10/04/2007
Alertas sobre os possíveis impactos ambientais que a extensão da produção canavieira poderá gerar e sobre a precariedade do trabalho presente nos canaviais - que aproxima, muitas vezes, a rotina dos cortadores de cana da escravidão – fazem parte da polêmica em torno do etanol, recheada com essas e outras questões que não são novas no Brasil. Embora colocadas num novo contexto, a história do Brasil nos faz lembrar que a monocultura canavieira foi profundamente marcada (ao longo de, ao menos, quatro séculos) pelo escravismo e pela a destruição do meio ambiente. Esses e outros elementos (políticos, culturais, sociais) integram a chamada “civilização do açúcar”, esmiuçada por Gilberto Freyre no livro Nordeste – aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.
Publicado em 1937, a proposta do livro, segundo Freyre, é realizar um estudo ecológico sobre o Nordeste brasileiro. Não o “outro Nordeste” das secas, do semi-árido, do sertão cujas atividades principais são a pecuária e a plantações de algodão. Mas o Nordeste que se estende do Recôncavo baiano ao Maranhão cujo o centro é Pernambuco e, particularmente, a cidade do Recife. Esse Nordeste cuja estrutura é baseada na escravidão, no latifúndio e na monocultura canavieira. E que, segundo Freyre, por algum tempo foi o “centro da civilização brasileira”.
A cana-de-açúcar é o principal personagem do livro. Através dela, e ao longo de seis capítulos, Freyre analisa a relação entre o homem e a natureza, sempre mediada pela cultura: as relações entre senhores de engenho e seus escravos são sempre descritas através de suas relações com as matas, os rios e os animais; a partir dos valores que estão sendo construídos com a extensão dos canaviais e, nesse sentido, com a constituição de uma civilização do açúcar. As relações entre o homem e a natureza, estabelecidas através da monocultura da cana, não podem, assim, ser dissociadas das relações dos homens entre si. Esse seria o aspecto inovador de Nordeste e, ao mesmo tempo, o que lhe distingue de Casa-Grande&Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936), obras nas quais está mais explícito o projeto freyreano em se debruçar sobre a formação da família patriarcal e seu impacto na sociedade brasileira. Contudo, a reconstrução de costumes e hábitos das famílias de engenho também está presente em Nordeste: a arquitetura triangular da “casa-grande, engenho e capela”, as tradições culinárias, as práticas sexuais, os provérbios e folguedos populares etc. O livro é resultado de uma pesquisa de caráter tanto historiográfico (cartas e arquivos pessoais de senhores de engenho, anúncios e artigos de jornais do século XIX, documentos da Coroa portuguesa) como de uma espécie de “trabalho de campo” realizado por Freyre na companhia de Pedro Paranhos - a quem o livro é dedicado – amigo pessoal e herdeiro do engenho de Japaranduba.
A partir de uma dessas incursões, Freyre descreve como a destruição das matas em nome do “exclusivismo brutal” da cana fez com que senhores de engenhos, como Paranhos, se tornassem ignorantes de suas terras. “Ele sabia quase tão mal quanto nós, menino de cidade, os nomes das árvores da mata grande do seu engenho. Entretanto eram suas conhecidas velhas desde o tempo de menino. Mas simples conhecidas de vista. Foi preciso que o caboclo nos fosse dizendo: isto é um pé disso; isto é um pé daquilo; isto dá um leite que serve para ferida brava; isto dá um chá que serve para as febres”. Dessa ignorância é que se fez a destruição da Mata Atlântica, através da coivara (queimada da vegetação rasteira) e do machado, já que a lenha era o combustível das fornalhas dos engenhos – somente no século XIX, o bagaço da cana substituiu a madeira. Mas surgiu, então, o trem a vapor...
Freyre também descreve os usos e costumes em torno da água, desde a utilização dos rios como instrumento de transporte - diante das dificuldades e da lentidão que os carros de boi e os cavalos tinham para se locomover no solo de massapê, úmido e pegajoso – até sua importância para o lazer: os banhos de rio, as festas na várzea, sem contar a própria importância da pesca. Hábitos que serão comprometidos com o lançamento, pelas usinas, das caldas das destilarias e outros detritos poluidores dos rios. “A monocultura da cana no Nordeste acabou separando o homem da própria água dos rios; separando-o dos próprios animais - “bichos do mato” desprezíveis ou então considerados no seu aspecto único de inimigos da cana, que era preciso conversar à distância do engenhos (como os próprios bois que não fossem os de carro). E não falemos aqui da distância social imensa que a monocultura aprofundou, como nenhuma outra força, entre dois grupos de homens – os que trabalham no fabrico do açúcar e os que vivem mal ou voluptuosamente dele”(pág. 81).
Essa distância social se reflete na relação com a natureza, com os animais, por exemplo. Com os dois grandes animais da civilização da cana-de-açúcar no Nordeste: o cavalo e o boi. “O senhor de engenho foi quase uma figura de centauro: metade homem, metade cavalo”, afirma Freyre. “Os dominadores da terra quase não têm ganho nenhuma vitória sobre os revoltados, sobre os insubmissos, sobre os mal satisfeitos – gente quase sempre de pé, sem terra e sem cavalo -, que não tenha sido uma vitória de homens majestosamente a cavalo”. E o boi teria sido o melhor companheiro do escravo, do negro que, segundo Freyre, seria uma espécie de boi “pela sua adaptação melhor e mais segura à rotina da lavoura da cana, à sedentariedade e ao vagar do trabalho agrícola” ( pág. 105).
Embora tenha associado a “mansidão” do boi ao escravo negro, Freyre, também faz referências, em várias passagens do livro, à resistência negra: cita o receio dos senhores diante da revolução promovida pelos escravos no Haiti no final do século XVIII, sem contar inúmeras revoltas regionais (como a liderada pelo “mulato” Pedro Pedroso, que tomou o Recife em 1823). E o próprio Quilombo de Palmares. Palmares é invocado por Freyre como exemplo de um tipo de ocupação “socialista” da terra – baseada na policultura e na pequena lavoura - que não passa pelo imperialismo destrutivo dos engenhos.
Nesse ínterim é que Freyre critica a postura dos senhores de engenho diante da natureza – o modo extremamente predatório com que ocuparam suas terras – e, para confirmar a regra, enfatiza algumas exceções. Assim é que ele invoca a figura do português Duarte Coelho, primeiro donatário da capitania hereditária de Pernambuco, que fez da cana-de-açúcar não um “substituto vegetal do ouro e dos rubis” mas uma organização agrícola baseada numa maior afeição à terra. “Duarte Coelho amou as árvores e se afeiçoou à terra; a sua conquista de Pernambuco foi uma colonização criadora: onde dominou a influência do velho Duarte, o canavial avançou sempre com a capela e a casa-grande animando a paisagem de elementos novos, dando-lhes cores novas, novas fontes de vida e não apenas matando os índios, os animais e as árvores” (pág. 129)
Passagens como essas deixam transparecer o luso-tropicalismo freyreano, que afirma as particularidades da colonização portuguesa, principalmente no que diz respeito às relações entre senhores e escravos, que seriam mais distanciados socialmente nas colônias francesas e inglesas nas Antilhas (outra região produtora de açúcar) do que no Brasil onde tudo seria mais ameno e menos violento. Tese há muito contestada por inúmeros historiadores. Embora não deixe de descrever alguma violência embutida nas relações entre senhores e escravos, a ênfase de Freyre, mais uma vez, é na própria miscigenação (cultural, mas também biológica) que, para ele, parece amortecer esses conflitos. Uma espécie de açúcar que torna “mais doce” as relações. Não é à toa, portanto, que a ele se atribui a origem do mito da democracia racial no Brasil.
Freyre também tece, ao longo do livro, uma distinção entre senhores de engenho e usineiros. O contraponto é entre a aristocracia do açúcar, que se iniciara com a colonização portuguesa, no século XVI, com a formação das famílias de engenho tradicionais, e as usinas da segunda metade do século XIX, que intensificaram a destruição do meio ambiente. E mudaram as relações com os trabalhadores. “Em geral, o trabalhador de eito não existe para o industrial ausente ou quase-ausente como um conterrâneo cujo bem-estar o interesse; nem o fornecedor de cana como um consórcio cuja situação o afete. Ao contrário: tem-se visto o preço do açúcar se elevar, com vantagem para o usineiro, e ao mesmo tempo as usinas baixarem os preços de sua tabela de compra de cana” (pág. 180).
Operando com esses contrastes, o Nordeste seria assim a expressão desse “equilíbrio de antagonismos” (expressão utilizada por ele em Casa-Grande&Senzala) inscrito nos “homens do povo” mas também nos “grandes senhores da política, da diplomacia e da administração do império” como Joaquim Nabuco, que combinou abolicionismo e orgulho de sua origem aristocrática. Por isso, segundo Freyre, o Nordeste é o “centro da civilização brasileira”: “A Antiga civilização do açúcar no Nordeste, de uma patologia social tão numerosa, dá-nos essa mesma impressão, em confronto com as demais civilizações brasileiras – a pastoril, a das minas, a da fronteira, a do café. Civilizações mais saudáveis, mais democráticas, mais equilibradas quanto à distribuição da riqueza e dos bens. Mas nenhuma mais criadora do que ela, de valores políticos, estéticos, intelectuais” (pág. 195).
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