A produção de vacinas está em constante evolução, na busca de uma imunização mais prolongada, eficaz e segura – com efeitos colaterais mínimos. Em 1884 quando o cientista francês Louis Pasteur desenvolveu a vacina antirrábica, utilizou a medula espinhal de coelhos infectados com o vírus da raiva, parcialmente inativado por desidratação e aplicado em pacientes. Pasteur estava no caminho do desenvolvimento da primeira vacina inativada. Infelizmente, uma vez que o patógeno não pode se multiplicar, não havia antígenos suficientes para estimular uma resposta imunológica duradoura. E, no caminho da cura, alguns pacientes acabavam com paralisia dos membros inferiores.
A técnica de Pasteur sofisticou-se e o vírus é, atualmente, inserido em células de rim de macacos e cultivadas em ambientes laboratoriais. Com a utilização de uma cultura de células, garante-se grande concentração de vírus, que são inativados quimicamente, purificados e liofilizados. A inativação pode ser feita por calor, frio, substâncias químicas (como clorofórmio) ou radiação. As vacinas também podem ser elaboradas com um patógeno enfraquecido ou atenuado, que não perde a capacidade de multiplicação, favorecendo a produção de antígenos e fortalecendo a resposta imunológica. Esse é o caso da vacina contra o rotavírus (Rotarix) e uma das versões da vacina contra a poliomielite (Sabin).
Novas tecnologias
Vírus ou bactérias possuem estruturas denominadas antígenos, que funcionam como um cartão de visitas apresentado ao organismo, que o reconhece no momento da invasão e prepara o ataque via resposta imunológica. As vacinas utilizam princípios semelhantes – o objetivo é “enfraquecer” o patógeno de forma que se consiga produzir a resposta imunológica sem desenvolver a doença.
Avanços nas áreas de genética e biologia molecular impulsionaram novas descobertas sobre os genes e proteínas dos agentes infecciosos. A tecnologia utilizada na vacina contra o vírus H1N1, ou gripe tipo A, utiliza partes purificadas da superfície do microrganismo para servir como antígeno, a chamada vacina recombinante de subunidade. Nesse tipo de vacina, uma porção do gene do antígeno do vírus ou bactéria é colocado em um microrganismo hospedeiro, que produz várias cópias desse antígeno. Foi dessa forma, por exemplo, que o gene para uma proteína na superfície do vírus da hepatite B pôde ser colocado dentro de uma célula de levedura, que multiplicou essa proteína, sendo então purificada e utilizada como vacina.
Trabalhos apresentados na Conferência da Sociedade Internacional de Vacinas de DNA indicam possibilidades de vacinas de DNA para terapia do câncer. Esse tipo de vacina já foi assunto de uma reportagem da ComCiência. O texto explica que “para a produção da vacina gênica, os cientistas retiram do agente causador da doença, que pode ser um vírus, bactéria, fungo ou parasita, um pedaço da molécula de DNA, onde fica seu código genético. Quando inoculado nos animais ou em humanos, esse pedaço de DNA que codifica uma proteína imunogênica, ou um fator de virulência, tem a potencialidade de induzir o sistema imunológico a produzir anticorpos ou estimular a imunidade mediada por células, protegendo contra a infecção causada pelo agente patogênico de onde se originou o DNA”. Atualmente, esse tipo de vacina está em testes pré-clínicos para HIV e testes clínicos fase I para o ebola.
O vírus HIV ilustra as várias tentativas de procura de uma vacina eficaz. Pesquisadores do Instituto Butantan e Incor trabalham em uma vacina anti-HIV
composta de 18 fragmentos de DNA do vírus, comprovadamente capazes de produzir uma resposta forte no sistema imune em fase de testes com macacos. A vacina, do tipo vetor recombinante de DNA, terá os fragmentos de DNA inseridos dentro de vírus atenuados de varíola e de adenovírus de chimpanzé. Esse tipo de construção mimetiza a natureza, pois os vírus, ao atacarem um organismo, injetam seu material genético no interior das células e provocam uma resposta imunológica. Em laboratório, os cientistas aproveitaram-se desse mecanismo, mas os vírus foram alterados geneticamente, tornando-se inofensivos e passando a ser agentes carreadores de fragmentos de DNA de outras doenças, como o HIV para estimular a resposta imune.
Quando os agentes infecciosos possuem muitos subtipos, há dificuldade técnica para padronizar um único tipo de vacina. Os cientistas precisam, então, descobrir dentro da estrutura da bactéria ou vírus, qual o menor tamanho de fragmento que pode induzir uma resposta imunológica. No caso da vacina contra a febre reumática (StreptInCor), em uma pesquisa de duas décadas do Incor da Universidade de São Paulo, os pesquisadores conseguiram mapear e isolar uma proteína presente na superfície da bactéria causadora da doença. Também descobriram uma proteína que possuía uma capacidade protetora, e, com isso, alteraram geneticamente a bactéria para que na vacina só fossem reproduzidos os efeitos protetores.
Sistemas de validação
Antes de uma vacina chegar ao mercado há um tempo considerável gasto em estudos para isolar o vírus ou bactéria, e aprendizado sobre a forma de ação da doença. Segundo a publicação Como as vacinas são feitas? do Hospital Infantil da Filadélfia, os pesquisadores são impelidos a responder algumas questões, entre elas, “qual a melhor quantidade de vírus em uma vacina?”; “uma dose será suficiente?”; “em quanto tempo o hospedeiro estará protegido das doenças?”.
Cada pergunta é respondida com os resultados obtidos em diferentes fases da pesquisa. Na fase pré-clínica são feitos ensaios com células armazenadas e cultivadas em laboratório e com utilização de modelos animais (roedores e primatas) para os primeiros testes de doses e toxicidade. Nessa fase começam a ser identificados os antígenos relevantes e a relação entre dose e eficiência.
Somente depois da determinação sobre a dose segura é que a vacina segue para os testes clínicos, em humanos. São quatro estágios que podem levar mais de uma década. A fase I começa pela triagem dos pacientes e busca a reprodutibilidade dos testes pré-clínicos. À medida que as fases avançam, o tempo de observação e número de indivíduos testados aumentam, com a introdução de mais variáveis aos testes, como multiplicidade de doses e diversidade de grupos etários.
Segurança da vacina, resposta do organismo e efeitos colaterais são avaliados na fase II. Obtendo resultados positivos, evolui-se para a fase III, quando centenas de pessoas são testadas. Marcos Freire, vice-diretor de desenvolvimento tecnológico da Bio-Manguinhos – Fiocruz, ressalta que “assim como o processo muda de vacina para vacina, e também de centro de pesquisa para centro de pesquisa, os testes também variam, e podem ser realizados em animais, in vitro e na população”.
Segundo Paulo Lee Ho, diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção do Instituto Butantan, “depois da fase III, a vacina, se for eficaz e segura, pode ser registrada na Anvisa, que irá aprová-la ou não”. A fase IV pretende verificar se os dados obtidos na fase anterior se repetem. “A vacina já está no mercado e o acompanhamento, a partir deste momento, é contínuo, pelo serviço de
farmacovigilância, para monitorar a segurança. Os dados epidemiológicos da doença contra a qual a vacina foi desenvolvida irá mostrar sua eficácia”, explica Lee Ho.
“Não existe risco zero no uso de uma vacina, uma vez que cada indivíduo possui uma carga genética distinta e a sua resposta e sensibilidade pode variar. Isso vale para medicamentos e até comida. O que se faz hoje, para se ter uma maior garantia em termos de segurança e eficácia, é melhorar a sensibilidade dos métodos analíticos para monitorar as respostas de segurança e eficácia”, afirma Lee Ho.
A Fiocruz criou uma plataforma on-line de Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC) para divulgar pesquisas. Nessa plataforma é possível acompanhar em qual fase os estudos se encontram, a forma de recrutamento e o tipo de estudo realizado.
Acertando o compasso
Para que uma vacina receba o certificado de registro deve possuir documentos que comprovem autorização para testes clínicos, alvarás sanitários, relatórios técnicos com resultados dos testes pré-clínicos e clínicos comprovando a consistência das pesquisas e outras dezenas de itens sumarizados em um guia que norteia o registro de produtos biológicos, disponibilizado pela Anvisa.
A morosidade do sistema começa na fase de autorização para os testes clínicos. Segundo dados da Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica, em outros países o tempo regulatório é de cerca de dois meses, enquanto no Brasil é de mais de seis. Por tempo regulatório entende-se o período em que os pedidos de autorização para testes clínicos tramitam pelos comitês de ética em pesquisa das instituições, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e Anvisa.
Com o fim dos testes clínicos três novos lotes são encaminhados para a Anvisa e só depois há o registro. Nesse momento as vacinas começam a chegar à população, e serão sempre acompanhadas para ver se não apresentam nenhum problema e continuam eficazes. “O processo dura em média 30 anos. Trata-se de um processo muito cansativo!”, reconhece Freire. Além da morosidade na aprovação e na análise dos projetos, de acordo com a legislação atual “há dificuldade no gasto de recursos públicos na construção de plantas de produção”, acrescenta Lee Ho.
Outro exemplo de efeito colateral da morosidade é a Lei das Patentes, de 1996, que protege as novas descobertas por um período de 20 anos. Como são necessários até 30 anos para que uma vacina chegue ao mercado, pode-se perder todo o investimento realizado. Para ser patenteada, uma vacina deve obedecer os requisitos de: novidade, atividade inventiva (que não sejam óbvios para um especialista no assunto) e aplicação industrial. De acordo com Raíssa De Lucca, coordenadora do Setor de Propriedade Intelectual da Universidade Federal de Minas Gerais, “não há sentido em patentear se não for para colocar no mercado e usar o direto de exclusividade”.
Independentemente da questão temporal e de mercado, a patente dentro da academia cumpre também outra função. “A universidade deve ter reconhecimento de sua produção intelectual, prestar reconhecimento aos inventores”, opina De Lucca.
O processo de transferência de tecnologia pode ocorrer por meio de licenciamento de patentes e, para auxiliar nesse processo, o Ministério da Saúde lançou, em setembro, a proposta para as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP). Por esses acordos de transferência de tecnologia entre instituições públicas e privadas estão previstos o desenvolvimento de sete novas vacinas.
A notícia apresentada no Portal Brasil destaca que na parceria para o desenvolvimento produtivo com o Instituto Butantan e Merck serão investidos R$ 1,1 bilhão na compra de 41 milhões de doses da vacina durante cinco anos – período necessário para a total transferência de tecnologia ao laboratório brasileiro. Ainda sobre a atuação do Butantan, Lee Ho explica que as PDPs permitirão a produção de novas vacinas contra o papilomavírus humano (HPV), hepatite A e vacina tríplice
|