O Brasil é um país de forte vocação internacional, tanto pelo que
desperta no outro, no estrangeiro, quanto pelo que o outro desperta no
nosso olhar: curiosidade, interesse, humildade formal, cordialidade e
disponibilidade para a atenção e o apoio nas situações mais fáceis do
cotidiano dos estranhamentos.
Tudo
isso tem a marca da afeição apaixonada e quem diz paixão, diz, é claro,
amor e ódio com a mesma intensidade, a mesma obstinação e, porque não
dizer, a mesma volatilidade que caracteriza muitas vezes os impulsos
derramados.
O homem cordial que
Sérgio Buarque de Hollanda tão bem identificou em Raízes do Brasil não
é, pois, portador do atributo de bondade substantiva com que o
brasileiro passou a ser caracterizado na mitologia de nossa identidade.
A cordialidade, entretanto, é uma
categoria sócio-psicológica que se opõe, num eixo à indiferença, em
outro à particularidade da ocorrência do amor como simpatia, em outro
ainda à particularidade negativa da ocorrência do ódio como antipatia e
que é também implicada, como disjunção, pelas categorias universais do
amor e do ódio, contrárias entre si.
Algo assim, que a figura abaixo, baseada no hexágono lógico de Robert Blanché representa:
O homem cordial é, assim, capaz do bem e do mal, impulsivos e apaixonados, da mesma maneira.
Essa
impulsividade nos torna, pois, universais e particulares a um só tempo,
sob a forma de um paradoxo que constitui, de certo modo, um paradigma
de explicações de como nos olhamos, de como nos vemos, de como olhamos
para o outro e de como gostaríamos de por ele ser olhados.
A
universalidade do país é um predicado de qualidade que supõe a
implicação de particularidades sobre as quais se assenta a sua
identidade. A língua portuguesa é uma delas.
Falada
em toda a extensão do território com grandes variações regionais,
mantendo, contudo a sua identidade estrutural e lexical, a língua
portuguesa é uma língua universal sendo também, em seu grau próprio,
uma língua internacional.
O poeta Fernando Pessoa no livro Língua portuguesa faz a distinção entre línguas universais e línguas internacionais e, grosso modo,
propõe essa diferença de qualidade que caracteriza as primeiras e de
quantidade, as segundas. É a riqueza expressiva e cultural que torna as
línguas universais; é a quantidade de povos e o sem-limite de
fronteiras nacionais que as torna mais ou menos internacionais em
diferentes momentos da história política e econômica de seus países de
origem.
Hoje, a mais internacional
das línguas é o inglês, mas já foi o francês, o alemão, o italiano, o
espanhol, o latim. Há variações de grau, mas o que as caracteriza como
internacionais é que são línguas de comunicação, línguas francas,
línguas de comércio para os fins específicos dos intercâmbios
necessários nos mais diferentes campos da atividade do homem.
Constituem, nesse sentido, recortes pragmáticos da estrutura e do
vocabulário, muitas vezes vastíssimo da língua universal, como é o
inglês, que lhes deu origem.
O
português é, pois, uma língua universal e, num certo grau, uma língua
internacional falada em países de pelo menos três continentes por uma
população de mais de 200 milhões de habitantes.
A
língua portuguesa que por aqui já foi chamada de brasileira é um
aspecto da internacionalidade do Brasil extremamente importante como
marcador de condutas e de comportamentos intelectuais, institucionais e
políticos de nossa brava gente.
Tanto
é assim que é ela que nos tensiona de um lado em direção ao norte,
apontando para Portugal, para nossas origens, para os totens de nossa
afirmação e, de outro, para o leste, para a África, para a necessidade
de atendermos ao apelo da consciência histórica que nos leva à busca
constante da solução do dilema histórico da escravidão ainda não
resolvido e para sempre inscrito como anátema de nosso próprio desterro
dentro e fora de nós mesmos, fora e dentro de nosso próprio país.
É
a língua portuguesa, assim internacionalizada, que produz, pela
aproximação anelada, a estranheza de uma geografia internacionalmente
estranhada na sua afirmação de cordialidade extrema e cujo nome é
ardente de desejos de conteúdos: Palop.
Os
países africanos de língua oficial portuguesa são, desse modo, um dos
pontos imantados das relações internacionais do Brasil. Outro é
Portugal, a França, a Europa, não necessariamente através do primeiro e
por meio da língua que nos é comum.
Por
imperativos econômicos e políticos o ponto cardeal de fixação da agulha
da bússola dessas relações é, como para todos os países do mundo
globalizado, os E.U.A. Também pelas mesmas razões, mas numa ordem de
fatores diferente e que altera o produto, o continente
latino-americano, em especial os países do Mercosul, Argentina
principalmente, constituem outro foco das atenções internacionais do
Brasil.
Mas voltando à língua
portuguesa e ao seu papel constitutivo da universalidade e da
internacionalidade da vocação brasileira de ser e não ser (tupi or not
tupi) mais que o gigante adormecido em berço esplêndido, há episódios,
- alguns recentes -, que ilustram bem as tensões marcadas pela língua
na cultura de nossos desacertos.
Dois
deles merecem atenção. O primeiro está relacionado com o projeto do
deputado Aldo Rebelo visando à criação de escudos legais da língua
portuguesa contra os avanços dos estrangeirismos lingüísticos, em
especial do inglês nos usos cotidianos de expressões e designativos da
realidade sócio-econômico-cultural e política da imersão ou do
afogamento global em que estamos metidos.
Tratei do assunto em outra oportunidade aqui mesmo na ComCiência (ver “Português e Esperanto-Inglês”, ComCiência,
n. 24, agosto de 2001). Continuo a pensar que leis dessa natureza
existem em vários países e que não vale a pena execrá-las. Antes, é
melhor aperfeiçoá-las e regulamentá-las dando-lhes o mínimo de
operacionalidade inteligente, se é que de fato isso é possível.
A
maior defesa da língua está no seu poder de cultura, na sua variedade,
na sua vivacidade, no orgulho carinhoso que sentimos ao falá-la, ao
escrevê-la, como se degustássemos mel, vinho, néctar, amor novo e
renovado. Está na sua literatura, nos versos de suas músicas, na
poesia, nos jornais, nas revistas, nas cartilhas, nos livros didáticos,
no cinema, na conversa fiada, na crítica, nos discursos, nos monólogos,
nos diálogos, nos solilóquios, nas confissões, nos murmúrios, na
retórica política, nos rituais, nas cerimônias, nos silêncios curtos e
prolongados em que fala a sua lembrança.
O
entendimento de que a internacionalidade consistente do país supõe a
universalidade de sua língua e as particularidades de seu uso social e
cultural diversificado é a defesa de qualidade mais eficaz da língua
portuguesa e a condição para um bom desempenho de destaque no cenário
do concerto das nações.
Esse
entendimento - e aqui vamos para o segundo episódio a que acima eu me
referia - deve, contudo, evitar a caricatura dos gestos
nacional-populistas que, às vezes, quando não muitas, formam a vertigem
da sedução dos dirigentes para consigo mesmos.
O
Itamaraty, responsável pelos programas de formação de quadros para o
exercício das políticas de relações exteriores, dispensou,
recentemente, o inglês como obrigatório para a admissão e a formação
pelo Instituto Rio Branco dos estudantes e profissionais da carreira
diplomática.
Decisão no mínimo
estranha, sobretudo se motivada pela alegação de assim se evitar ou
diminuir o elitismo de uma das instituições brasileiras que gozam de
mais respeito e credibilidade no cenário internacional.
A
soberania das línguas está ligada à soberania das nações que constituem
seu berço de origem e o ponto de referência de sua expansão.
O
latim e o império romano são bons exemplos desse fenômeno. A coiné
adotada pelos gregos e por habitantes de outros países da parte
oriental do mediterrâneo no século IV a.C. é uma língua comum (Koiné
diálektos) baseada no dialeto ático e que cumpria, desse modo, também
funções de comunicação internacional. O swahili, na África, no período
de grande expansão colonialista no século XIX, conheceu também
motivações instrumentais de origem parecidas até constituir-se como
língua de funções plenas e complexas. A literatura trovadoresca
expressava-se num idiomatismo do galego-português que permaneceu como
código literário até o século XVI em Portugal.
O
inglês, desnecessário dizer, é uma das línguas mais ricas do mundo, em
vocabulário e expressão. É uma língua universal. Como o coiné, sobre
uma pequena parte dessa língua constituiu-se uma língua franca de
comunicação internacional que se expandiu com a expansão econômica,
política, cultural e militar dos E.U.A. a partir da 1ª guerra mundial e
que foi se diversificando aqui e ali para atender as necessidades
idiomáticas dos grupos sociais e profissionais que a foram adotando
para uso de comunicação. É o caso, por exemplo, do mundo científico,
como é também o caso da diplomacia.
Desse
modo, o inglês é indispensável para o bom exercício das relações
internacionais como o é também para a eficácia da comunicação
científica. Nem por isso o seu uso dispensa o português como também não
podemos, nós brasileiros, sermos dispensados de nossa cultura, sob pena
de perdermos a liga, o rejunte do mosaico de nossa identidade. A
universalidade da língua portuguesa e a particularidade de seus usos
ricos variados são, nesse caso, como disse, condições da afirmação da
imagem do país, para dentro e para fora.
Usar
o inglês, ou o espanhol, segunda língua de comunicação de nossa época,
como instrumentos de negociação, de intercâmbio de idéias ou de
mercadorias não substitui a função poética da língua portuguesa no
Brasil, esta sim calcada na vivência social e cultural de práticas não
apenas instrumentais, mas lógico-afetivas de cordialidade e razão.
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