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Reportagem
Desenvolvimento tecnológico lança questões sobre o futuro do trabalho
Por Aline Naoe
10/09/2011

Em geral, quando adquirirmos um novo produto, não imaginamos a complexidade de sua produção, pois o mesmo chega às mãos do consumidor mostrando apenas facilidades, conforto e a simplicidade de seu uso. Dentre as várias relações que acontecem no desenvolvimento de novos produtos ou no melhoramento daqueles já existentes, estão complexas formas de conexão entre tecnologia e trabalho, que geram polêmicas entre aqueles que as estudam ou que convivem diretamente com elas.

No final da década de 1980, o Brasil era apresentado ao sistema de injeção eletrônica por meio de um carro popular. A mudança, hoje incorporada, significou, na época, não somente o melhor aproveitamento do motor e a redução da emissão de gases poluentes, mas resultou também em alterações na indústria automobilística, tanto nas linhas de montagem, como nas oficinas mecânicas que fazem a manutenção, revisão e reparo dos nossos carros. Os trabalhadores, desse modo, passaram a conviver e atuar com essa nova tecnologia, o que tornou necessária a sua especialização.

Uma modificação aparentemente simples, mas que quando contemplada de forma mais ampla, revela seu aspecto intrincado. “Veículos mais seguros, com tecnologias incorporadas, que melhorem as condições de vida e saúde da população, certamente não podem ser considerados um problema. A questão é o custo social dessa evolução, além da destruição das riquezas naturais, da degradação do ambiente e da poluição, que se apresentam como a negação do desenvolvimento”, afirma o economista José Henrique de Faria, pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Assim, se por um lado, o exemplo da injeção eletrônica nos automóveis tornou esse produto mais seguro e ambientalmente mais adequado, por outro aponta para a exigência de qualificação do trabalhador. Além desse caso específico, Faria destaca que, no quadro atual de uma indústria cada vez mais automatizada, exige-se uma constante especialização por parte do trabalhador, mas sem que essa “qualificação” seja sinônimo de trabalho mais intelectualizado. “É necessário – diz ele – que um operário domine outro idioma, o dos manuais da máquina, que domine conhecimentos de geometria, estatística, informática, por exemplo, não para que este desenvolva um projeto intelectual, mas para que saiba operar e avaliar as máquinas-ferramentas de controle numérico computadorizado, os robôs industriais, os projetos auxiliados por computador etc”, observa o economista.

A reflexão sobre as consequências da tecnologia no mundo do trabalho e na sociedade quase sempre encerram um paradoxo. Concomitante à simplificação dos processos, aumenta-se a complexidade das máquinas. Reduz-se o trabalho manual, mas sem resultar exatamente em um processo de intelectualização do trabalho. “O trabalhador teve seu saber de ofício, seu saber fazer e pensar, substituído pelo saber instrumental, pelo saber executar. Neste sentido, o processo de trabalho mudou e aparentemente se tornou mais fácil, mas as escalas de sofrimento, os tipos de doenças relacionadas ao trabalho e as exigências sobre habilidades e comprometimento também mudaram”, constata Faria.

Um exemplo clássico dessa mudança é o apresentado pelo sociólogo norte-americano Richard Sennett, que em seu livro A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo relata uma pesquisa realizada em uma padaria. Após a automação do estabelecimento, as máquinas é que faziam o pão: cabia ao padeiro apenas apertar os botões certos. Assim, em vez de oferecer ao trabalhador a possibilidade de exercer novas atividades, por extinguir o desgaste físico, a automação desqualificou o trabalho dos padeiros – pois qualquer pessoa poderia exercer o ofício – e os obrigou a buscar novas ocupações.

O economista da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Guimarães Augusto, acrescenta que “não é verdade que o fato de não se mobilizar primordialmente os recursos corporais não implique uma atividade rotineira e fatigante”. Forçados a acumular outros empregos, os padeiros tiveram sua rotina modificada e a jornada de trabalho estendida. “Mesmo que hoje um trabalhador de fábrica tenha que ter mais conhecimento do que o trabalhador do século XIX, a distância entre o seu conhecimento e o necessário para a organização da produção é muito maior do que a do trabalhador do século XIX”, avalia. Ou seja, além de nem sempre representar a liberação do esforço físico, a tecnologia acaba afastando ainda mais o trabalhador dos meios de produção.

Para a socióloga Márcia de Paula Leite, a tecnologia por si só não qualifica nem desqualifica, tudo depende de como ela é utilizada. “A questão da qualificação da força de trabalho está muito relacionada à organização do trabalho”, diz ela. Considerando a microeletrônica, que tem a característica de ser programável, a socióloga enxerga a possibilidade de um trabalho que incorpore a tecnologia sem desqualificação da mão de obra. “Se você divide a programação e a execução, o trabalhador que fica restrito à execução pode ter o trabalho desqualificado, mas se você permite que esse trabalhador participe também de alguma forma da concepção, de melhorias, agilize programas, você não tem um trabalho totalmente desqualificado e repetitivo. O trabalhador incorpora o conhecimento”, diz.

O sociólogo Rafael Alves da Silva, do grupo de pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), compara o trabalhador de hoje com o personagem mitológico Sísifo, punido com a tarefa de empurrar eternamente uma pedra até o topo de uma montanha, que rolaria de volta até o chão, obrigando-o a repetir infinitamente o gesto. A metáfora diz respeito não somente ao trabalho extenuante na contemporaneidade, um trabalho sem sentido, alienado, mas também ao fato do trabalhador buscar incessantemente qualificar-se para o mercado, que lhe faz sempre novas exigências. “É como se o Sísifo antigo amaldiçoasse sua pedra, seu castigo, e o trabalhador contemporâneo fizesse o contrário, tivesse de lutar para continuar com ela”, diz Silva.

O sociólogo comenta ainda a afirmação que, embora não possamos impedir que a automação na tecnologia automotiva aconteça – pois o Brasil precisa competir globalmente –, podemos impedir a entrada de tecnologia nos postos de gasolina e no transporte público. “Será que a melhor contribuição que a crítica contra o capital consegue fazer é condenar uma pessoa a trabalhar de frentista ou de cobrador de ônibus?”, reflete. “Eu não acho errada a catraca eletrônica em si, eu acho um problema que aquele posto que foi automatizado gere um indigente. Como você se posiciona frente à mecanização no agronegócio? Rejeita o maquinário para que as pessoas “possam” continuar na condição insalubre de cortadores de cana, por exemplo? Acho perverso que o cortador de cana tenha que ‘pedir’ para continuar sendo cortador de cana”, ou seja, que continue carregando eternamente a pedra e deseje continuar assim”, argumenta o sociólogo.

Aventais brancos

Silva cita o exemplo abordado no filme Em comparação, do videasta tcheko Harun Farocki, em que a produção de tijolos expõe relações e estruturas sociais. Em um país, por exemplo, produz-se um tijolo de cada vez. Em outro país, a partir de um determinado método, é possível produzir dois tijolos por vez, depois quatro e assim sucessivamente. Passa-se, então, para a produção moderna de tijolos. “O que se via eram os tijolos sendo divididos, o forno, a alimentação dele etc. No forno atual, simplesmente a tecnologia é invisível, de um lado entra matéria-prima, do outro saem tijolos, não sabemos como o processo ocorre lá dentro”.

A aparente “simplificação” derivada da tecnologia se manifesta também no próprio ambiente de trabalho, climatizado, limpo e organizado, uma transformação que representa menos uma preocupação com a saúde do trabalhador do que com o funcionamento satisfatório e preciso das máquinas.

“Atualmente, exige-se do trabalhador um conhecimento técnico muito maior do que se exigia na fábrica tradicional, a ponto de se encontrar no chão de fábrica não mais aqueles operários ‘sujos de graxa’, mas técnicos e engenheiros, não mais os macacões azuis, mas os novos aventais brancos, a prancheta, celular e notebook da linha de montagem. O ambiente é chamado de ‘clean’, pois são mais limpos e higienizados do que muitos hospitais que conhecemos”, observa Faria. Para ele, a introdução de tecnologias de base microeletrônica facilita o processo de produção apenas em uma perspectiva, que é a do capital.

A polêmica sobre o “fim do trabalho”

Em O fim do emprego, o economista norte-americano Jeremy Rifkin, autor de vários best-sellers, prevê que no ano de 2020 já não haverá mais possibilidades de emprego, dado o rápido processo de automatização em curso. O autor cita o caso da United States Steel, poderosa siderúrgica dos Estados Unidos que, de 1980 a 1990, reduziu o número de trabalhadores em mais de 80% mantendo os mesmos níveis de produção. Para Rifkin, o declínio dos empregos já é um processo inevitável, que culminará ou no colapso da civilização ou, em uma perspectiva mais otimista, num momento em que a humanidade passará por uma grande transformação social.

A visão determinista da tecnologia, que atribui ao desenvolvimento tecnológico as mudanças na sociedade, é compartilhada em diversos níveis por intelectuais de várias áreas do conhecimento. Afirmar, no entanto, que a tecnologia eliminará o trabalho, já é uma conclusão mais polêmica. “Não concordo com a ideia de fim do trabalho. É uma pretensão, na verdade é o próprio sonho do capital o fim do trabalho humano e a substituição pelas máquinas das quais ele tem total controle, mas isso não vai acontecer. Há trabalhos que simplesmente não podem ser mecanizados, automatizados”, expõe a socióloga Marcia de Paula Leite, da Unicamp.

“Pode se dizer que a tecnologia vem transformando radicalmente o trabalho, mas de forma alguma o elimina”, afirma o pesquisador André Guimarães. “O que subjuga o trabalhador é o capital e não 'a tecnologia em si'. Mas o capital subjuga o trabalhador, dentre outros meios, pela tecnologia”.

Para José Henrique de Faria, a própria expressão “desemprego tecnológico” já transmite uma noção equivocada do problema. “Ela mascara o problema central do modo de produção capitalista, pois atribui à tecnologia ou a qualquer elemento isolado a responsabilidade por um problema que envolve a totalidade das relações sociais e de produção, é uma forma de reducionismo teórico ou analítico, quando não, uma forma de ideologização no sentido de que, sobre uma materialidade concreta, qual seja a do desemprego, se atribui um abstrato arbitrário como causa”, afirma.

Para Rafael Alves da Silva, há uma grande contradição em relação ao desemprego tecnológico, ligada à concepção do emprego na sociedade. “É uma esquizofrenia a defesa da criação de empregos, no plano político, considerando que toda receita econômica é voltada para conter gastos, para não ter inflação, para enxugar as empresas. É preciso gerar empregos, mas é preciso economizar, otimizar a produção para reduzir gastos – e reduzir gastos é reduzir trabalho”, considera.

Para Guimarães é fundamental enxergar no modo de produção capitalista as controvérsias e possíveis respostas à questão. “Não se pode apontar um único fator como estando na origem do desemprego, mas, em linhas gerais e considerando períodos longos, o uso capitalista da tecnologia gera desemprego. Mas na raiz do desemprego está o emprego, isto é, a necessidade de vender a força de trabalho para sobreviver, o trabalho assalariado e, portanto, o capital”, conclui Guimarães.