Algumas noções do senso comum sobre características culturais marcantes de determinados povos, como a alegria e a festividade do brasileiro, a dedicação ao trabalho do japonês, a frieza e a racionalidade do alemão ou a musicalidade do africano, têm sua origem em seculares e acalorados debates filosóficos e científicos sobre o que determinaria o comportamento humano: a herança biológica, a “racial” ou a cultural? Numa época em que ganha grande repercussão o trabalho de geneticistas que buscam provar a inexistência de “raça” como conceito científico e, ao mesmo tempo, recrudescem comportamentos discriminatórios que tornam cada vez mais forte a noção política de “racismo”, a discussão sobre o que determina o comportamento do indivíduo ainda é atual, e a história das idéias sobre a noção de cultura pode ajudar a entendê-la.
Cultura é uma palavra que vem do latim e significa, em sua origem, o cuidado dispensado ao campo ou ao gado. Esse sentido se mantém até o início da Idade Média nas línguas derivadas do latim, como o francês, nas quais, no século XIII, cultura é usada para designar a terra cultivada. No século XVI, começa a se formar um sentido figurado de cultura que acabou sendo fundamental para os filósofos iluministas franceses do século XVIII e tem repercussões até os dias de hoje: a cultura como formação e educação do espírito. Consagrada pela edição de 1798 do Dicionário da Academia Francesa, essa noção de cultura a colocava em oposição à noção de natureza e estigmatizava o espírito “natural”, “sem instrução” e “sem cultura”. Para os iluministas, a cultura era a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade como um todo ao longo de sua história, nas artes, nas letras e nas ciências.
Por empréstimo do francês, naquele mesmo século XVIII aparece o termo Kultur em alemão com o mesmo sentido figurado, mas que evolui rapidamente de uma noção ligada aos saberes universais da humanidade para uma noção mais particular. “Alguns intelectuais alemães passaram a chamar de Kultur a sua própria contribuição para a humanidade, em termos de maneira de estar no mundo, de produzir e apreciar obras de arte e literatura, de pensar e organizar sistemas religiosos e filosóficos”, explica Alfredo Veiga-Neto, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O emprego com inicial maiúscula, segundo ele, era para designar seu status elevado, que deveria ser tomado como modelo a ser atingido por outras sociedades. Naquele período, filósofos como Kant, atribuíam um papel central à educação para o aperfeiçoamento da humanidade e para a felicidade futura da espécie humana. “O que estava em jogo era a imposição, pela via educacional, de um padrão cultural único, que era ao mesmo tempo branco, machista, de forte conotação judaico-cristã, eurocêntrico e, é claro, de preferência germânico”, aponta Veiga-Neto.
Tanto a idéia francesa de universalidade quanto o status elevado que a intelectualidade alemã então atribuía à sua própria cultura permaneceram, com novas roupagens, no debate aquecido pelas descobertas científicas do século XIX. O método comparativo empregado em diversas áreas do conhecimento, como o estudo das línguas, levou à hipótese do hindo-europeu como origem comum de idiomas europeus e asiáticos; e, na biologia, culminou na teoria evolucionista contida em A origem das espécies, de Charles Darwin. Essas descobertas buscavam contrapor à explicação bíblica do surgimento da vida e do homem a idéia de que, embora falássemos línguas diversas e tivéssemos características e comportamentos diferentes, tínhamos provavelmente uma origem comum. Mas a idéia de evolução também foi associada às teorias de raça que estudavam as diferenças entre os grupos raciais – hoje chamados grupos étnicos. Um ramo conhecido como antropologia física ou antropometria comparava o tamanho de crânios e estruturas ósseas de povos contemporâneos e de ossos pré-históricos de descobertas arqueológicas para tentar aproximar os índios americanos e os negros africanos dos homens primitivos e atestar a evolução e superioridade de raças brancas como a ariana.
Antes mesmo de saber o impacto que a apropriação dessa idéia da superioridade ariana teria com a ascensão do partido nazista ao poder na Alemanha, o antropólogo judeu Franz Boas já havia deixado seu país natal, e após realizar trabalhos de campo junto a povos indígenas americanos, lançaria críticas à antropologia física e às teorias de raça. Em 1894, Boas proferiu um discurso na Seção de Antropologia da Associação Americana para o Progresso da Ciência em que aparecem as bases do que ficou posteriormente conhecido como determinismo cultural. Para ele, as realizações das raças brancas européias não indicavam que elas eram mais capazes que as outras raças, e acontecimentos históricos é que as teriam levado à civilização. Boas menciona o alto desenvolvimento dos americanos pré-colombianos, cuja diferença para a civilização do Velho Mundo seria que esta última teria atingido certo estágio 3 mil ou 4 mil anos antes – o que seria pouco, frente a 20 mil anos de existência do homem. Ele também cita o padrão relativamente elevado de civilização atingido por negros do oeste do Sudão, após a invasão de árabes islâmicos no século VIII, cujo modo de introduzir sua cultura entre os habitantes locais foi diferente do método separatista empregado pelo branco europeu no continente africano.
Segundo Boas, as guerras e invasões que promovem o contato entre os povos levam à difusão das diferentes culturas, e a assimilação de elementos de uma cultura depende de condições favoráveis para isso, podendo tanto o povo vencido quanto o vencedor assimilar traços culturais do outro. A cultura seria, para ele, o fator determinante para o comportamento do indivíduo, e as mudanças de comportamento seriam decorrentes de processos históricos envolvendo o contato e assimilação de outras culturas.
Alguns de seus discípulos, porém, relutavam em aceitar qualquer forma de determinismo cultural. Edward Sapir, por exemplo, acreditava que os indivíduos não só podiam como deviam exercitar sua independência criativa. E o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que também estudou com Boas, postulava que uma combinação de fatores é que determinaria o comportamento.
“Para Freyre, heranças biológicas, psíquicas, aliadas a fatores geográficos, históricos e culturais constituem uma espécie de amálgama inseparável, com que se forma e define o ser humano. As determinações e os condicionamentos entre esses fatores são recíprocos. Ou seja, para ele, é igualmente válido afirmar que heranças biológicas e geográficas condicionam a organização social e que traços genéticos e configurações espaciais são, também, produto de processos sociais”, afirma Simone Meucci, que defendeu tese de doutorado sobre o autor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. “Freyre evita assim qualquer perspectiva determinista. Para ele, não tem validade explicativa nem o determinismo biológico, nem o geográfico e tampouco o sociológico, muito embora este último lhe pareça mais razoável”, completa.
Freyre e outros pesquisadores, como Câmara Cascudo, se dedicaram, nos anos 1930, a estudar a cultura popular, na busca das expressões culturais que melhor expressariam a singularidade da identidade brasileira. Em Casa Grande & Sensala, Freyre cristaliza a idéia da mestiçagem originada do negro africano, do português branco e do nativo indígena. As festas, as danças e os jogos populares revelariam, assim, o sincretismo cultural, com o samba de origem negra e o gosto africano por festividades se tornando traços característicos da identidade brasileira. Mas o contato de um grupo com elementos da cultura de outro não foi tão harmonioso. Embora já no século XIX pesquisas como a de Nina Rodrigues mostrassem que as religiões africanas atraíam pessoas de todas as classes e cores aos terreiros brasileiros, os negros estiveram por muitos anos alijados da cultura letrada e escolar dos brancos.
“A desigualdade cultural de africanos e europeus é intransponível e é a representação que dá margem a fantasias de uma sociedade na qual, paradoxalmente, reina a ‘democracia racial’. É mais lógico na perspectiva culturalista acreditar que negros gostam de dançar samba e de fazer festa e que brancos gostam de ler romances”, diz Yvonne Maggie, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. “O paradigma culturalista veio enfraquecer o modelo biológico e a diferença passa a ser pensada enquanto diferença cultural. Os negros eram vistos como inferiores não por serem biologicamente restritos, mas por terem uma ‘cultura’ inferior, defasada”, critica.
Religião e desenvolvimento econômico
Em 1905, o sociólogo alemão Max Weber apontou em A ética protestante e o espírito do capitalismo uma forte relação entre um importante elemento cultural – a religião – e o desenvolvimento econômico dos povos. Ele afirma que uma série de valores e atitudes associadas à ética protestante, como a dedicação ao trabalho, a honestidade, a racionalidade e a austeridade nos gastos foram a base para que sociedades como a inglesa e a alemã alcançassem o progresso material. Essa idéia foi retomada recentemente por autores como o norte-americano Lawrence Harrison, que atribui o subdesenvolvimento da América Latina a valores e atitudes da tradição católica ibérica que impediria o pluralismo político, a justiça social e o dinamismo econômico.
Em estudo recente comparando fatores culturais e performances econômicas no leste da Ásia e na América Latina, Jiang Shixue, do Instituto de Estudos Latino Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais, diz que a importância de elementos culturais como a religião e os valores morais tem que ser considerada, mas não de forma determinista, pois seu papel no desenvolvimento econômico de uma nação tem que ser associado a conjunturas que possam favorecê-lo. Segundo ele, valores semelhantes aos apontados por Weber na ética protestante também são encontrados nas religiões confucionistas asiáticas, e teriam um papel importante no vertiginoso crescimento chinês nas duas últimas décadas, após a gradual abertura econômica do país, e no avanço dos chamados tigres asiáticos, como a Coréia do Sul. O Japão, segundo Shixue, também foi fortemente influenciado pelo confucionismo, e nos ensinamentos de Confúcio já aparece um elemento que acabou sendo associado apenas ao japonês no imaginário social: a dedicação ao trabalho.
O pesquisador chinês observa que tanto o confucionismo quanto a tradição católica ibérica existiram por séculos, mas apenas nas décadas recentes é que ocorreu o crescimento econômico no leste asiático. Ele também menciona o bom desempenho do Chile como exemplo de desenvolvimento em país de tradição católica, além de apontar a crescente diversidade religiosa na América Latina como um todo. Um valor cultural ligado ao confucionismo, no qual ela aponta uma diferença significativa entre os continentes, é a importância dada à educação desde a sua base. Segundo Shixue, embora países como a Venezuela tenham investido o mesmo ou até mais que a Coréia do Sul em educação nas últimas décadas, o percentual destinado à educação primária ficou bem abaixo dos países do leste asiático. A ênfase no ensino superior fez com que esse nível apresentasse um avanço bem mais considerável no continente do que o lento desenvolvimento do ensino primário latino americano.
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