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Os olhares da ficção científica cinematográfica para um futuro que já é aqui e agora
Por Fátima Gigliotti
10/05/2014

O ano é 2021. O planeta está conectado pela internet. Mas as grandes corporações não confiam mais na rede para transportar informações confidenciais, por isso contratam mensageiros cibernéticos – que fazem o upload delas diretamente em seus cérebros por meio de plug implantado. Johnny (Keanu Reeves) é contratado pela gigante PharmaKom para transportar 320 gigabytes de informação sobre a cura da síndrome de debilitação nervosa ( nerve attenuation syndrome), também conhecida como espasmos negros ( the black shakes), provocada pela alergia fatal às ondas eletromagnéticas, transmitida por wi-fi, que está adoecendo e matando considerável parte da população mundial.

A narrativa é do longa-metragem Johnny Mnemonic, que no Brasil ganhou o subtítulo O cyborg do futuro, com roteiro do escritor William Gibson, célebre autor de Neuromancer (1984), considerado um dos principais nomes do cyberpunk, subgênero literário da ficção científica. Foi em Neuromancer que Gibson cunhou o conceito de ciberespaço, produto legítimo e autêntico da ficção científica. Trinta anos depois, o Dicionário Aulete da Língua Portuguesa define ciberespaço como “rede de computadores, esp. a Internet, cujo conteúdo informacional é concebido como um ambiente ou espaço ou mundo virtual, composto de dados e programas que o usuário pode acessar ou com os quais pode interagir, como quem se desloca (p.ex., 'visitando' sites e sendo transferido de um para outro por meio de links)”.

Trinta anos depois, é esse ciberespaço, concebido pela ficção científica, e suas relações reais, de fato, com o indivíduo, o cidadão, a sociedade e o Estado, que o Marco Civil da internet, sancionado no dia 24 de abril pela presidente Dilma Rousseff pretende regular e regulamentar. A Lei nº 12.965 estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Dentre eles, criam-se dois curiosos binômios, símbolos de intenções e interesses nem sempre coincidentes, como duas faces de uma moeda: a) liberdade de expressão e proteção da privacidade; b) escala mundial da rede, livre iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor, sigilo do fluxo de informações pela internet. Sob a vigilância do Estado, encontrar o volátil e delicado equilíbrio entre individualidade e cidadania, globalização e soberania/identidade nacional, mercado e consumo parece ser um desafio proposto pelo Marco Civil da internet. Desafio que implica o reconhecimento de vários aspectos peculiares que compõem o modo de vida contemporâneo. Sobre alguns deles, os filmes de ficção científica talvez tenham colocado o seu foco de luz com uma ótica privilegiada.

Voltemos então a Johnny Mnemonic, produção de 1995, que não teve grande êxito nas bilheterias de cinema. Talvez porque a representação “realista” de um mundo interligado em rede no qual o controle da informação tornou-se sinônimo de poder pareceu algo improvável há... 20 anos. É curioso, aliás, que o texto do Marco Civil da internet se ocupe do acesso à internet em três momentos, e do acesso à informação em apenas um, já que o objetivo da internet é a veiculação de informação, e diferenciar veiculação de informação não é tarefa fácil, mas necessária, como reflete a filósofa Marilena Chauí, em Simulacro e poder: uma análise da mídia (2006). “O problema, portanto, é saber quem tem a gestão de toda essa massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois, tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e com a produção de novos dados pela combinação dos já coletados”.

Três anos antes da aventura de Johnny, o cinema produziu o primeiro filme de Hollywood a encenar o que se chamava então mais comumente de realidade virtual – a do lado de dentro do computador: O passageiro do futuro (The lawnmower man), de 1992. Com apenas oito minutos de efeitos especiais computadorizados, que custaram meio milhão de dólares e oito meses de trabalho, o filme criou uma matriz estética de representação da realidade virtual no cinema, ainda hoje identificável nas produções do gênero e na rica indústria de games. Vencido o desafio dos efeitos especiais, alguns outros aguardavam respostas.

Em O passageiro do futuro, um cientista visionário (Pierce Brosnan) transforma um jardineiro “especial” em um superdotado, por meio da realidade virtual. No filme, a mente do jardineiro é transportada para o interior do computador e, com auxílio de drogas, desenvolve capacidades cognitivas. Mas a “criatura” se volta contra o “criador”, tal qual um Frankenstein tecnológico. É também esse Frankenstein, elevado à última potência, que parece ter dado origem a ficções científicas distópicas como a complexa e bem-sucedida Trilogia Matrix, dirigida pelos Irmãos Wachowski, com Matrix (1999), Matrix reloaded e Matrix revolutions (2003), em que a criação da inteligência artificial – máquinas com capacidade de pensar – provocou a guerra entre humanos e máquinas e a conversão do ser humano em bateria, energia para alimentar as máquinas vitoriosas, que agora habitam e dominam o planeta. Matrix se passa no ano de 2199, um futuro pelo menos mais distante.

Dentre as inúmeras qualidades do incomparável e premiado clássico de Stanley Kubrick, 2001 – Uma odisseia no espaço, de 1968, cujo roteiro foi escrito em parceria com Arthur C. Clarke, parcialmente inspirado no conto A sentinela, do escritor inglês, está a criação de HAL-9000, o computador que disputa com o doutor Dave Bowman (Keir Dullea) o controle da nave Discovery rumo a Júpiter. O nome do computador foi criado, propositadamente, com as três letras anteriores à da corporação IBM (International Business Machines), uma potência do mercado de tecnologia já nos anos 1960, e mal disfarça a crítica a um futuro incerto em que homens e máquinas poderiam entrar em rota de colisão já em 2001.

Em diferentes épocas, a obra-prima de Kubrick, O passageiro do futuro e a Trilogia Matrix são alegorias da ficção científica para as fugidias fronteiras entre o homem e a máquina – que inevitavelmente espelham relações entre consumidor e mercado, Estados e megacorporações, inovação e dominação, liberdade e automação. No enredo da fantasia, tais alegorias podem ter finais trágicos, mas certamente uma definição clara daquelas fronteiras, estabelecidas em lei com poder de sanção – como no Marco Civil da internet – pode coibir excessos e preparar o caminho para uma convivência pacífica e positiva no presente e futuro.

A complexa dialética da tecnologia – e de seus limites – está também presente em outro tema caro à ficção científica, a inteligência artificial. A evolução dos experimentos na área tem permitido conquistas e avanços inquestionáveis, como a cirurgia robótica, os implantes biônicos, sofisticados exames de imagem preventivos de doenças. No outro espectro da evolução tecnológica, no entanto, reaparece o genial diretor Stanley Kubrick, que está na origem de outro clássico incomparável do gênero, dessa vez inspirado no conto Superbrinquedos duram o verão todo, do inglês Brian Aldiss, produzido em 2001 – uma coincidência curiosa de datas – mas dirigido por Steven Spielberg: A.I. – Inteligência artificial.

Nele, na metade do século 21, o superaquecimento do planeta derreteu as calotas polares e submergiu as cidades litorâneas. São robôs que ajudam a humanidade a se reerguer, de todos os tipos, inclusive inteligências artificiais, e a convivência entre homens e máquinas acontece em estável harmonia. Mas um deles é especial – uma criatura criança, criada para amar e ser amada em família, o pequeno David. A narrativa do filme é infinitamente mais complexa, aponta para uma Terra habitada apenas por inteligências artificiais após a extinção da espécie humana pelas mãos do próprio homem – sem a ajuda da tecnologia – e reflete sobre incontáveis outros aspectos da ascensão da tecnologia no mundo moderno. Mas propõe agregar à máquina a possibilidade do amor, algo tão caro à essência humana. No pôster do filme estava escrito: “David tem 11 anos. Ele pesa 22 quilos. Ele mede 1,37 metros. Ele tem cabelo castanho. Seu amor é real. Mas ele não é.”

Uma das questões existenciais imanentes à ficção científica distópica desses filmes parece ser, entre muitas outras, o embate entre a (auto)consciência do homem e a consciência da máquina. “Se existe, entretanto, uma criatura tecno-humana que simula o humano, em tudo parece humana, que age como um humano, que se comporta como um humano, mas cujas ações e comportamentos não podem ser retroagidos a nenhuma interioridade, a nenhuma racionalidade, a nenhuma essencialidade, em suma, a nenhuma das qualidades que utilizamos para caracterizar o humano, porque feita de fluxos e circuitos de fios e de silício, e não do macio e fofo tecido de que somos ainda feitos, então é a própria singularidade e exclusividade do humano que se dissolve”, observa o professor-doutor Tomaz Tadeu da Silva no artigo Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano, da coletânea Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós-humano (2000). 

Singularidade e exclusividade que estão diretamente ligadas ao exercício da liberdade de expressão e ao direito de privacidade, princípios imperativos da nova lei da internet e que parecem, à luz desses filmes, poderem ser garantias da continuidade do humano no futuro. Desde que exercidos com (auto)consciência, porque é ela também genuinamente humana. Sim, porque no horizonte – e contexto – da digitalização universal, “surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando ‘obsoleto’. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecno-cosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário recorrer à atualização tecnológica permanente: impõem-se, assim, os rituais do auto- upgrade cotidiano”, aponta a professora-doutora Paula Sibilia em O homem pós-orgânico – corpo, subjetividade e tecnologias digitais (2002), escrito quando não havia ainda mídias sociais. 

É bom lembrar que a internet e as mídias sociais, por mais espaço que ocupem no cotidiano dos usuários, e por mais que celulares possam ter se tornado extensões das mãos e das emoções deles, caracterizam-se como “artifício”. E toda medida capaz de regular, como o Marco Civil, o uso desse “artifício” deve – ou deveria – reverter a favor do usuário e de sua (auto) consciência de mundo, e não dos interesses do mercado que o produz.

Talvez não exista melhor representação para o dilema da dissolução do humano e dos rituais (desumanos?) do auto-upgrade cotidiano do que a proposta pelo diretor Ridley Scott em Blade Runner – o caçador de androides (1982), adaptado do livro Androides sonham com ovelhas elétricas, de Philip K. Dick. No ano de 2019 (sim, 2019), o policial Deckard (Harrison Ford) é convocado para eliminar quatro replicantes, androides de última geração dotados de inteligência e força física superiores às humanas, que fugiram de uma colônia estelar para a Terra em busca de mais tempo de vida além dos quatro anos para os quais foram programados.

“Na temática de um mundo dominado e controlado por uma mega-corporação, aparecem nos labirintos discursivos de Blade Runner os receios diante de um futuro onde a empresa capitalista passe a assumir o papel de Estado e a ter plenos poderes sobre a vida e a morte de todos os indivíduos – o que, em última instância, traz à tona o temor diante da possibilidade da perda de liberdade individual. (...) Outra das mensagens subjacentes ao filme... refere-se às angústias do homem contemporâneo diante da ‘compressão do espaço-tempo’. A aceleração do tempo nos tempos modernos, apressando o ritmo das transformações contemporâneas, e o estreitamento da comunicação e das possibilidades de locomoção, parece trazer uma singularidade a esta época em que, conforme já dizia Marshall Berman, retomando Marx (1818-1883), ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’”, analisa o historiador José D’Assunção Barros no artigo A cidade-cinema pós-moderna: uma análise das distopias futuristas da segunda metade do século XX, publicado na revista Crítica Cultural (2011).

O que nos leva de volta, curiosamente, aos binômios identificados no texto legal do Marco Civil da internet no Brasil. Afinal, é no espaço nem sempre pacífico entre a liberdade de expressão – atributo ligado à interioridade e subjetividade humanas antes de ser um direito individual protegido – e a proteção da privacidade – mandamento de natureza coletiva para o bem-estar social que também se estabelece o ciberespaço, se configuram as relações humanas cibernéticas, se delimitam os (novos) objetos do prazer, do saber e do poder e, em última análise, também se consubstancia a (auto)consciência humana. Mas nesse ciberespaço atuam forças antagônicas, que se filiam à ordem do capital presente na escala mundial da rede, na livre iniciativa e livre concorrência; e à ordem do direito social, de defesa do consumidor e ao sigilo do fluxo de informações pela internet que, em última análise, também definem a (auto) consciência humana do tempo e do espaço em que se vive.

Quando um usuário da internet pesquisa um tema na rede pelo qual tem um genuíno interesse e, no dia seguinte, em seus perfis nas redes sociais aparecem anúncios de produtos ligados ao tema, por exemplo, algo se interpôs entre a proteção à privacidade do usuário, o direito ao sigilo do fluxo de informações pela internet e a presença nebulosa na rede de ações comerciais filiadas à livre iniciativa e à livre concorrência. Algo que está além dos termos de uso, de aceitação compulsória, que pretendem regulamentar a relação entre o usuário da internet e as empresas responsáveis pelos sistemas de veiculação – e produção? – da informação na rede.

É justamente essa interposição indesejada nos (ciber)espaços entre o privado e o público, a liberdade individual e o interesse econômico, o íntimo e o vigiado, o expresso e o oculto que está na origem das duas ficções científicas clássicas, matrizes de reflexões sobre a modernidade e o autoritarismo: 1984, de George Orwell, que ganhou versão cinematográfica dirigida por Michael Radford no mesmo ano do título do livro; e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, escrito em 1932. São obras inspiradoras de outros clássicos da ficção científica cinematográfica como Alphaville (1965), de Jean Luc Godard; Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut; THX 1138 (1971), de George Lucas; Fuga no século 23 (1976), de Michael Anderson; Brazil, O Filme (1985), de Terry Gilliam; Gattaca – a experiência genética (1997), de Andrew Niccol. Cada qual com seu olhar privilegiado e iluminador sobre um futuro que já se tornou aqui e agora, tão presente que até demanda novas leis para regulamentar o mundo novo.

Fátima Gigliotti é jornalista, gestora de comunicação, mestre em linguística e semiótica pela FFLCH-USP, com dissertação sobre linguagem cinematográfica, e aluna de pós-graduação de jornalismo científico no Labjor.