Cada um de nós procura ser a pessoa certa no lugar e tempo certos. Como dizia um importante bioquímico brasileiro, Carl Dietrich, “pesquisadores não devem correr atrás da bola e, sim, para onde a bola vai estar”. Infelizmente, muitas pessoas certas estão na hora ou no tempo errados e acabam deixando de dar a contribuição que poderiam dar – e que, muitas vezes, é extremamente necessária para o bem comum. Talvez seja ainda mais comum que a pessoa errada esteja no lugar e tempo certos e, por despreparo ou inadequação, ponha a perder uma oportunidade histórica.
Malcolm Gladwell1 mostra muito bem como a hora e o lugar certo explicam vários casos de pessoas muito notáveis, que se destacaram pela singularidade do seu sucesso. Também mostra porque outras, ainda que muito aplicadas e extremamente bem preparadas, têm vidas muito cheias de realizações mas sem alcançarem o mesmo destaque.
O mesmo se aplica às instituições, embora o funcionamento destas seja mais complexo que a atuação de qualquer indivíduo. Hoje, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM, me parece ser uma instituição com muitas das características necessárias para fazer uma importante contribuição na construção de modos de vida sustentáveis para a humanidade. Para fazer isto, situa-se no lugar e tempo certos, pois está em uma cidade com grande dinamismo científico e tecnológico e no Brasil de 2012.
Em minha percepção, o atual panorama do CNPEM é o resultado de uma visão estratégica: a de que ciência e tecnologia são essenciais na moderna sociedade do conhecimento e de que o sucesso, na sua prática, só ocorre em um ambiente de excelência, alimentado com meios suficientes e com uma razoável continuidade, mas também com uma capacidade intrínseca de mudar, respondendo às exigências e oportunidades dos novos tempos.
Esta visão tem sido compartilhada, exercida e aplicada pela maioria de seus criadores, dirigentes, conselheiros e pesquisadores, cujos nomes não vou historiar nem enumerar para evitar qualquer injustiça. Aspectos dessa visão estão descritos em textos do professor Rogério Cerqueira Leite, publicados ao longo dos últimos trinta anos.
O CNPEM tem hoje uma configuração na qual se pode investigar a matéria e, especialmente, a biomassa, com as mais poderosas ferramentas experimentais da atualidade. Conta com o LNLS, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, que lhe deu origem e que é o seu maior ativo. Neste, as múltiplas interações entre luz e matéria são exploradas para revelar novas e muitas vezes insuspeitas propriedades dos materiais, sejam os criados pelo homem ou os que precedem a existência dos humanos.
Conta também com o LNBio, de biociências, com o CTBE, dedicado às tecnologias do etanol, e com o LNNano, de nanotecnologia. Juntos, estes laboratórios criam biotecnologias e nanotecnologias para a saúde e para o aproveitamento da biomassa, seja na produção de energia, seja na de matérias-primas2. Esses ativos do CNPEM são o resultado do uso de recursos públicos substanciais, feitos continuamente durante já quase vinte anos, somando equipamentos de pesquisa de grande porte, caros e de custosa operação, a equipes de pesquisadores dedicados, de classe global.
Os recursos do CNPEM estão disponíveis para pesquisadores e profissionais brasileiros, de universidades, institutos de pesquisa e empresas, uma vez que a maior parte das suas facilidades é aberta ao uso da comunidade externa, mediante processos de avaliação de mérito das propostas. Por isso, o uso dos equipamentos é bastante intenso e em muitos casos não existe ociosidade de instrumentos. A realização de experimentos durante noites, fins de semana e feriados é frequente, embora isso só seja possível para usuários que tenham um nível elevado de treinamento nos equipamentos que irão usar.
As equipes do CNPEM cuidam de manter os equipamentos em condições de pleno uso, para que os usuários possam desfrutar das suas melhores características.
Além disso, esses laboratórios estão hoje unindo seus esforços internos em torno de temas amplos, cientificamente desafiadores, que poderão gerar ferramentas muito necessárias na grande transição que a humanidade hoje tem de fazer, de uma economia baseada nos combustíveis fósseis para a economia verde, baseada nas fontes sustentáveis de energia e de matérias-primas.
O desafio da sustentabilidade foi lançado há décadas, por muitas pessoas, entre elas Rachel Carlson e os membros do Clube de Roma. A questão se agravou com a percepção da existência de problemas climáticos em escala global e com a escalada de preços de matérias-primas, no início de 2008. Hoje, é necessário produzir muito mais bens materiais, para muito mais pessoas, dentro de um planeta finito. Essa situação tem duas saídas previsíveis: ou haverá um grande colapso com consequências imprevisíveis sobre as atividades humanas, ou uma grande transição nos modos de vida e nos modos de produção, especialmente nos ciclos de vida dos produtos da atividade humana. Esse é o grande desafio do nosso tempo.
O lugar do CNPEM é um país com uma grande capacidade de produção de biomassa, um dos mais importantes insumos dos novos modos de produção de energia e de materiais. O Brasil se destaca, há mais de meio século, pelo uso de fontes renováveis de energia, primeiro a hidrelétrica, depois o etanol, o biodiesel e, mais recentemente a eólica. Por outro lado, Campinas (SP) foi o lugar do primeiro plantio de cana-de-açúcar para a produção de matérias-primas em grande escala, em 19423. Esses pioneirismos só se acentuaram, desde a segunda metade do século passado até o presente.
Neste ponto, o leitor já percebeu algumas singularidades importantes deste Centro no cenário da ciência e tecnologia brasileiras: seus pesquisadores não estão dispersos em um grande número de pequenos projetos que, ainda que caros aos seus corações e mentes, não tenham um foco realmente ambicioso e que extrapole o âmbito das revistas e congressos científicos. Ao contrário, eles estão sendo crescentemente motivados pela direção do CNPEM a focalizarem problemas científicos de fronteira, cujas soluções gerem retornos importantes, não apenas do ponto de vista dos impactos científicos, mas também do ponto de vista da economia nacional, das políticas públicas do país e das suas estratégias de construção do futuro. Estes problemas estão unindo esforços de muitas pessoas talentosas, o que é essencial para gerar resultados realmente importantes. Além disso, os que trabalham dentro do Centro buscam parcerias externas necessárias ao sucesso dos seus esforços, onde quer que estas estejam. Da mesma forma, associam-se a projetos externos importantes e convergentes com a missão do CNPEM e que possam beneficiar-se das suas competências. Há, por exemplo, numerosos projetos de interesse da Petrobras e de seus fornecedores de materiais e equipamentos, voltados para a solução dos grandes problemas tecnológicos necessários à exploração segura e responsável do petróleo extraído em águas profundas. O espectro das áreas de atuação do CNPEM é amplo, cobrindo problemas de saúde humana, de produção de energia, especialmente o etanol, e de materiais para os diferentes setores industriais.
Este Centro não se propõe a imitar nenhuma outra instituição no mundo, porque reconhece que a sua maior força é a sua singularidade. Entretanto, rejeita quaisquer provincianismos e busca aprender, em todas as partes do mundo, lições de organização, de atitude e de visão, escolhendo as que se mostrem válidas para a sua própria prática diária ou para seus planos e estratégias.
Tempos e lugares mudam. O CNPEM também deverá ser capaz de mudar continuamente, atento às necessidades e oportunidades que se sucedem e, às vezes, até mesmo conflitam. Poderá fazer isso, pois conta com um modo de organização e de gestão adequados, nos quais há pouco espaço para interesses menores. É um bom lugar para realizações e não é uma boa plataforma de lançamento de ambições pessoais.
Espero reler esse texto, daqui a cinco ou dez anos. Ao fazê-lo, espero poder constatar o acerto deste diagnóstico: o singular perfil do CNPEM lhe permite assumir um papel muito necessário no atual momento do país e do mundo. Obviamente, ele poderá falhar, por insuficiências internas ou por falta dos necessários recursos. Ou poderá ser mais ou menos efetivo no cumprimento de sua missão. Mas temos todos de desejar que ele cumpra bem o seu papel, porque o país precisa disso. Fernando Galembeck é professor titular aposentado do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano/CNPEM)
Referências bibliográficas
1. Gladwell, Malcolm. Fora de série: outliers. Sextante. 2008.
2. Galembeck, Fernando. "Synergy in food, fuels and materials production from biomass". Energy Environ. Sci., Vol.3, pp.393-399. 2010.
3. Galembeck, Fernando. "Chemicals from sugarcane. In: Letcher, T. & Scott, J. (Eds.) Materials for a sustainable future. Chapter 9. RSC. 2012.
|