitivo
Em Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, a imagem do imigrante japonês se desenha (ou se esboça) em contraste com a imagem da imigrante alemã, a Fräulein. Motivo, ou pretexto do contraponto, é um poema de Castro Alves (1990), “A queimada”, que exclama em sua sexta estrofe:
A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara – pula; o cascavel – chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
...E às vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre – náufragos do medo –
Vão trêmulos se unir!
A catástrofe natural descrita pelo poeta romântico ganha, nas mãos do escritor modernista, o sentido de metáfora da situação histórico-política que conduz uma alemã e um japonês a se encontrarem, ao mesmo tempo unidos e distanciados, na condição de criados da família Sousa Costa. Entretanto, o romancista reformula a metáfora para adequá-la à realidade, lembrando que nem a alemã nem o japonês poderiam ser representados por uma corça: ambos são tigres – rivalizam no poder e na impotência, no orgulho e no desamparo.
O distanciamento a que obrigam o uso da metáfora e o estilo do narrador – que intervém a todo instante com comentários e observações – é o que permite, paradoxalmente, uma aproximação maior da situação do imigrante, quase que tocando em sua interioridade. Observemos e acompanhemos esse movimento na narrativa:
Falemos dos tigres. O japonês arrepiou logo o pelame elétrico e grunhiu zangadíssimo. Mais uma estrangeira na casa que ele pretendia conquistar, ele só... O tigre alemão, se reconhecendo muito superior tanto na hierarquia solarenga como na instrução ocidental, lhe secundou ao grunhido com o muxoxo desdenhoso. O tigre japonês curvou a cabeça, muito servilmente. ... Era na alma que rosnava tiririca. E assim os dois tigres se odiavam. ...
... De repente os cipós se entreabriam. Dois olhos espantados relampeavam na escureza e a carantonha chata do tigre japonês aparecia, glabra, polida pelo reflexo lunar. Com o passo enluvado, cauteloso, ele rondava à espera dum carinho. E o carinho chegava fatalmente. ...
... Então eles conversavam. Falavam longamente. Comovidamente. Se contavam as mágoas passadas. Confiantes, solitários. Doloridos. ... As infâncias passavam lindas, inocentes, brinquedos, primavera, mamãe... Algumas vezes mesmo uma lágrima iluminava tanta recordação, tanta alegria. Tanta infelicidade.
...
Depois das recordações, vinham as esperanças. E das esperanças, tão lentas de se realizar! derivavam os exasperos e as revoltas. Até calúnias, tão eficientes pra consolar. A roupa suja da família se quotidianizava ali. Os defeitos da pátria emprestada eram repassados com exagero. Principalmente o nipônico falava, que o alemão tinha as pernas mais altas do estudo pra se rojar no lamedo. Porém se percebia que escutava com prazer. E os dois tigres se aproximavam, olhos úmidos, eram irmãos. Si a distância lhes impedia pra sempre o beijo sem desejo, insexual mas físico de irmãos, eles se davam, não tem dúvida, aquele beijo consolador, espiritual, redentor e reunidor das almas desinfelizes e exiladas.
Apalermados pela miséria, batidos pelo mesmo anseio de salvação, sofrenados pelo fogaréu do egoísmo e da inveja, na mesma rocha vão trêmulos se unir. A queimada esbraveja em torno. (Andrade, M. de, 1972, p. 93-95)
Por outro lado, a metáfora não provê a individualização. O “tigre” Tanaka é ainda e sobretudo um representante do império nipônico, sua individualidade é subsumida em sua condição de japonês – em sua, digamos, “japonidade”. A menção das características físico-biológicas está aí não só para fazer lembrar que o indivíduo integra e representa uma etnia, mas também para indicar que a essa etnia correspondem uma cultura e uma sociedade, as quais o indivíduo encarna e, igualmente, representa. O natural é, também, nesse sentido, sinal do cultural.
Além disso, o que interessa ao autor e a seu narrador é discutir o destino e o futuro desses imigrantes como coletividades, não propriamente como indivíduos: ele quer saber se, como e quando esses grupos se integrariam à vida brasileira, sobretudo à nacionalidade brasileira. Nesse ponto, embora escreva bem uns seis anos antes de Oswald de Andrade (o “idílio” é de 1927), Mário de Andrade parece dispor de uma percepção ou intuição mais aguda e sensata: “Os dois tigres acabarão por desaparecer assimilados” (p. 96).
Mário de Andrade também acerta, parcialmente, ao ponderar sobre o perigo que ronda a aculturação dos imigrantes. Segundo o narrador, o risco ou o obstáculo não reside nas crenças milenares de cada povo (e que se referem, talvez, às camadas culturais mais profundas), mas nas ideias e na ação de doutrinadores ou ideólogos como Gobineau:
Homem, não sei. Avisto Gobineau faudulento a estudar o facies de Tupã. Odin e Budá inda Tupã podia vencer, que em brigas entre iguais a vitória parece discutível. Mas Gobineau é homem, Homo Europeus, e sempre constatei que os homens são muito mais fortes que os deuses. Gobineau vencerá pra maior gozo dos alemães. (p. 96)
O enigma e suas variações
Uma comparação entre as obras dos dois modernistas indicará, provavelmente, que o retrato do Tanaka de Amar, verbo intransitivo é mais razoável que as várias pinturas que Oswald de Andrade faz dos japoneses em seu romance mural, justamente porque menos caricatural. Por outro lado, o “idílio” e Marco zero assemelham-se ao observarem e anotarem os tremores do chão e do subsolo sociais: a aversão de brasileiros aos nipônicos e a outros estrangeiros; a hostilidade ou rivalidade entre esses últimos – enfim, tensões que ganharam da parte de Oswald de Andrade a representação mais exacerbada.
Como já se notou, Mário de Andrade avança na busca da interioridade do personagem japonês, mas não se pode dizer que tenha alcançado a sua individualidade. Na literatura brasileira, a aura mais negativa que positiva do enigmático, do estranho, do exótico, persiste sendo uma espécie de legado que o imigrante nipônico acumula e transfere aos descendentes, como Oswald de Andrade (1974c) deixa sugerido a respeito de Toiô, a criada de Deisi, em Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe (p. 138). Vinte anos após Marco zero ainda se verá um João Antônio (1963), com o conto Fujie (p. 27-33), traçar da moça de origem nipônica a imagem da mulher-enigma, da esfinge cujos mistérios nem a mais estreita intimidade desvenda: imagem fugidia, que se projeta em negativo, “definindo-se” pela ausência de definição, pelo obscuro.
Comum a essas narrativas é tomar o enigmático como uma característica racial, uma espécie de atributo metafísico do japonês. Mário de Andrade, como vimos, procura dar um tratamento histórico-social ao assunto, mas empregando categorias que, ao mesmo tempo, “naturalizam” a questão, transportam-na para o reino da natureza humana e das espécies em que se divide, entre elas a do “tigre japonês”. Não sem lógica, indaga se “mesmo o japonês” é passível de aculturar-se. Já Oswald de Andrade, que trabalha (n)um cenário histórico por opção, esbarra a todo momento no estereótipo, nos clichês que cristalizam as imagens do japonês em torno das ideias de dissimulação, isolamento, indiferença, invasão, ocupação.
Aos escritores que abordaram o tema não parece ter ocorrido que esses traços pudessem ser produto e manifestação da dinâmica social, da dialética por vezes traumática que preside à convivência entre brasileiros, de um lado, e japoneses e seus descendentes, de outro. Não é difícil produzir ou fabricar o dissimulado, o misterioso e o reservado a partir de qualquer etnia: basta, desde os primeiros contatos, separá-la, por atos mentais e/ou pelo comportamento social. Por outras palavras, o ônus da dissimulação cabe tanto ao próprio dissimulado quanto àquele que, menosprezando sua cultura, debochando de seus traços físicos, o obriga a escolher entre o isolamento e o ocultamento – por vergonha, orgulho ou defesa – daquelas características que provocam no outro manifestações de desagrado, desdém ou troça.
Roberto Goto é professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Referências bibliográficas
Alves, C. A. “Queimada”, poema do livro A cachoeira de Paulo Afonso, lido na antologia Canto da esperança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
Andrade, M. Amar, verbo intransitivo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972.
Andrade, O. A revolução melancólica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974a.
_____. Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974b.
_____. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe (Memórias: 1890-1919). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974c.
Antônio, J. Fujie. In: _____. Malagueta, Perus e Bacanaço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
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Extrato de artigo originalmente publicado pela Revista do Instituto de Estudos Brasileiros número 55, setembro de 2012, com o título Imigrantes japoneses em Marco zero e Amar, verbo intransitivo.
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