07/07/2006
Em
meio a pestilências, fome e pobreza, há espaço para olhar a beleza, mesmo como forma de acobertar a
realidade. O longo período de dez séculos que compõe a Idade Média foi, para
muitos, ausente em sensibilidade estética, bárbaro e sombrio. Localizada entre
a Antiguidade Clássica (4000 a. C. ao século IV), com seu olhar voltado sobre o
cosmo e a natureza, e a Renascença (século XIV a XVI) , com o papel do homem de
novo protagonista da história antes dominada pela religião, a Idade Média foi
vista por seus sucessores como um período em que pouco aconteceu. Nesta obra
escrita em 1987, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco mostra que o
período contempla reflexões e mudanças temporais que contribuiriam para o salto
dado durante o Renascimento que, como o próprio nome diz,
indica a visão em relação ao período anterior.
A beleza é, sobretudo, vista pelos medievais como um
atributo divino e, portanto, as obras feitas pelos homens são consideradas
imitações da realidade criada por Deus, excluindo assim qualquer possibilidade
de processo criativo. Com isso, a arte não era tida como uma forma de modificar
a realidade ou propor uma diferente visão da mesma, mas sim espelhava a
natureza. “A degustação estética (...) consiste em perceber na coisa concreta
um reflexo ontológico da virtude participante de Deus”. O belo está em todos os
lugares e é sinônimo do bem, da verdade, refletindo uma conjunção harmônica de
beleza física e virtude.
Mas como entender a beleza com uma definição ampla o
suficiente para justificar qualquer coisa? Entre as explicações está o
conceito de proporção, tomado da Antiguidade, em que há um gosto por uma
perfeição numérica. Explica-se a preferência estética através das proporções
entre as partes e das correspondências destas com o todo. É possível achar
correspondência entre o cosmos e as coisas produzidas por Deus, entre o macro e
o micro, afinal são todas obras do mesmo autor.
A idéia da proporção chega à Idade Média por meio da
influência dos estudos matemáticos da música feitos por Pitágoras na
Antiguidade. A
escolástica – filosofia ensinada nas escolas da época, responsável por manter
os valores cristãos – ensinava música juntamente com aritmética, geometria e
astronomia, aproximando o que hoje é considerado arte e ciência. A arquitetura
também fazia usos intensos da simetria, ordem, proporção, também como modo de criar uma
consciência estética do ofício; sabe fazer aquele que domina a técnica.
No local sagrado, os vitrais em rosácea da arte
gótica, exibem a perfeita proporção arquitetônica. Originado no século XII, esse
princípio estético considerado ideal representa bem a dualidade medieval belo-divino,
uma vez que permite a entrada de luz (sinônimo do divino) e cores onde antes
era escuro, negro, pesado. E são estes novos elementos, de luz e cores, que
passam a ser considerados na explicação da beleza qualitativa, aquela que é
fruto de uma reação espontânea, que difere da beleza numérica, proporcional.
A luz, enquanto metáfora das realidades espirituais,
segue o pensamento dogmático teológico medieval. A literatura exalta a
luminosidade. O gosto cromático é simplificado e imediato, ou seja, nas
pinturas as cores não se misturam para formar novos tons, degradês,
esfumaçados. Na poesia elas são as mesmas de suas representações reais: o
sangue é vermelho e a relva verde. As cores também aparecem nos costumes, nas
roupas, nos enfeites e nas armas.
Não coincidentemente, o filósofo inglês Roger Bacon
(1214-1294) proclamou a ótica como nova ciência, estudou a refração da luz,
desenvolveu lentes com sugestão de uso para correção da visão e contribuiu para
estabelecer o método científico. A estética medieval participava, assim, dos avanços no
pensamento científico e na prática tecnológica.
A beleza também surgia como metamorfose, que fascinava
o homem medieval como esforço interpretativo do mundo. “As alegrias da visão, da audição,
do olfato, do tato nos abrem para a beleza do mundo, para que nela descubramos
o reflexo de Deus”. Assim, os objetos visíveis devem ser compreendidos como a significação e a
declaração das coisas invisíveis (divinas). Umberto Eco pontua que o filósofo e
bispo católico Santo Agostinho (354-430) foi o primeiro a fundar a teoria do
signo, já no século IV, no início da Idade Média. “Ele afirma com energia que o
signo é toda coisa que faz vir à mente alguma coisa além da impressão que a
própria coisa causa a nossos sentidos”. As enciclopédias medievais acumulam o
conhecimento real e fantástico, trazendo referências simbólicas múltiplas e
registrando sentidos contraditórios. Interpretam, sobretudo, os símbolos
presentes no livro sagrado.
Erazmus Ciolek Witelo (1230- pós 1280), cientista
originário da região onde hoje está parte da Polônia, agregou um importante
elemento à percepção do belo, que ia além da visão de luzes e cores. Em sua perspectiva este
cientista analisou a relação sujeito-objeto e concluiu que existem realidades
mais complexas que a visão não compreende sozinha, mas que requer um ato de
raciocínio que compara entre si as diferentes formas percebidas com o
conhecimento prévio sobre a coisa, gerando uma visão conceitual. Há assim, uma
relatividade do gosto e que pode variar conforme o tempo e a região, ou seja,
não há regras que estabelecem a beleza, mas ela é determinada de acordo com a
interação com aquele que a percebe. “O que provoca o prazer”, diz Eco, “é a objetiva
potencialidade estética, e não é o prazer que define ou determina a beleza de
uma coisa”.
Beleza funcional
A
percepção do belo com suas precisões matemáticas atinge também a adequação da
forma a sua função, a exemplo do corpo humano e de todas as formas da natureza.
Mas a relutância em diferenciar estética e funcionalidade, arte e técnica, faz
com que se insira a estética em todos os atos da vida. Os próprios princípios
da ciência da época são relacionados a razões de beleza. “Falta à Idade Média uma
teoria das belas-artes, uma noção de arte como a concebemos hoje, como produção
de obras que têm por objetivo primeiro a fruição estética, com toda a dignidade
que esta destinação comporta” .
No entanto, as artes são sub-divididas em nobres e manuais,
sendo que a segunda se diferencia pelo esforço físico. Em plena sociedade feudal, o
trabalho braçal era visto como inferior. Mesmo sendo
funcional e imitando a natureza, era claro que a arte não poderia criar coisas
vivas e, portanto, ficava abaixo da alquimia, que tinha o poder da transmutação
da matéria. “Sinal de que (...) agitavam-se já as exigências da ciência e da
filosofia natural do Renascimento”. O artista medieval se diferencia,
assim, daquele que surge no Renascimento, que tem orgulho de sua própria
individualidade. Mesmo quando consideramos a arquitetura praticada na Idade
Média, não era possível encontrar qualquer marca pessoal do artista. Já os
poetas do século XI, considerados artistas superiores, enxergam em sua obra uma
maneira de adquirir imortalidade.
A passagem da Idade Média para o Renascimento não é
feita, segundo o autor, de forma abrupta. Na realidade, a periodização
histórica só pode ser traçada posteriormente quando já é possível delinear
diferenças sociais, filosóficas, econômicas e religiosas de um período. Umberto
Eco não tem a pretensão de fixar limites cronológicos claros, mas sim detalhar
os principais conceitos utilizados pelos pensadores das teorias da estética,
entre eles a proporção, a luz, as cores, o símbolo. Fica claro que os dez
séculos transcorridos no período estão tão fortemente enraizados no poder da
Igreja que o homem medieval pouco se permitia questionar, mesmo em relação à
concepção do belo. Aos poucos as percepções do mundo não conseguem mais pertencer
a este pequeno universo de interpretações e o homem vai ganhando espaço.
Embora o autor mencione que sua obra pretende ser
acessível ao público não-especialista, o leitor esbarrará em dificuldades de
linguagem que poderão desmotivar os mais afoitos. Mas o conteúdo é organizado de
forma didática ao passar pelos conceitos mais importantes da época e as
inúmeras reflexões feitas pelos filósofos, cientistas e teólogos medievais, até
chegar ao Renascimento. O objetivo é oferecer uma imagem da época e não uma
contribuição filosófica à definição contemporânea de estética, embora as
teorias da estética medieval sempre nos levam a pensar sobre o presente. Para o
homem da Idade Média, beleza era mais do que apreciar um dado objeto, mas era
se lembrar constantemente daquele que o criou, de sua origem, da religião que o
regia, de Deus. Se por um lado essa filosofia limitou o pensamento do homem
como atuante do mundo que estava à sua frente, por outro permitiu que se
justificassem as agruras dos bárbaros, as cruzadas, as altas taxas de
mortalidade causadas pelas pestilências e fome. Não se questionava, afinal, a
atuação do homem em seu destino e muito menos qualquer contradição,
complexidade ou multiplicidade.
A conciliação entre as contradições e os opostos tem
papel fundamental no Renascimento, no início do século XV que, segundo Eco, é
um golpe mortal no pensamento escolástico medieval. Nicolau de Cusa (1401-1464),
cardeal da Igreja Católica, filósofo e cientista, desenvolveu a idéia da
pluralidade dos mundos, da polidimensionalidade do real, do todo podendo ser
enfocado de diferentes ângulos visuais. Ele enfatiza o ato criativo colocando o
homem ao lado de Deus, como seu colaborador. No
final daquele século, a América será descoberta, ampliando a geografia, os limites
do mundo, da cultura e avançado nas técnicas de navegação, da técnica e da
ciência. O homem vai ganhando espaço até se tornar o protagonista do drama
religioso, o mediador entre Deus e o mundo. Na arte, passa a ser possível
modificar a natureza e o estético não diz respeito somente à contemplação do
mundo, mas também à própria prática cotidiana.
Umberto Eco nasceu em 1932 e essa obra sobre beleza e
estética na Idade Média foi baseada em seus primeiros trabalhos dedicados ao
estudo da estética medieval, sobretudo aos textos de Santo Tomás de Aquino,
escritos nos anos 1950. Atualmente, este filósofo e escritor italiano atua como titular da cadeira de semiótica
e diretor da Escola Superior de Ciências Humanas na Universidade de Bolonha. Arte
e beleza na estética medieval foi originalmente escrita em 1987 como edição modificada de
sua obra Sviluppo dell'estetica medievale de 1959.
Arte e
beleza na estética medieval
Umberto
Eco
Editorial Presença, 2000
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