No meio da tarde do sábado, 4 de junho de 2011, o céu de Bariloche ficou escuro, o dia virou noite de repente. Neve? Não! Cinzas caindo… areia, grossa – semelhante àquela gostosa das praias – em cima de nossas cabeças.
O que foi?
Desconcerto na população. O que fazer nessas circunstâncias? Buscar proteção, tentar chegar nas casas no meio da confusão do trânsito, ligar para a família, ir ao supermercado a procura de água, leite, farinha... foram as reações mais frequentes dos cidadãos. As rádios começaram a anunciar a entrada em erupção do vulcão Puyehue-Cordón Caulle localizado a 100 km ao oeste da cidade de Bariloche, na vizinha República do Chile. A cidade ficou sem luz e a tormenta elétrica se instalou. Começava assim uma nova fase para os habitantes da Patagônia Norte.
Para os patagônicos os vulcões formam parte da paisagem e da beleza do lugar. Ainda mais, essa bela geomorfologia está determinada, em parte, pelas erupções vulcânicas que tem acontecido na região ao longo da história geológica. Porém a população não tinha a menor instrução sobre como atuar frente a uma erupção. Isso foi revelador de uma marcada quebra entre a dinâmica social e a natural. Qual o limite para a descontextualização do ambiente natural em que os humanos podem viver?
Ninguém pode conter uma erupção, isso é sabido. É sabido também que há metodologias de monitoramento que permitem acompanhar a atividade sísmica e vulcânica e que, no caso, o Chile tem um serviço oficial que cumpre eficientemente com essa tarefa, o Sernageomin. O perigo de erupção se adverte com alertas coloridos: verde, amarelo, laranja e vermelho indicam risco crescente. Claro, pode ter um alerta e nada acontecer, mas às vezes acontece. E isso ficou comprovado em junho passado; o alerta foi dado mas, ao menos do outro lado da Cordilheira dos Andes, ninguém prestou atenção...
Chegamos assim, no meio de um imprevisto-previsível, a uma situação de emergência. Uma catástrofe natural, como é denominada tecnicamente, destacando, assim, o caráter incontrolável do sucesso. Tinha que acontecer, e aconteceu.
Pesquisas e emergência vulcânica
E o que fazer frente à emergência já declarada? Plano não havia. A cidade de Bariloche parou suas atividades por uns dias, conselhos governamentais se conformaram procurando coordenar ações, medidas de prevenção foram difundidas permanentemente pela mídia. Nesse marco também as instituições científico-tecnológicas se mobilizaram. Surgiu assim a iniciativa de conformar o Proevo (Programa Científico Tecnológico de Apoyo a la Emergencias por la Erupción del Volcán Puyehue - Cordón Caulle) que recebeu o apoio financeiro do Ministerio de Ciencia y Tecnología e Innovación Productiva. Coordenado pela Universidade Nacional do Río Negro (UNRN) o Proevo se propôs a apoiar pesquisas sobre o impacto das cinzas na região, num projeto com a participação de diversas instituições científico-tecnológicas. Pesquisadores do Centro Atômico Bariloche, da Administração de Parques Nacionais, da Estação Inta, da Universidade Nacional do Comahue e da própria Universidade Nacional do Rio Negro definiram pesquisas na área. Para alguns grupos o trabalho consistiu em ampliar pesquisas já existentes ou aprofundar alguns aspectos das mesmas.
Agora, depois de mais de um ano de pesquisas, conhecemos muito mais sobre as cinzas em geral, e sobre essa erupção em particular. Estudou-se o impacto na vegetação e na fauna da região, tanto em espécies de importância turística e comercial, como as trutas ou as abelhas, como em insetos prejudiciais para a agricultura local. Também o uso potencial das cinzas como substrato de cultivo em viveiros tem sido ensaiado com bastante êxito e se espera, por exemplo, que favoreçam em um prazo mediano a renovação dos bosques de arrayanes, espécie nativa da área, que está em retrocesso.
As cinzas alteraram a dinâmica de córregos, rios e lagos, tanto no geológico como no ecológico, e os processos de sedimentação do material caído estão sendo analisados. Apenas para se ter uma dimensão do fenômeno, sabemos hoje que 950 milhões de toneladas de cinzas caíram nas províncias de Rio Negro e Neuquén apenas nos dois primeiros meses após a erupção. A circulação no ambiente desse material ficou baixo pelo estudo dos pesquisadores, que também analisaram a sua composição química e mineralógica e o possível risco para a população exposta.
O impacto nas atividades produtivas e comerciais foi intenso e algumas pesquisas ajudam a analisar quais setores foram os mais afetados, o turístico entre eles. No entanto nos povoados mais distantes a situação foi ainda pior: gado morto, água com cinzas e interrupção total de atividades afetaram fortemente a Línea Sur, como é chamada a sequência de povoados, alguns bastante precários, que se perdem na estepe.
Todas essas pesquisas são aproximações a um fenômeno complexo e multidimensional. As instituições geradoras de conhecimento podem fazer um valioso aporte para preparar a população para a emergência e seria desejável desenvolver uma perspectiva integradora. No meio dessas pesquisas todas um grupo de profissionais da comunicação e de alunos de pós-graduação da Especialização em Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação da UNRN se dedicou a divulgar pela mídia as pesquisas em andamento. Criamos o site do Proevo, publicamos reportagens e artigos e editamos vídeos sobre alguns tópicos. A experiência foi alentadora, serviu como prática profissional e permitiu dar ampla visibilidade ao projeto no país todo.
As cinzas hoje
E a queda de cinzas continuou por muito tempo, as partículas que caiam foram diminuindo seu tamanho, e ao longo de uns oito meses nos acostumamos a ler nas reportagens meteorológicas diárias sobre a direção da pluma de cinzas. Acostumamo-nos também a andar com óculos, a tampar o nariz e a boca na rua, a tirar os sapatos ao entrar nas casas, a andar embaixo de um céu cinza. Também nos acostumamos a não ter aviões, a andar só de ônibus lembrando assim, inexoravelmente, as enormes distâncias que caracterizam a nossa geografia.
Hoje é possível andar pela cidade de Bariloche e – quase – não ver cinzas. A chuva, a neve a ação da cidadania que saiu para limpar tetos e ruas colaborou para que, as cinzas, sejam passado. Para alegria de todos os setores, os turistas estão voltando a visitar o paraíso patagônico, a “suíça argentina”, e reativando uma economia que se viu fortemente afetada pela crise.
Porém, quando os ventos sopram do leste ou do sudeste uma bruma cinza cobre o lago Nahuel Huapi. São as cinzas do estepe, situado ao leste dos bosques andino-patagônicos e que se estende quase até o mar, ao longo de milhares de quilômetros. Aí as cinzas estão ainda na superfície, expostas à ação do vento. Na estepe as precipitações são poucas, ocasionais, a vegetação é baixa, seca e os povoados são pequenos e distantes. Além do mais, na estepe não há turismo. Há, sim, habitantes que ainda sofrem com as cinzas no dia a dia e que viram suas economias domésticas fortemente afetadas pelas cinzas: animais mortos, falta de alimento, lã ressecada e dificuldade em se trabalhar nos tecidos, falta de trabalho, a cinza no interior das casas, a cinza no ar que se respira.
As cinzas estão em nosso ambiente e convivemos com elas, aproveitando seus benefícios e suportando os problemas que trazem consigo. As erupções são processos naturais e continuarão acontecendo, o que é de se esperar é que não aconteçam imprevistos. Educar a população para atuar na emergência e, se necessário, a ter um programa pronto de ação ágil e coordenado dos organismos governamentais também.
Sandra Murriello é professora-pesquisadora na Universidade Nacional do Rio Negro (Argentina) onde também é coordenadora da Especialização em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Inovação. Foi pós-doutoranda no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e tem realizado estudos também no Instituto de Geociências da Unicamp. Email : smurriello@unrn.edu.ar
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