A morte é uma presença constante em nosso cotidiano. Queiramos ou não, caminhamos para ela. Reconhecer a morte é reconhecer que somos limitados, que o humano não é inabalável, que a fraqueza humana existe. Mais cedo ou mais tarde nossos corpos degenerarão, conduzindo-nos para o fim de nossa existência terrena. A cada década, a cada ano, mesmo que a ciência tenha avançado para nos afastar dela, a morte ainda é uma temática de difícil abordagem. A ciência gerou formas, se desenvolveu e nos permitiu nos afastarmos ainda mais dela. Sua percepção é encarada como um tabu, como algo inatingível quando está longe de nós e dos nossos entes queridos. Quando se aproxima, nos deixa desamparados, inseguros e estáticos.
A bioética veio de encontro a essas necessidades. Ela surgiu e foi referenciada em nome e aplicação a partir estudos do médico Potter que, em 1971, na sua obra Bioethics – bridge to the future, propôs uma interface entre os estudos da ciência e da humanização. Nos trabalhos na área, havia grande preocupação com valores humanos, cabendo à filosofia, à teologia e à psicologia definirem horizontes. Num segundo momento, a filosofia tomou a frente, numa vertente de secularização. Entre 1985 e 2000, a bioética foi adquirindo um caráter multidisciplinar, envolvendo ciências sociais, direito, antropologia e psicologia, além da teologia. Atualmente, passou a ter relevância a relação saúde/paciente, os aspectos relativos à autorização de procedimentos médicos, a autonomia, direitos humanos e a fé1.
Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS), destacou o papel da espiritualidade na esfera da saúde e da morte, assim como na recuperação de enfermos, na relação médico/paciente e na terminalidade da vida. Neste artigo, fazemos uma reflexão sobre a morte à luz da bioética e da religiosidade.
A morte e seu enfrentamento
Para os que, como nós, têm uma crença e professam uma fé, há uma forma bem definida de encarar essa questão – em particular quando estamos administrando a extrema dor de perda imediata de um ente querido – que gostaríamos de detalhar neste artigo.
Ao receber a notícia da morte de um irmão ou irmã, todo cristão é convidado a entregar o falecido nas mãos de Deus, acolhendo seus familiares e amigos. Normalmente, a primeira acolhida ao irmão e irmã que acabou de “perder” um ente querido deve ser marcada mais pela proximidade e pela palavra amiga silenciosa do que por discursos teologais que, naquele momento, pouco repercutirão aos ouvidos do sujeito que sofre. No primeiro instante após a notícia do falecimento, pode ser que alguns irmãos, por mais engajados no seguimento a Cristo e no serviço à Igreja, profiram, mediante o sofrimento, pensamentos contrários à fé que professam. Todavia, esse não é o momento mais adequado para interpelações ou admoestações. O mais sensato, para esse momento, é uma acolhida silenciosa, generosa, isenta de debates conflituosos. A catequese, se necessária, deverá ocorrer quando já houver passado o período de turbulência causado pela morte do ente querido.
Nesse primeiro acolhimento, logo após a morte, é preciso apresentar a concepção cristã de morte, não apenas por palavras, mas também pela própria postura diante da realidade que nos é apresentada. Aqueles que sofrem com a perda devem ser convidados a entender a morte não como fim da vida, mas como transformação da mesma. A vida não nos foi tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado nos céus, um corpo imperecível. Para nós cristãos, a celebração da morte não é simplesmente celebrar o término de uma vida, mas a planificação da mesma mediante a comunhão com a páscoa de Cristo. Os familiares e amigos do falecido são convidados a celebrar a pascalidade da morte cristã. Assim, para que a celebração das exéquias produza frutos esperados, acolhendo e confortando os familiares e amigos do ente falecido, é importante acolher, acolher sempre. Não é o momento de se evangelizar, mas se estabelecer os primeiros contatos2.
A morte traduz sentido de distância, sentido de falta de pertença. Isso acontece porque sentimos falta de quem amamos. Não choramos a falta de quem não nos é caro. Quanto maior é a nossa dor da perda, maior é o entendimento de que o falecido tinha um valor incomensurável a nós. Assim, se estabelece o luto. Momento de saudades. Momento de repassar em nossa mente histórias do passado onde a figura de quem se foi é destacada, verdadeiramente repassada. Por que não aproveitamos melhor a companhia do falecido enquanto ele tinha sua vida terrena? Por que não interagimos mais com seus ensinamentos, sabedoria ou mesmo sentimentos enquanto vivo? Nossa tendência é sempre achar que fizemos pouco para aquele que partiu. Que ele merecia muito mais de nossa atenção e apreço.
Morrer na esfera da bioética
Na ótica da bioética, alguns aspectos são pertinentes quando a morte nos ronda. Quando ela dá ares de que está chegando. Um deles é o princípio da autonomia, constatação de que nos cuidados aos doentes, muitas vezes, ocorre uma relação paternalista, assimétrica. Temos real capacidade de decidir sobre as intervenções propostas em hospitais que podem possibilitar prolongamento de nossas vidas? O conceito de terminalidade nos é claro? De um lado, está o poder da equipe de saúde e, do outro, a submissão do paciente. Quando se favorece a autonomia, ocorre uma relação simétrica entre profissionais e pacientes, sendo que estes últimos participam de maneira ativa das decisões que envolvem seu tratamento. Neste aspecto, para aqueles que têm fé, a tomada de decisões é melhor fundamentada é mais lúcida e menos traumática. Assim, a autonomia é ampla e irrestrita quando o paciente é amplamente informado, quando o instrumentalizam e o habilitam para a tomada de decisões, diante das opções existentes em cada situação. Isso possibilita entenderemos a morte como parte da vida e não uma intrusa indesejável.
Os profissionais de saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva se deparam constantemente com situações de terminalidade da vida. É claro que está em suas mãos ações que podem ser entendidas, em um primeiro momento, como aceleração do processo de morte. Realizar ou não uma reanimação. Retirar ou não suportes artificiais à vida. Existe uma pluralidade de respostas possíveis e que vários pontos de vista devem ser considerados, não se tratando de um relativismo sem limites. Momentos difíceis que podem ser mais bem entendidos e superados quando os pilares de beneficência e não maleficência são bem esclarecidos 3,4.
Outro ponto peculiar na relação vida e morte é o avanço tecnocientífico médico, o prolongamento da vida, às vezes sem limite, e o dilema entre a sacralidade da vida e uma preocupação com a sua qualidade. Como estabelecer qualidade de vida nesses momentos? Estamos certos de que a vida é um bem maior à luz do mistério sagrado de Deus? Se for a vida, como valor absoluto, que deve ser mantida a todo custo, nada poderá ser feito para a sua abreviação, e deve-se evitar a morte a todo custo. Com o avanço tecnicista, a vida tem sido prolongada a cada dia, porém devemos estar atentos a todas as formas de prolongamento sem a certeza científica da sua qualidade, bem como de que a vida não está sendo abreviada.
O valor do dia de finados
Consideramos importante, ainda, discorrer um pouco sobre o significado da vida e da morte para os cristãos, o que acontece com maior frequência todo começo de novembro, quando se faz uma reflexão mais aprofundada em função do dia de finados.
Nessa data, os cristãos batizados são convidados a santificar-se, e os que decidem viver plenamente o mistério pascal de Cristo não têm medo da morte. Porque ele disse: "Eu sou a ressurreição e a vida". Para todos os povos da humanidade, seja qual for a origem, cultura e credo, a morte continua a ser o maior e mais profundo dos mistérios. Mas para os cristãos, tem o gosto da esperança, gosto de que a vida não se resume a uma leitura terrena. Relembremos aqui o mistério pascal de Cristo: morte e ressurreição. Ele nos garantiu que, para quem crê, for batizado e seguir seus ensinamentos, a morte é apenas a porta de entrada para desfrutar com ele a vida eterna no Reino do Pai. Enquanto para todos os seres humanos a morte é a única certeza absoluta, para os cristãos ela é a primeira de duas certezas. A segunda é a ressurreição, que nos leva a aceitar o fim da vida terrena com compreensão e consolo. Para nós, a morte é um passo definitivo em direção à colheita dos frutos que plantamos aqui na Terra.
Assim sendo, até quando Nosso Senhor Jesus Cristo estiver na glória de seu Pai, estará destruída a morte e a ele serão submetidas todas as coisas. Alguns são seus discípulos peregrinos na Terra, outros que passaram por esta vida estão se purificando e outros, enfim, gozam da glória contemplando Deus. Os glorificados integram a Igreja triunfal e são Todos os Santos, os quais, nós, os entes da Igreja militante, cristãos peregrinos na Terra, comemoramos no dia primeiro de novembro. Os finados integram a Igreja da purificação e são todos os que morreram sem arrepender-se do pecado. Todos os dias, em todas as missas rezadas no mundo inteiro, existe um momento em que se pede pelas almas dos que nos deixaram e aguardam o tempo profetizado e prometido da ressurreição. A Igreja ensina-nos que as almas em purificação podem ser socorridas pelas orações dos fiéis. Assim, esse dia é dedicado à memória dos nossos antepassados e entes que já partiram, no sentido de fazer-nos solidários para com os necessitados de luz e também para reflexão sobre nossa própria salvação.
Encontramos a celebração da missa pelos mortos desde o século V. Santo Isidoro de Sevilha confirmou o culto no século VII. Tempos depois, em 998, por determinação do abade santo Odilo, todos os conventos beneditinos passaram, oficialmente, a celebrar "o dia de todas as almas", que já ocorria na comunidade no dia seguinte à festa de Todos os Santos. A partir de então, a data ganhou expressão em todo o mundo cristão. Em 1311, Roma incluiu, definitivamente, o dia 2 de novembro no calendário litúrgico da Igreja para celebrar "Todos os Finados". Somente no início do século XX, em 1915, quando a morte, a sombra terrível, pairou sobre toda a humanidade, devido à I Guerra Mundial, o papa Bento XIV oficiou o decreto para que os sacerdotes do mundo todo rezassem três missas no dia 2 de novembro, para todos os finados.
Considerações finais
Sabemos todos que o momento atual é muito rico, em função de infinitos horizontes descortinados pela ciência e pela tecnologia, que possibilitam a criação e a realização de projetos relacionados à proteção e ao cuidado com a leitura da morte. Mas sabemos, ao mesmo tempo, que o caminho para a degradação e até para o estabelecimento de uma cultura de morte também está posto. É exatamente por isso que não podemos dispensar, quando falamos de morte, de fazer um exercício bioético e um diálogo religioso. A bioética é um campo do saber que desponta, trazendo a esperança conferida pela união da busca da compreensão da vida com a busca por uma ética que oriente nosso presente e aponte alternativas humanizadoras para o futuro que nos espreita. Vida e morte são faces de uma mesma moeda que, para nós cristãos, precisam ser compreendidas à luz do mistério de Jesus Cristo, o Deus que se encarna na história e que se revela como aquele que está sempre, e em todas as circunstâncias, a favor da vida e da vida de todos.
Paulo Franco Taitson é diácono permanente, responsável pela Pastoral Hospitalar na Arquidiocese de Belo Horizonte. Professor adjunto de anatomia humana, reprodução humana e bioética da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Laura Raiany Tereza Freitas Gomes é monitora de anatomia humana e acadêmica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Referências bibliográficas
1. Taitson, P.F.; D’Assumpção, E.A.; Berti, S.M.; Almeida, O.J. Bioética: vida e morte. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2008.
2. Taitson, P.F.; Maria, E.E. “Valores éticos no início da vida”. Enfermagem Revista, 2012. 15:138-40.
3. Siqueira, J.E.; Pessini, L.; Siqueira, C.E. “Olhar bioético sobre a terminalidade da vida e os cuidados paliativos”. In: Porto, D.; Schlemper Junior, B.; Martins, G.Z.; Cunha, T.; Hellmann, F. Bioética: saúde, pesquisa, educação. v.1. Brasília: CFM/SBB, 2014. p. 245-263.
4. Breitbart, W. “Thoughts on the goals of psychosocial palliative care”. Palliat Support Care, 2008. 6:211-2.
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