10/05/2009
Mesmo após completar cem anos de vida, Lévi-Strauss continua a ser uma referência para antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos e pesquisadores dos mais diversos campos do conhecimento, em particular nas discussões sobre o estruturalismo. E o Brasil dos anos 1930, em especial o Brasil indígena, serviu de palco para o desenvolvimento de seu modelo lógico de oposições como um modelo universal a todas as culturas existentes. Lévi-Strauss estruturalizou o Brasil e, agora, é a vez do Brasil estruturalizar o autor a partir de uma releitura de suas obras. É com esse propósito que diversos antropólogos foram convidados a participar da coletânea Lévi-Strauss: leituras brasileiras, publicada em 2008 pela editora Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), organizado por Ruben Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre.
Inicialmente, a leitura se revela como um quebra-cabeça de difícil resolução àqueles que não estão interados com o pensamento lévi-straussiano e nem com a linguagem característica da antropologia. Os textos de Eduardo Viveiros de Castro, Tania Stolze Lima e Marcela S. C. de Souza, por exemplo, são bastante densos, porém mesmo neles é possível que o leitor pouco familiarizado se aproxime das ideias de Lévi-Strauss e comece a juntar algumas das peças desse quebra-cabeça. Mas caso isso não ocorra num primeiro momento, por que não pular o capítulo e ir para o próximo? Pois essa é uma possibilidade factível, já que a própria estrutura do livro permite que os ensaios sejam lidos em qualquer sequência. E conforme se avança nessa leitura não-linear, rizômica e imbricada, o leitor começa a perceber que os textos, por mais diversos que sejam, desdobram-se em torno de dois eixos principais: um referente ao estruturalismo do início das obras de Lévi-Strauss, que foi inaugurado em As estruturas elementares do parentesco (1949), e outro ao estruturalismo do final de sua trajetória, que pode ser observado nos quatro volumes de Mitológicas (1964-1971).
Como explica Márcio Goldman, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no artigo “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”, o método estruturalista empregado pelo antropólogo sofreu transmutações ao longo de seu percurso. No estruturalismo de As estruturas elementares do parentesco, a inteligibilidade é dada pela redução da complexidade em simplicidade, no caso, a ordem subjacente de diferentes culturas quanto aos sistemas de casamento é reduzida à regra da proibição do incesto e aos sistemas de trocas. Outro artigo chamado “A aliança em questão: observações sobre um caso sul-americano”, de Márcio Silva, mostra ainda como esses sistemas de troca estabelecem vínculos de comunicação entre os homens – influência dos sistemas linguísticos de Saussure – e como a proibição do incesto assegura a reciprocidade entre os grupos – influência da dádiva de Mauss. O autor também explora as idéias de Héritier sobre as estruturas elementares e complexas de parentesco para desenvolver uma análise original sobre o povo indígena sul-americano Enawenê-Nawê.
Outra abordagem interessante é feita em “Por que a identidade não pode durar: a troca entre Lévi-Strauss e os índios”. Nesse ensaio, Marcela Stockler Coelho de Souza, professora da Universidade de Brasília, desmistifica algumas das críticas dirigidas ao sistema de trocas proposto por Lévi-Strauss, como a de que os laços biológicos – consanguinidade – seriam anteriores aos laços culturais – aliança entre grupos – ou de que a mulher é o objeto exclusivo da troca. Associada a esses dois aspectos mal-compreendidos da obra de Lévi-Strauss, tem-se a discussão sobre o dualismo contido em As estruturas elementares de parentesco, que também é compartilhada por Tania Lima, da Universidade Federal Fluminense, em “Uma história do dois, do uno e do terceiro”. Assim como afirma o próprio Lévi-Strauss em 1952, ambas as autoras mostram que essa organização dualista não daria conta de explicar estruturas sociais complexas como as das sociedades indígenas do Brasil central. Trata-se, então, de um dualismo com troca triádica, ou seja, uma relação mediada por uma terceira entidade de natureza híbrida aos opostos. É como o Sol e a Lua, personagens do mito tupinambá narrado por Beatriz Perrone-Moisés, da Universidade de São Paulo (USP), em “Lévi-Strauss: aberturas”, que são mediados pelo crepúsculo.
Agora falando do período mais posterior da trajetória de Lévi-Strauss, Márcio Goldman explica que o estruturalismo de Mitológicas opera o inteligível pela manutenção da complexidade. Isso significa que a simplificação das diferentes manifestações culturais já não é mais suficiente para a apreensão dos fundamentos universais envolvidos com a passagem da natureza à cultura, que é narrada nos mitos ameríndios. Não há, portanto, como resumir Mitológicas sem que haja perda da unidade do conjunto, pois são justamente as ligações lógicas entre os mitos que revelam a inteligibilidade das culturas. E tendo esse movimento do contínuo ao discreto como forma legítima de construção de significados, Ruben Caixeta de Queiroz coloca o cinema como uma alegoria possível no pensamento lévi-straussiano em “Do movimento ao fixo (e vice-versa) em Lévi-Strauss ”. Em oposição aos mitos, os ritos e o cinema envolvem fragmentação e repetição de modo a introduzir diferenças mínimas entre si e imperceptíveis a olho nu. Essas diferenças propiciam a reconstrução do movimento por um fluxo de imagens ilusório, o que torna o movimento do descontínuo ao contínuo impossível.
Se o cinema é tido como impossível dentro dessa perspectiva do antropólogo, o mesmo não pode ser dito da história. Contrariando a perspectiva ortodoxa, Oscar Calavia Sáez, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostra em seu ensaio “A história pictográfica” que as diferentes dimensões da obra de Lévi-Strauss podem ser interpretadas historicamente, apesar da ausência da cronologia que sustenta as ciências ideográficas. Os mitos de Mitológicas são relatos que usam as categorias do sensível para contar o que alguma vez aconteceu com os povos indígenas: uma história de histórias, uma história pictográfica. Outro assunto, já não impossível à Lévi-Strauss, mas para grande parte de seus leitores, é a fórmula canônica do mito. O ensaio de Mauro de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, torna esse aspecto instigante da obra de Lévi-Strauss bem mais inteligível, quando utiliza o exemplo A oleira ciumenta (1985) para análise.
O mito de Jívaro, presente nessa obra, narra a história de como o Sol e a Lua, outrora na Terra, entram em conflito por causa da esposa Ahôho e partem rumo ao céu. Ao tentar seguir os maridos, Ahohô cai de volta à Terra e se transforma no pássaro Engolevento, enquanto o cesto de argila que carregava cai no chão e fornece a matéria-prima para os ceramistas. Que relação pode haver entre o ciúme, o Engolevento e a cerâmica? Utilizando a fórmula canônica do mito, que não é uma simples lógica por analogia de oposições, podemos concluir, por dedução lógico-empírica, que a conexão entre o ciúme e o Engolevento se deve ao fato desse pássaro ser de um caráter solitário e triste. Entretanto, a relação entre a cerâmica e o Engolevento exige uma dedução transcendental, em que o quarto elemento é evocado por uma dupla torção do jogo de oposições. Esse elemento ausente no plano semântico da narrativa é a Maria-de-Barro, ave ceramista que equivale ao oposto do Engolevento.
A dupla torção também seria o devir do filósofo francês Gilles Deleuze, diz Eduardo Viveiros de Castro (leia entrevista) em “Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. Para ele, o conceito de devir implica na transformação de um em outro, tal como acontece nas práticas de canibalismo e xamanismo dos povos indígeno-amazônicos. Ao devorar um inimigo de guerra, o devorador se coloca sob o ponto de vista de seu inimigo, da mesma forma que o xamã adota a perspectiva de corporalidade de outra espécie. Essa comunicação transversal entre incomunicáveis converge para o esquema animista de Descola, pois somente quando todos os outros seres vivos e povos forem vistos como pessoas é que se dá o perspectivismo cosmopolita. De modo análogo, Lévi-Strauss se colocou sob o ponto de vista indígena, permitindo a troca entre ele e o índio – título do ensaio de Marcela S. C. de Souza. E a grande contribuição de Eduardo Viveiros de Castro para os estudos indígenas contemporâneos foi justamente mostrar que o perspectivismo amazônico, já utilizado por Lévi-Strauss, é a ferramenta necessária para que a antropologia se sustente como uma ciência social do observado.
Lévi-Strauss: leituras brasileiras
Ruben Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre
Editora UFMG, 2008 (327 p.)
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