10/09/2009
O século XX inaugura o direito de caráter mais social, em que os elementos necessários para a participação efetiva na sociedade, como saúde, educação, habitação e previdência são incorporados definitivamente no rol dos direitos humanos. Se uma pessoa com pouca saúde não consegue experimentar o exercício pleno da cidadania, o mesmo pode ser dito daquele que não tem acesso ao conhecimento organizado de forma sistemática. Como forma de dar maior suporte jurídico às discussões atuais na área educacional, a editora Edusp lançou este ano o livro Direito à educação: aspectos constitucionais, sob a coordenação de Nina Beatriz Stocco Ranieri, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e a organização de Sabine Righetti, jornalista e pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade de Campinas (Unicamp).
Resultado das atividades de pesquisa dos alunos da primeira Cátedra Unesco de Direito à Educação no Brasil, fundada pela Faculdade de Direito da USP em 2006, a coletânea é dividida em cinco partes, cujos capítulos se articulam em torno de uma ideia central: a educação como direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988. Embora a maioria dos autores seja formada por advogados, a linguagem empregada é bastante acessível ao público não-especializado em direito, principalmente na parte final do livro, que trata de assuntos mais presentes no dia-a-dia dos educadores, como a qualidade da educação, o ensino privado e a inclusão.
A primeira parte do livro faz uma análise mais aprofundada sobre os aspectos constitucionais do direito à educação. Monica Herman S. Caggiano, professora da Faculdade de Direito da USP, afirma no capítulo “A educação: direito fundamental”, que a educação é um fator essencial não só ao desenvolvimento do indivíduo, mas também ao da coletividade social. Tal abordagem funciona como base para que a discussão do assunto prossiga em questões mais específicas do direito relacionado à educação; por isso, uma leitura sequencial é mais recomendada do que seguir por uma rota aleatória.
No capítulo “Os Estados e o direito à educação na Constituição de 1988: comentários acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, Nina Ranieri relata a atuação do Estado em situações de controle da constitucionalidade, como o caso das mensalidades e do material escolar em instituições privadas, da meia-entrada para estudantes em espetáculos e do certificado de conclusão do ensino médio. Na sequência, sem invadir os terrenos do executivo e do legislativo, o advogado Eduardo Pannunzio mostra como se pode recorrer ao poder judiciário em uma violação do direito à educação. O panorama dos mecanismos judiciais e quase-judiciais existentes para a reclamação desse direito, tanto na esfera doméstica quanto na internacional, são apresentados em “O poder judiciário e o direito à educação”.
Já a constitucionalidade do ensino religioso, que a princípio parece ser incompatível com a natureza laica do Estado, é discutida pelo advogado Salomão Barros Ximenes, em “O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras: do direito à liberdade de crença e culto ao direito à prestação estatal positiva”. A discussão gira em torno da Lei 9.475/97, que incutiu uma mudança na postura estatal frente ao ensino religioso das escolas públicas. Se antes de 1997 a oferta do ensino religioso pelo Estado era vista como uma ameaça aos direitos humanos, dada a violação da liberdade de crença por imposição do estudo de uma determinada religião, desde então a oferta da disciplina passou a fazer parte do direito à educação, ficando a cargo do aluno a decisão de frequentar ou não a disciplina.
A segunda parte do livro traz um detalhamento de como o Ministério Público atua no sistema de ensino. No capítulo “As instituições de educação superior e as autoridades estatais: autonomia e controle”, o promotor de justiça de São Paulo, Eduardo Martines Júnior, fala sobre a repartição de competências entre o Conselho Nacional da Educação, o Conselho Estadual da Educação e o Ministério Público. A este último, destaca-se sua atuação na proteção do direito à educação, sendo algumas ações analisadas pela pedagoga Adriana A. Dragone Silveira, no capítulo “Atuação do Ministério Público para a proteção do direito à educação básica”. Segundo a autora, a maioria das atuações da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Rio Claro e Ribeirão Preto, municípios do interior de São Paulo, estavam relacionadas às demandas por acesso à educação infantil, como vagas em creches e pré-escolas. Poucas ações questionaram a qualidade do ensino, uma vez que é difícil garantir sua exigibilidade sem uma definição precisa do termo.
De acordo com o advogado Erik Saddi Arnesen e o professor Marcelo Gasque Furtado, a concepção de um ensino de qualidade sofreu mudanças ao longo da recente história da educação nacional. Os capítulos “Direito à educação de qualidade na perspectiva neoconstitucionalista” e “Padrão de qualidade de ensino”, que compõem a terceira parte da coletânea, tratam das três formas de como a qualidade do ensino foi e é interpretada. A primeira delas se refere à universalização do acesso ao ensino fundamental (etapa obrigatória com duração atual de nove anos), que foi resolvida com a expansão do número de vagas. A segunda, ao fluxo escolar, cujo desvio na progressão dos alunos durante o ensino fundamental foi corrigido com medidas para a redução dos índices de repetência e evasão, como o sistema de ciclos e a promoção automática. E, finalmente, tem-se atenção ao processo educativo propriamente dito, em que a capacidade cognitiva dos alunos é avaliada por meio de testes padronizados em larga escala, como o Saeb, o Enem e o Enade.
Embora seja difícil definir e garantir juridicamente a qualidade do ensino, é notável a tendência atual de descrédito em relação ao ensino público; por isso, grande parte dos que dispõem de recursos acabam recorrendo às instituições privadas. A quarta parte do livro traz à luz reflexões sobre esse ensino privado, dando destaque à controvérsia acerca de sua classificação como um serviço público. Segundo o advogado Luiz Gustavo Bambini de Assis, no capítulo “A natureza jurídica do serviço prestado pelas instituições privadas de ensino: controvérsias sobre o tema”, o ensino privado pode ser legitimado como um serviço público, quando considerada a natureza pública de qualquer ensino. Em oposição, o advogado Luiz Tropardi Filho acredita que apenas a natureza pública do ensino não é suficiente para legitimá-lo como um serviço público, uma vez que este é constitucionalmente definido por sua titularidade, ou seja, quando o Estado é quem presta o serviço. No capítulo “A exploração da atividade educacional pela iniciativa privada e seus limites legais”, Tropardi ressalta que o ensino ofertado por instituições particulares é legítimo desde que haja o cumprimento das normas gerais da educação nacional e a avaliação de sua qualidade pelo poder público, a fim de evitar possíveis desvios em decorrência do princípio mercadológico intrínseco.
No capítulo “A expansão do ensino superior no Brasil: a opção pelo privado”, a advogada Fernanda Montenegro de Menezes dá destaque às políticas públicas adotadas para a universalização do acesso ao ensino superior por meio de instituições privadas, como o Programa Universidade para Todos (ProUni) e a maior flexibilidade do MEC para autorizar a abertura de novos cursos na rede de ensino privado. A questão é se essa democratização do ensino superior sem fiscalização por parte do Estado não vai acarretar uma crise política nacional, como já é observado no caso dos alunos formados em direito que não conseguem ser aprovados no exame da OAB.
Apesar do tratamento constitucional da educação ser de caráter democrático, ainda persistem muitas falhas na política educacional brasileira que desfavorecem certos grupos sociais. A multiplicação das ações afirmativas no âmbito educacional é tratada na quinta parte da coletânea, que foca o tema da inclusão. O capítulo “Ações afirmativas e cotas no ensino superior: uma reflexão sobre o debate recente”, das advogadas Camila Magalhães e Fernanda Menezes e da jornalista Sabine Righetti, fala sobre o sistema de cotas para o ingresso de negros, pardos e indígenas de escolas públicas no ensino superior. A possível alegação de inconstitucionalidade das cotas perante o direito de igualdade é vencida quando se argumenta que o sistema é apenas uma medida corretiva do princípio de isonomia que não foi garantido pelos demais instrumentos legais.
Outra discussão acerca dos grupos sociais desfavorecidos é feita por Sabine Righetti, no capítulo “A educação indígena e o papel do Estado”. A autora ressalta a mudança no tratamento com a educação indígena trazida pela Constituição de 1988, que passou de uma postura integracionista de assimilação do índio à comunidade nacional para uma postura de preservação da cultura e dos costumes indígenas. Contudo, a preservação do índio não implica em uma educação isolada das demais. É claro que o uso de línguas maternas nas escolas voltadas para a educação indígena é positivo, mas a solicitação pela língua portuguesa não deve ser encarada como uma dissolução fatalista da cultura indígena. Como os índios terão acesso aos seus direitos, se não falando a mesma língua que a comunidade nacional? E como eles, ou nós mesmos, teremos acesso à educação que nos é garantida por lei se não a conhecemos?
É justamente essa oportunidade de conhecer os direitos relacionados à educação que torna essa obra inédita e indispensável, não somente aos profissionais ligados à educação, mas a todos aqueles que conhecem alguém inserido no sistema educacional.
Direito à educação: aspectos constitucionais Nina Beatriz Stocco Ranieri (coordenação) e Sabine Righetti (organização)
Editora Edusp, 2009 (288 p.)
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