Ao pensar na atividade de ensinar e aprender, é difícil escapar da imagem tradicional: um professor que transmite o conhecimento a um aluno pronto para absorver ao máximo os ensinamentos do mestre; e o desempenho do pupilo dependente deste professor que guia, inspira e indica outras fontes seguras de conhecimento. Com o desgaste desse modelo tradicional, durante o século XX, foram surgindo, como reação, uma série de tentativas de atribuir ao aluno um papel mais ativo, mais independente e responsável por seu aprendizado.
Nascido nos anos 1960, o PBL (Problem-based Learning, ou Aprendizado Baseado em Problemas) é uma das alternativas bem sucedidas nessa área. Embora tenha como berço e principal campo a medicina, alastrou-se nas últimas décadas para diversas áreas, das engenharias às ciências sociais. No Brasil, tem crescido o interesse por esse novo método, com a adesão de importantes centros de formação acadêmica. Essa crescente relevância é mais do que suficiente para que sejam levantadas questões sobre os interesses sociais e econômicos envolvidos nessa nova maneira de aprender e ensinar, bem como sobre suas raízes históricas e filosóficas.
A quem interessa?
Para Moacir Ponti Junior, professor da área de ciência da computação na Universidade Federal de Viçosa, o PBL atende principalmente “aos interesses do aluno, que tendem a apresentar grau de satisfação maior para com a disciplina quando esta é oferecida com abordagem PBL”. Ponti, cujas experiências positivas com o PBL deram origem a um artigo em que relata uma maior satisfação e motivação dos alunos com essa metodologia, afirma também que “uma disciplina oferecida com essa metodologia não limita o aluno, tornando-o responsável por alcançar, conforme seu esforço, a profundidade teórica necessária, relacioná-la com conhecimentos obtidos em outras disciplinas e aplicar os conhecimentos na prática”. Porém, a quem mais, além dos alunos, isso se torna interessante? “Acredito que o PBL está formando alunos mais capacitados tanto para o meio científico quanto empresarial”, conclui o professor.
De forma pouco surpreendente, Ponti conheceu o PBL por meio de um projeto pedagógico desenvolvido justamente para o curso de medicina da Universidade Federal de São Carlos. Se na medicina os benefícios desse novo modelo – entre eles a capacitação de indivíduos que cheguem melhor preparados para lidar com os problemas apresentados durante a prática profissional cotidiana – se refletem na melhora dos tratamentos de enfermidades, quando o PBL é aplicado em outras áreas, como as engenharias, entram em jogo interesses de outra ordem.
É interessante, para as empresas privadas e, de modo geral, para todo o setor industrial, que recém-graduados cheguem aos seus quadros de funcionários com o máximo possível de contato com as práticas exigidas no mercado de trabalho. Isso encurta o período de adaptação do indivíduo na transição entre a universidade e a vida profissional e facilita o papel desempenhado nesse caminho pelas empresas (leia-se: pode reduzir os custos com a adaptação dos novatos). Maria Tereza Dejuste, pesquisadora da área de educação da Universidade do Vale do Paraíba, ilustra essa situação com uma interessante metáfora: “durante o pouso, um avião que toque o solo com as rodas já em movimento teria um pouso mais suave do que na forma brusca com que as rodas tocam o solo e imediatamente passam a girar: hoje as empresas querem indivíduos que cheguem à atividade profissional já com a roda girando”.
Segundo Dejuste, as indústrias estão procurando levar problemas concretos para os grupos de alunos sendo formados de acordo com o PBL, que tem entre seus objetivos “a familiarização do aluno com relação ao que ele vai encontrar no mercado de trabalho”, diz. Essa simbiose entre universidade e setor produtivo, pesquisa científica e indústria, é uma tendência já concretizada nos países desenvolvidos, mas longe de se refletir em economias como a brasileira. Enquanto a maior parte das pesquisas vinculadas à inovação tecnológica em países como os Estados Unidos fica a cargo das empresas, no Brasil ainda é tímida até mesmo a própria colaboração entre a produção de conhecimento tecnocientífico e o setor privado. Isso talvez ajude a explicar porque há, junto com o entusiasmo, também ceticismo com relação ao PBL no Brasil.
De qualquer forma, a tendência cada vez maior de procura por metodologias ativas como a PBL pode ser um reflexo desse estreito relacionamento entre pesquisa científica e empresas privadas. Como a busca pelo desenvolvimento econômico brasileiro aponta nesse sentido, é natural que aumente a adesão de instituições de ensino ao PBL. Segundo Ponti, a ideia de que o PBL forma profissionais mais afeitos aos moldes exigidos pelo mercado “se observa provavelmente porque o mercado visa características que o PBL tem por objetivo desenvolver no aluno, como a integração do conhecimento com diferentes áreas, a autonomia em aprender a trabalhar e o trabalho em grupo, em que é o aluno quem corre atrás do conhecimento que resolverá o problema”.
Para Newton Duarte, professor e pesquisador do Departamento de Psicologia da Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o PBL tende a valorar de forma negativa justamente aquilo que seria fundamental à educação: “o papel do professor como aquele que domina um conhecimento teórico que dará bases mínimas para que o aluno identifique o que é essencial nos problemas com que se depara; isso fica profundamente descaracterizado na PBL”. Para Duarte, no PBL “perde-se a referência naquilo que deveria fazer parte do conteúdo básico que o profissional deveria possuir. Assim, o aluno assimila o conhecimento de maneira mais ou menos casual, quase acidentalmente”. A ênfase na prática em detrimento de uma formação teórica mais sólida atenderia, na visão de Duarte, a determinados interesses econômicos: “pensando na área da saúde, o 'aprender a aprender' pode contribuir a curto prazo para que sejam formados profissionais que, centrados na aplicação prática, tornariam-se menos inclinados a questionar criticamente o conhecimento produzido pelos grandes laboratórios da indústria farmacêutica”.
Raízes
O PBL pode ser encarado como uma dentre várias vertentes daquilo que se costuma chamar de aprendizagem ativa. Um modelo de aprendizagem ativa pressupõe que o aluno se torne responsável por seu aprendizado, que faça algo além de assistir à exposição do professor e estudar o conteúdo indicado. No PBL, os alunos se deparam com problemas abertos (ou seja, que permite várias vias de acesso à solução, que também tende a não ser única) e são instados a procurar por si mesmos os meios e os referenciais teóricos necessários para a resolução dos problemas. Como afirma Dejuste, “o professor nem sempre é especialista nos conteúdos abordados pelo problema, mas ele intervém com o método científico, agindo como facilitador”. Ponti defende que o aluno torna-se “responsável por alcançar conforme seu esforço a profundidade teórica necessária, relacioná-la com conhecimentos obtidos em outras disciplinas e aplicar os conhecimentos na prática”.
Esta ênfase em tornar o conhecimento relevante para o aluno, incentivando-o a tomar papel ativo no aprendizado, bem como o rearranjo do papel do professor como aquele que facilita o processo de aprendizado (ao contrário do tradicional professor que disponibiliza o conhecimento para ser consumido passivamente pelos alunos) são característicos do construtivismo, que, à época do surgimento da PBL no Canadá, já tinha uma certa proeminência no meio acadêmico voltado para a compreensão do processo educacional. O construtivismo constitui há muito uma oposição à estrutura de poder, hierárquica, que o modelo tradicional carrega.
O filósofo estadunidense John Dewey foi um dos pioneiros na crítica sistemática ao sistema tradicional de ensino. No final do século XIX, Dewey já combinava uma visão pragmática da educação com um ideário liberal e progressista. Dessa junção, em que entram a defesa da democracia e o comprometimento com a formação de livre pensadores, surgiram as bases teóricas para o movimento conhecido como Escola Nova, que busca superar a ideia da educação como mera transmissão do conhecimento previamente estabelecido entre mestres e alunos.
A pedagogia e a psicologia construtivista tiveram como principal referencial teórico o pensamento de Lev Vigotski. Este teórico marxista erigiu seu construtivismo social no clima revolucionário da Rússia soviética do início do século XX. Mais recentemente, conceitos caros à teoria vigotskiana foram incorporados às mais recentes tendências construtivistas, como o PBL – principalmente a noção de que o aprendizado individual se dá por meio das interações sociais, que o sujeito internaliza até o ponto em que torna-se capaz de trabalhar de maneira autônoma. Na visão de Duarte, Vigotski está sendo apropriado de maneira distorcida: “a ideia de que o aprendizado se deve às interações sociais não implica que o indivíduo necessariamente aprenderá quando se relaciona com outros tão despreparados num determinado tema quanto ele. Uma interação social fundamental para o aprendizado do indivíduo se dá quando ele toma contato com alguém que domina os aspectos fundamentais do conteúdo que deverá aprender. O ensino deveria trabalhar com o conceito de que, para aprender, o sujeito depende da ação educativa”.
Essa fundamental interação social entre experientes conhecedores e aprendizes perde-se com o PBL – dada a ênfase no trabalho coletivo e no aprendizado do indivíduo com seus pares. Embora os tutores ainda desempenhem um papel de orientadores do aprendizado, Dejuste lembra que “é exigida dos tutores uma intensa preparação sobre o método do PBL, mas não necessariamente um profundo conhecimento e domínio sobre determinada área do conhecimento solicitada para a resolução dos problemas propostos”. Uma outra faceta desse mesmo problema foi levantada por H. Coenraad Hemker, professor e pesquisador da holandesa Universidade de Maastricht (um dos berços do PBL), num artigo de 2001 publicado na revista European Review: “o PBL torna a identificação com um professor por parte dos alunos quase impossível”. Hemker, cuja experiência como docente inclui o PBL, afirma que a identificação com a figura de um professor é essencial para o aprendizado, inclusive na idade adulta. Se, na adolescência, a identificação com uma figura de destaque leva à idealização (e à idolatria), na maturidade ela pode ocorrer sem prejuízo para o capacidade crítica do indivíduo, ao mesmo tempo em que motiva seu aprendizado.
Em maior ou menor grau, o construtivismo prevê que a maneira de aprender variará de acordo com o indivíduo. Por isso, a prescrição de regras e métodos de forma padronizada estaria fadada ao insucesso. O PBL, neste sentido, tem suas raízes fincadas no construtivismo, pois procura tornar relevante e significativo o aprendizado de acordo com os referenciais que o aluno já tem ou que terá de encontrar independentemente de uma figura que – na visão dos críticos do modelo tradicional – lhe imponha qual seria o melhor caminho a ser tomado. Chama os alunos, em certa medida, para a construção do próprio conhecimento que adquirem. Assim, desse ponto de vista, o aprendizado poderia ser entendido já como uma extensão da produção de conhecimento.
Uma sala de aula que funcionasse como um laboratório e, ao mesmo tempo, como um lugar de livre pensamento, de busca por conhecimento e soluções, sem receitas ou cânones a serem seguidos: estes objetivos parecem ser inquestionáveis. Menos clara, no entanto, é qual exatamente seria a contribuição do PBL para alcançar esses objetivos. Talvez só o tempo poderá dizer se uma novidade como o PBL será uma força libertadora e encorajadora da reflexão e do pensamento crítico ou os afogará num oceano de estreiteza teórica e conhecimento prático interessante para um mercado de trabalho que exige formação técnica em vez de pensadores críticos. Ainda não é possível encontrar uma resposta para esta pergunta – mas, como ocorre com o que o PBL tem de melhor, a solução parece estar em aberto para ser construída.
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