Em geral, quando adquirirmos um novo
produto, não imaginamos a complexidade de sua produção, pois o mesmo chega às
mãos do consumidor mostrando apenas facilidades, conforto e a simplicidade de
seu uso. Dentre as várias relações que acontecem no desenvolvimento de novos
produtos ou no melhoramento daqueles já existentes, estão complexas formas de
conexão entre tecnologia e trabalho, que geram polêmicas entre aqueles que as estudam
ou que convivem diretamente com elas.
No final da década de 1980, o Brasil era
apresentado ao sistema de injeção eletrônica por meio de um carro popular. A
mudança, hoje incorporada, significou, na época, não somente o melhor
aproveitamento do motor e a redução da emissão de gases poluentes, mas resultou
também em alterações na indústria automobilística, tanto nas linhas de montagem,
como nas oficinas mecânicas que fazem a manutenção, revisão e reparo dos nossos
carros. Os trabalhadores, desse modo, passaram a conviver e atuar com essa nova
tecnologia, o que tornou necessária a sua especialização.
Uma modificação aparentemente simples, mas
que quando contemplada de forma mais ampla, revela seu aspecto intrincado. “Veículos
mais seguros, com tecnologias incorporadas, que melhorem as condições de vida e
saúde da população, certamente não podem ser considerados um problema. A
questão é o custo social dessa evolução, além da destruição das riquezas
naturais, da degradação do ambiente e da poluição, que se apresentam como a
negação do desenvolvimento”, afirma o economista José Henrique de Faria, pesquisador
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Assim, se por um lado, o exemplo da
injeção eletrônica nos automóveis tornou esse produto mais seguro e ambientalmente
mais adequado, por outro aponta para a exigência de qualificação do
trabalhador. Além desse caso específico, Faria destaca que, no quadro atual de
uma indústria cada vez mais automatizada, exige-se uma constante especialização
por parte do trabalhador, mas sem que essa “qualificação” seja sinônimo de
trabalho mais intelectualizado. “É necessário – diz ele – que um operário
domine outro idioma, o dos manuais da máquina, que domine conhecimentos de
geometria, estatística, informática, por exemplo, não para que este desenvolva
um projeto intelectual, mas para que saiba operar e avaliar as
máquinas-ferramentas de controle numérico computadorizado, os robôs
industriais, os projetos auxiliados por computador etc”, observa o economista.
A reflexão sobre as consequências da
tecnologia no mundo do trabalho e na sociedade quase sempre encerram um
paradoxo. Concomitante à simplificação dos processos, aumenta-se a complexidade
das máquinas. Reduz-se o trabalho manual, mas sem resultar exatamente em um
processo de intelectualização do trabalho. “O trabalhador teve seu saber de
ofício, seu saber fazer e pensar, substituído pelo saber instrumental, pelo
saber executar. Neste sentido, o processo de trabalho mudou e aparentemente se
tornou mais fácil, mas as escalas de sofrimento, os tipos de doenças
relacionadas ao trabalho e as exigências sobre habilidades e comprometimento
também mudaram”, constata Faria.
Um exemplo clássico dessa mudança é o
apresentado pelo sociólogo norte-americano Richard Sennett, que em seu livro A corrosão do caráter: consequências
pessoais do trabalho no novo capitalismo relata uma pesquisa realizada em
uma padaria. Após a automação do estabelecimento, as máquinas é que faziam o
pão: cabia ao padeiro apenas apertar os botões certos. Assim, em vez de
oferecer ao trabalhador a possibilidade de exercer novas atividades, por
extinguir o desgaste físico, a automação desqualificou o trabalho dos padeiros
– pois qualquer pessoa poderia exercer o ofício – e os obrigou a buscar novas
ocupações.
O economista da Universidade Federal
Fluminense (UFF), André Guimarães Augusto, acrescenta que “não é verdade que o
fato de não se mobilizar primordialmente os recursos corporais não implique uma
atividade rotineira e fatigante”. Forçados a acumular outros empregos, os
padeiros tiveram sua rotina modificada e a jornada de trabalho estendida. “Mesmo
que hoje um trabalhador de fábrica tenha que ter mais conhecimento do que o
trabalhador do século XIX, a distância entre o seu conhecimento e o necessário
para a organização da produção é muito maior do que a do trabalhador do século
XIX”, avalia. Ou seja, além de nem sempre representar a liberação do esforço
físico, a tecnologia acaba afastando ainda mais o trabalhador dos meios de
produção.
Para a socióloga Márcia de Paula Leite, a
tecnologia por si só não qualifica nem desqualifica, tudo depende de como ela é
utilizada. “A questão da qualificação da força de trabalho está muito
relacionada à organização do trabalho”, diz ela. Considerando a
microeletrônica, que tem a característica de ser programável, a socióloga
enxerga a possibilidade de um trabalho que incorpore a tecnologia sem
desqualificação da mão de obra. “Se você divide a programação e a execução, o
trabalhador que fica restrito à execução pode ter o trabalho desqualificado,
mas se você permite que esse trabalhador participe também de alguma forma da
concepção, de melhorias, agilize programas, você não tem um trabalho totalmente
desqualificado e repetitivo. O trabalhador incorpora o conhecimento”, diz.
O sociólogo Rafael Alves da Silva, do
grupo de pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado, da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), compara o trabalhador de hoje com o personagem
mitológico Sísifo, punido com a tarefa de empurrar eternamente uma pedra até o
topo de uma montanha, que rolaria de volta até o chão, obrigando-o a repetir
infinitamente o gesto. A metáfora diz respeito não somente ao trabalho
extenuante na contemporaneidade, um trabalho sem sentido, alienado, mas também
ao fato do trabalhador buscar incessantemente qualificar-se para o mercado, que
lhe faz sempre novas exigências. “É como se o Sísifo antigo amaldiçoasse sua
pedra, seu castigo, e o trabalhador contemporâneo fizesse o contrário, tivesse
de lutar para continuar com ela”, diz Silva.
O sociólogo comenta ainda a afirmação que, embora não
possamos impedir que a automação na tecnologia automotiva aconteça – pois o Brasil precisa
competir globalmente –, podemos impedir a entrada de tecnologia nos postos de
gasolina e no transporte público. “Será que a melhor contribuição que a crítica
contra o capital consegue fazer é condenar uma pessoa a trabalhar de frentista
ou de cobrador de ônibus?”, reflete. “Eu não acho errada a catraca eletrônica
em si, eu acho um problema que aquele posto que foi automatizado gere um indigente.
Como você se posiciona frente à mecanização no agronegócio? Rejeita o
maquinário para que as pessoas “possam” continuar na condição insalubre de
cortadores de cana, por exemplo? Acho perverso que o cortador de cana tenha que
‘pedir’ para continuar sendo cortador de cana”, ou seja, que continue
carregando eternamente a pedra e deseje continuar assim”, argumenta o sociólogo.
Aventais
brancos
Silva cita o exemplo abordado no filme Em comparação, do videasta tcheko Harun
Farocki, em que a produção de tijolos expõe relações e estruturas sociais. Em
um país, por exemplo, produz-se um tijolo de cada vez. Em outro país, a partir
de um determinado método, é possível produzir dois tijolos por vez, depois
quatro e assim sucessivamente. Passa-se, então, para a produção moderna de
tijolos. “O que se via eram os tijolos sendo divididos, o forno, a alimentação dele
etc. No forno atual, simplesmente a tecnologia é invisível, de um lado entra
matéria-prima, do outro saem tijolos, não sabemos como o processo ocorre lá dentro”.
A aparente “simplificação” derivada da
tecnologia se manifesta também no próprio ambiente de trabalho, climatizado, limpo
e organizado, uma transformação que representa menos uma preocupação com a
saúde do trabalhador do que com o funcionamento satisfatório e preciso das
máquinas.
“Atualmente, exige-se do trabalhador um
conhecimento técnico muito maior do que se exigia na fábrica tradicional, a
ponto de se encontrar no chão de fábrica não mais aqueles operários ‘sujos de
graxa’, mas técnicos e engenheiros, não mais os macacões azuis, mas os novos aventais
brancos, a prancheta, celular e notebook da linha de montagem. O ambiente é
chamado de ‘clean’, pois são mais limpos e higienizados do que muitos hospitais
que conhecemos”, observa Faria. Para ele, a introdução de tecnologias de base
microeletrônica facilita o processo de produção apenas em uma perspectiva, que
é a do capital.
A
polêmica sobre o “fim do trabalho”
Em O
fim do emprego, o economista norte-americano Jeremy Rifkin, autor de vários
best-sellers, prevê que no ano de 2020 já não haverá mais possibilidades de
emprego, dado o rápido processo de automatização em curso. O autor cita o
caso da United States Steel, poderosa siderúrgica dos Estados Unidos que, de 1980 a 1990, reduziu o
número de trabalhadores em mais de 80% mantendo os mesmos níveis de produção. Para
Rifkin, o declínio dos empregos já é um processo inevitável, que culminará ou
no colapso da civilização ou, em uma perspectiva mais otimista, num momento em
que a humanidade passará por uma grande transformação social.
A visão determinista da tecnologia, que
atribui ao desenvolvimento tecnológico as mudanças na sociedade, é
compartilhada em diversos níveis por intelectuais de várias áreas do
conhecimento. Afirmar, no entanto, que a tecnologia eliminará o trabalho, já é
uma conclusão mais polêmica. “Não concordo com a ideia de fim do trabalho. É
uma pretensão, na verdade é o próprio sonho do capital o fim do trabalho humano
e a substituição pelas máquinas das quais ele tem total controle, mas isso não
vai acontecer. Há trabalhos que simplesmente não podem ser mecanizados,
automatizados”, expõe a socióloga Marcia de Paula Leite, da Unicamp.
“Pode se dizer que a tecnologia vem
transformando radicalmente o trabalho, mas de forma alguma o elimina”, afirma o
pesquisador André Guimarães. “O que subjuga o trabalhador é o capital e não 'a
tecnologia em si'. Mas
o capital subjuga o trabalhador, dentre outros meios, pela tecnologia”.
Para José Henrique de Faria, a própria
expressão “desemprego tecnológico” já transmite uma noção equivocada do
problema. “Ela mascara o problema central do modo de produção capitalista, pois
atribui à tecnologia ou a qualquer elemento isolado a responsabilidade por um
problema que envolve a totalidade das relações sociais e de produção, é uma
forma de reducionismo teórico ou analítico, quando não, uma forma de
ideologização no sentido de que, sobre uma materialidade concreta, qual seja a
do desemprego, se atribui um abstrato arbitrário como causa”, afirma.
Para Rafael Alves da Silva, há uma grande
contradição em relação ao desemprego tecnológico, ligada à concepção do emprego
na sociedade. “É uma esquizofrenia a defesa da criação de empregos, no plano
político, considerando que toda receita econômica é voltada para conter gastos,
para não ter inflação, para enxugar as empresas. É preciso gerar empregos, mas
é preciso economizar, otimizar a produção para reduzir gastos – e reduzir
gastos é reduzir trabalho”, considera.
Para Guimarães é fundamental enxergar no
modo de produção capitalista as controvérsias e possíveis respostas à questão. “Não
se pode apontar um único fator como estando na origem do desemprego, mas, em
linhas gerais e considerando períodos longos, o uso capitalista da tecnologia
gera desemprego. Mas
na raiz do desemprego está o emprego, isto é, a necessidade de vender a força
de trabalho para sobreviver, o trabalho assalariado e, portanto, o capital”,
conclui Guimarães.
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