A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável de 2012 (Rio+20) acontecerá num lugar simbólico – o Riocentro. Ali, nos anos 1980, militares extremistas organizaram um atentado terrorista, visando incriminar organizações de esquerda. Tentativa desesperada de manter o regime militar que dava passos largos rumo à decadência, ao mesmo tempo em que ganhava corpo um crescente e vigoroso movimento social por democracia. Quando, anos mais tarde, as Nações Unidas decidiram sediar no Brasil a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992 (a Rio 92), o cenário político nacional ainda era turbulento, embora já sob regime democrático. O país enfrentava uma crise em duas frentes. Na economia, uma sucessão de “planos de estabilização econômica” haviam se mostrado incapazes de conter a hiperinflação e superar uma década de estagnação econômica. Na arena política, a mobilização por eleições livres, após duas décadas de regime militar, terminara na eleição de um governo de direita, o de Fernando Collor, duro golpe para movimentos, como o ambientalista, que apoiaram a candidatura derrotada de Luiz Inácio Lula da Silva. A consequência é que o governo Collor não contou com o respaldo do movimento ambientalista quando se começou a organizar a Rio 92. Os ambientalistas tinham feito parte do movimento pela redemocratização do país que marcara a década anterior. Essa proximidade com outros movimentos sociais levou os ambientalistas a juntar questões sociais e ambientais (uma agenda verde, outra agenda marrom) numa mesma agenda “socioambiental”. Essa agenda guarda-chuva permitiu a formação de um amplo espectro de alianças, congregando ambientalistas com movimentos sociais populares e de classe média, no momento preparatório da Rio 92.
Isto também se deve ao fato da conferência da ONU ter sido interpretada por ativistas de diversos movimentos sociais como arena capaz de dar visibilidade nacional e internacional para suas demandas. Daí a razão pela qual os movimentos sociais sem qualquer engajamento anterior com questões ambientais ”esverdearam” suas bandeiras sociais de origem. O Fórum Brasileiro de Organizações Não Governamentais e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente e o Desenvolvimento emergiu nesse processo, aproveitando os debates do Fórum Global da Rio 92 para destacar questões sociais. O Fórum cresceu e logrou atrair a atenção da mídia nacional e internacional, permitindo a realização de alianças entre grupos ambientalistas locais e globais, como o Greenpeace e o WWF. A Rio 92 se firmou, então, como o lócus de uma grande e diversificada mobilização socioambientalista dirigida à opinião pública interna e externa, e em oposição e alternativa à posição do Estado brasileiro. O largo espectro de alianças e a visibilidade auferida deram ao movimento ambientalista uma proeminência inédita na cena pública, capaz de influenciar decisivamente os debates oficiais sobre o que viria a ser a Agenda 21.
Essa equação “movimento socioambiental vigoroso – Estado nacional frágil” não se aplica ao Brasil de hoje. A Rio+20 acontecerá numa situação bem diferente daquela de vinte anos atrás. Apesar da crise econômica no plano internacional, a sociedade brasileira experimenta um inédito período de expansão econômica e de ascensão social das classes mais baixas. De 2004 a 2009, mais de 19 milhões de pessoas superaram a linha da pobreza e 32 milhões passaram a compor a classe média brasileira. Lula concluiu seu segundo mandato como presidente extremamente bem avaliado e tendo incorporado nas políticas do Estado boa parte das demandas sociais do movimento pela redemocratização. Essa é uma das razões pelas quais a mobilização conjunta em torno de questões sociais e ambientais declinou e fissuras se criaram entre movimentos sociais populares e ambientalistas.
A outra razão diz respeito a mudanças no perfil do próprio movimento ambientalista brasileiro. Hoje, o movimento se apresenta forte e globalizado. Contudo, sua fase de contestação parece ter ficado para trás. Em vez da postura de antagonista do Estado, como em 1992, veem-se mais e mais parcerias entre organizações ambientais e instituições governamentais – fenômeno, aliás, similar ao que se passa em muitos países nos quais os “verdes” têm participado dos processos políticos convencionais. O movimento ambientalista também mudou no que toca à sua agenda, deslocando sua atenção para uma agenda neoconservacionista, centrada em questões relativas à biodiversidade e proteção de florestas, e deixando em segundo plano as questões ambientais urbanas e a agenda social. Isto é, a agenda socioambiental dos anos 1980, na prática, se partiu, com um distanciamento crescente entre os movimentos de pauta marrom e os de pauta verde.
Outra mudança importante no que toca ao perfil é que parte significativa dos grupos ambientalistas tornou-se profissionalizada e altamente especializada, atuando como administradores de áreas protegidas ou na implementação de programas e projetos, o que reforça o menor espaço e energias para ações políticas reivindicatórias. Apesar do crescimento da preocupação com questões ambientais entre jovens, governos locais e mesmo entre a iniciativa privada, as organizações ambientalistas estão longe de mostrar hoje a mesma capacidade de mobilização que tiveram durante a Rio 92, quando se realizaram grandes manifestações públicas e protestos. No momento atual, a via preferencial dos movimentos privilegia a mesa de negociação às ruas. Mesmo nas situações em que os movimentos optam por organizar protestos em torno de questões ambientais, os resultados têm se mostrado distante das expectativas das lideranças e das organizações promotoras. É este o caso das recentes manifestações contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte ou contra a reforma do Código Florestal, que alcançaram alguma repercussão na mídia, mas não mobilizaram contingentes nem reuniram forças sociais da magnitude das que foram às ruas no início dos anos 1990. O novo estilo de ativismo ambientalista repousa mais em declarações de lideranças e personalidades, como artistas e intelectuais, à mídia e em ações simbólicas diretas que requerem apenas poucos e motivados indivíduos (estilo que consagrou as campanhas do Greenpeace), do que em manifestações populares massivas com o volume, a força e a diversidade demonstrados em 1992.
Ao longo da última década, essa profissionalização das organizações ambientais e de seus quadros e as parcerias com o Estado beneficiou ambos os lados, aperfeiçoando capacidades e políticas no setor. Consolidou-se um campo ambiental relativamente autônomo no Brasil, com suas próprias regras, discursos e especialistas. Nesse sentido, os ambientalistas têm agora novos trunfos e habilidades no jogo contra outras forças. Mas o efeito colateral foi uma tecnificação do discurso ambiental e o afastamento em relação a outras forças, habilidades e campos da vida social que poderiam ser mobilizadas como aliados. Deste ângulo, os grupos ambientalistas estão menos fortes e preparados para discutir e negociar interesses sociais conjugados às demandas ambientais, do que estavam em 1992.
Questões desse gênero certamente estarão na agenda da Conferência de 2012. Isto pode ser percebido já nos temas centrais previstos. Nos encontros preparatórios para a Rio+20, vem se enfatizando a necessidade de implementar acordos anteriores (Rio 92, Agenda 21, Joanesburgo), por meio de uma nova abordagem para os processos de tomada de decisão pelos agentes econômicos. Sob o termo “economia verde”, cria-se a expectativa de que critérios ambientais e sociais de eficiência possam ser combinados. A questão a ser respondida é se a ideia de “economia verde” será mais exitosa no enfrentamento e equacionamento de desafios econômicos, sociais e ambientais do que sua antecessora, a ideia de “desenvolvimento sustentável”, a qual também continha a mesma promessa de harmonizar pautas. E cabe perguntar se essa nova fórmula será capaz de envolver e beneficiar não somente os ambientalistas e o mundo dos negócios, mas também grupos tradicionais e organizações representativas das populações que vivem nas áreas apontadas como prioritárias para a proteção e a gestão ambiental.
Como se vê, dois objetivos contraditórios emergem no horizonte da Conferência de 2012 – legitimidade e eficiência. Combiná-los não será tarefa fácil. A Rio+20 pode ser vista como oportunidade para criar uma via alternativa de conciliação entre desenvolvimento econômico, responsabilidade social e conservação ambiental. Mas a cúpula também envolve riscos. Num contexto internacional marcado por estagnação econômica e ataque às políticas de bem-estar social, um novo ciclo de crescimento dirigido por uma transição rumo a uma economia de baixo carbono poderia prover uma plataforma comum, capaz de envolver uma ampla coalizão de empreendedores, ambientalistas e grupos sociais. Porém, também se pode vislumbrar um cenário alternativo: a priorização pelos governos nacionais do estímulo à rápida retomada do crescimento econômico capaz de trazer de volta os empregos, com as preocupações ambientais relegadas ao segundo plano.
Em síntese, ainda que se busque invocar o sucesso experimentado com a ampla mobilização de forças sociais visto duas décadas atrás – e aludido na escolha do simbólico Riocentro como sede da Conferência – o fato é que a Rio+20 acontecerá sob condições muito diferentes. Os atores nacionais e internacionais, o governo e a sociedade, e, em particular, um ator chave, o movimento ambientalista, são hoje bem distintos em perfil e propósitos. Comparada à Rio 92 a Rio+20 será provavelmente mais discreta e menos diversificada. Resta saber se ela logrará apontar caminhos novos para enfrentar os desafios postos em escala doméstica e no plano internacional, de modo a ganhar tanta relevância histórica quanto teve sua predecessora.
Angela Alonso é professora de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e co-coordenadora da área de conflitos ambientais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Arilson Favareto é professor de sociologia e economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e co-coordenador da área de conflitos ambientais do Cebrap.
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