Difusão da propriedade privada e reprodução da precariedade do habitat urbano
O tema da habitação no Brasil é uma das fortes expressões
do caráter contraditório dos processos de urbanização e modernização do Brasil
em curso desde a segunda metade do século XX. São conhecidos os números que
descrevem os traços das nossas cidades inacabadas pela existência de grandes
parcelas da população vivendo em favelas e periferias urbanas precariamente
equipadas de serviços. No entanto, outro dado nos chama atenção. Trata-se do
que mostra a difusão da propriedade da moradia, chegando alcançar 74% do
conjunto da população e apenas 15% vive em moradias alugadas. São em sua grande maioria domicílios
permanentes que substituíram ao longo deste período as moradias improvisadas
que marcaram o início do crescimento das nossas cidades. Nas regiões Sudeste e
Sul, as mais urbanizadas do país, chega-se a 87% em média de moradias
permanentes.
Evidenciam, sem dúvida nenhuma, a melhoria das condições
urbanas de vida, cujo outro lado, porém, é o aumento do parque domiciliar
atendido pelos serviços básicos de saneamento: água, esgoto e coleta de lixo.
No conjunto do país, este último serviço alcança, com efeito, 86% das moradias
e nas regiões Sul e Sudeste estão perto de alcançar a universalização – 93,9% e
86,8% . O mesmo pode ser observado quanto ao serviço de distribuição de água
por rede geral. Já no esgotamento sanitário, o Brasil como todo apresenta ainda
taxas de atendimento incompatíveis com o seu grau de industrialização e
urbanização, pois apenas 48% dos domicílios são servidos por rede coletora e
mesmo na região Sudeste, onde estão localizadas as maiores metrópoles criadas
com a industrialização, apenas 76% dos domicílios têm o acesso a este essencial
serviço. Na região Sul a situação ainda é pior, pois apenas 4 em
cada 10 domicílios têm esgotamento sanitário. A situação é ainda mais
preocupante se considerarmos que esses números não conseguem revelar o fato da
rede de esgotamento sanitário não estar articulada a um verdadeiro sistema de
tratamento e destinação do esgoto sanitário, constituindo um serviço de
saneamento ambiental. Em muitos casos, com efeito, sobretudo nas periferias
metropolitanas, o esgoto é despejado em rios e lagoas situados no interior da
trama urbana, cuja conseqüência dramática é o seu retorno às casas em momentos
de enchentes. Acrescente-se que a modalidade de esgotamento por fossa séptica,
considerada como adequada, em espaços de alta densidade de ocupação do solo
urbano tem significado a ameaça à degradação do lençol freático.
A conclusão é que a difusão da propriedade privada da
moradia no Brasil e em especial nas regiões urbanas ocorre simultaneamente com
a precarização do habitat urbano. Na
raiz desta contradição encontramos as particularidades do processo de
urbanização brasileiro, caracterizado pela expansão das periferias
metropolitanas em razão de quatro fatores: acelerado movimento de urbanização
via migração campo-cidade, baixo preço da terra nas fronteiras das antigas
cidades que passaram a ser o centro da industrialização, a existência da
dissociação entre salário e custo de reprodução social da força de trabalho e,
finalmente, a ausência da intervenção regulatória e planejadora do Estado. Estamos
atravessando momento de esgotamento deste modelo de urbanização, em razão das
transformações do mercado de trabalho e a expansão do emprego informal,
precário, e de baixa remuneração, que exige a proximidade da moradia dos locais
possíveis da ocupação e da renda, do aumento do preço relativo dos transportes
e da valorização das terras mais acessíveis da periferia metropolitana.
A expressão desta crise é o crescimento do habitat urbano precário, na forma da
expansão e adensamento das moradias em favelas nas áreas próximas ou acessíveis
aos núcleos nos quais a renda e a riqueza estão concentradas. Adensamento da
ocupação do território e adensamento do uso da moradia. Não é por acaso que
estamos assistindo à volta de doenças epidêmicas que já tinham sido controladas
anteriormente, como é o caso da dengue. Reforma Urbana e Reforma Sanitária são
hoje dois lados da mesma moeda, qual seja, a via para a constituição das
condições coletivas de vida que correspondam às necessidades geradas por uma
sociedade que concentrou 80% da sua população em cidades.
Luiz César de Queiroz Ribeiro é
professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da
UFRJ e coordenador do Observatório das Metrópoles.
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